Vivemos num tempo em que a compaixão se esgota depressa. O ciclo noticioso avança, a indignação arrefece, mas a dor de quem sofre continua. Entre os maiores esquecidos estão milhares de crianças órfãs ou deslocadas em zonas de guerra ou catástrofe — na Faixa de Gaza, na Síria, no Sudão, no Congo, em campos de refugiados no Líbano e até em ilhas gregas. São crianças sem Estado, sem escola, sem família. Muitas foram feridas por bombas. Outras perderam os pais em travessias pelo Mediterrâneo. Muitas foram vítimas de redes de tráfico. E continuam, ano após ano, à espera.

Portugal é generoso na retórica, mas tímido na prática. Somos signatários da Convenção dos Direitos da Criança (1989), da Convenção de Haia sobre adoções internacionais (1993) e fazemos parte da UNICEF, mas não temos um programa nacional ativo e consistente de adoção internacional humanitária. Enquanto países como o Canadá, a Noruega, a França ou os Países Baixos mantêm acordos com entidades multilaterais para acolhimento excecional de crianças refugiadas ou órfãs — mesmo fora dos trâmites convencionais da adoção —, Portugal limita-se a casos esporádicos, complexos e muitas vezes travados pela teia burocrática.

Tudo isto acontece enquanto vivemos uma vertigem demográfica. Portugal é um dos países mais envelhecidos da Europa, com uma taxa de fecundidade abaixo do limiar de renovação há décadas. A população ativa diminui, o interior esvazia-se e os lares perdem as vozes das crianças. Se nada for feito, não só enfrentaremos um problema económico — enfrentaremos um vazio civilizacional. Um programa de adoção internacional humanitária, bem regulado e juridicamente sólido, pode ser uma resposta digna a ambas as realidades: salvar crianças e revitalizar comunidades.

Mais ainda, num tempo em que a extrema-direita cresce alimentada pelo medo do “outro”, pelo discurso do ódio e pela instrumentalização da diferença racial, uma política pública que acolha, integre e humanize é também um antídoto político. A convivência começa na infância. O preconceito desfaz-se no berço. E um país que decide adotar, com responsabilidade e humanidade, afirma-se como pátria — não apenas de quem nasce nela, mas de quem nela encontra refúgio e futuro.

Deveria ser criada, por via legislativa, uma estrutura nacional de adoção humanitária internacional, com os seguintes objetivos: identificar zonas prioritárias, em coordenação com o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados, a UNICEF e organizações católicas ou laicas presentes no terreno; simplificar o regime de adoção internacional, com garantias éticas e jurídicas, respeitando o interesse superior da criança — mas sem submeter os candidatos a processos kafkianos; apoiar as famílias portuguesas dispostas a adotar, com incentivos fiscais, acompanhamento psicológico e apoio na integração cultural da criança; criar uma bolsa pública de crianças elegíveis para acolhimento em Portugal, com autorização judicial e diplomática; e priorizar menores de idade que se encontrem em campos de refugiados e zonas de guerra, órfãos confirmados e sem possibilidade de regresso ao seu país.

Os argumentos do costume virão: “e os portugueses que ainda estão à espera de adoção?”, “e se as crianças forem usadas por redes?”, “e se depois querem voltar?”. A verdade é esta: uma coisa não exclui a outra. Podemos reforçar os mecanismos de proteção de menores nacionais e, em simultâneo, salvar vidas concretas de crianças que enfrentam a morte ou o abandono absoluto. E podemos fazê-lo com rigor, com justiça e com dignidade.

A neutralidade institucional é, neste caso, cumplicidade. Cada dia que passa sem resposta é mais uma infância perdida. É mais um ser humano que cresce sem colo, sem segurança e sem futuro. Como dizia Santo Agostinho, “a esperança tem duas filhas: a indignação e a coragem”. Já temos a indignação. Falta a coragem. Portugal pode — e deve — estar do lado da vida.

Paulo Freitas do Amaral

Professor, Historiador e Autor