Ver e ouvir são dois dos cinco sentidos humanos, responsáveis pela captação de informações do meio em que nos movemos. Ver quem até determinado ponto apenas ouvimos resulta numa transformação da comunicação, que passa a incluir novas componentes de comunicação não verbal. Os gestos, as expressões faciais e o contacto visual aliam-se assim ao tom de voz e à linguagem. E, se antes já parecia que conhecíamos o outro pela audição, a visão corporifica-o. O que pode contribuir para experiências humanas positivas, fundamentais num contexto de maior fragmentação da sociedade civil.

Através dos avanços tecnológicos, há quase 150 anos, mais precisamente desde a invenção do telefone, em 1876, por Graham Bell, que ver e ouvir são dissociáveis. Mas se, durante várias décadas, se restringiam a uma conexão limitada realizada através de telefones fixos, a partir de 1973, com a primeira chamada de telemóvel por Martin Cooper, tudo começa lentamente a mudar.

Hoje, o telemóvel é, como articulado pela teoria de Marshall McLuhan, uma extensão do ser físico e psicológico, definindo a experiência humana e a sociedade. O meio é a mensagem, e através do pequeno ecrã abre-se uma porta para o mundo.

Ainda que o telemóvel seja hoje uma ferramenta de trabalho e lazer com o qual passamos tempo incalculável, continua a ter uma função básica: telefonar.

Ligar para alguém, ou para algum lado, continua a ser uma prática no mercado, mesmo que se tente cada vez mais orientar o consumidor para o contacto digital, de modo a otimizar recursos e criar soluções mais eficazes. Ainda assim, mantém-se uma vontade comum do cliente em falar com quem do outro lado lhe presta um serviço.

Com certos serviços, o contacto é mais impessoal. Não são tão frequentemente necessários como outros, que pedem um contacto mais regular. Por isso, a distância de quem está do outro lado leva a uma maior indiferença na relação. Poderá sim (e deve) haver sempre simpatia, ainda que essa se torne cada vez mais num privilégio para quem presta o serviço. Já no caso do segundo, sendo o contacto mais regular, pode criar-se – dependendo da dimensão da estrutura que presta o serviço de apoio - uma relação de proximidade que não é física, mas sim psicológica. A repetição da interação leva a que se desenvolvam emoções, porque depois de um tempo – mesmo que seja uma equipa de alguns funcionários – já sabemos quem vai estar do outro lado. Por isso, a conexão que se estabelece entre as partes torna-se de uma maior proximidade.

Surge então uma curiosidade, talvez até uma expectativa, de compreender quem está do outro lado a comunicar connosco. Porque, voltando aos sentidos humanos, vamos querer melhor captar informações quando um dos sentidos – audição – já vai sendo apurado.

Durante quatro anos e cinco meses, estive a fazer um doutoramento em Ciências da Comunicação, mais precisamente em Estudos dos Media e Jornalismo. E entre os vários grupos com quem contactei durante essa longa jornada, falei várias vezes ao telefone com quem trata das questões administrativas dos doutoramentos da faculdade.

Se por um lado o email é também um canal de comunicação comum nesta relação, a chamada permite que, de forma mais imediata, se possam fazer pedidos, comunicar problemas e tentar encontrar soluções. Mas, ao mesmo tempo, permite despertar um desses cinco sentidos humanos que é ouvir o outro. E, à medida que o contacto com os serviços académicos foi sendo estabelecido, ambas as partes passam a conhecer-se, ainda que não se conheçam. Este oxímoro reforça a ideia de que saber quem o outro é não implica necessariamente mais do que um sentido.

Na defesa da minha tese estava uma das funcionárias que trabalha na área administrativa, para assegurar todas as condições na sala para três horas seguidas de apresentação e discussão. Poucos dias depois, fui pela primeira vez ao departamento para entregar toda a documentação e encontro uma outra funcionária. A primeira das duas ouço-a há meses, a segunda há anos. Quando as vi – pela primeira vez – houve dos dois lados uma reação de surpresa. Porque passámos a ver-nos e não apenas a ouvir-nos. Essa aproximação resulta em emoções positivas se do ponto de partida, na comunicação mediada, houver sempre respeito e educação, como se espera numa sociedade que – apesar de dever sê-lo – parece estar cada vez menos civilizada.

A frase “a felicidade é feita de pequenos momentos” faz-me muito sentido porque a sinto como um facto. E uma lição que tirei desta experiência é que talvez uma relação que se desenvolve pela comunicação mediada – ainda que possa ser mais formal – assim se mantenha para sempre. Cabe-nos tornar isto possível num tempo em que as relações se restringem cada vez mais aos meios de comunicação digitais, deixando até o contacto por chamada cada vez menos frequente.

Com estas transformações, passa-nos ao lado a satisfação que resulta, mais do que uma chamada pelo telemóvel, que desperta apenas um dos sentidos humanos, de um contacto real. Este incorpora em si uma experiência humana que continua a ser distinta, porque é multissensorial.

Ainda que a tecnologia procure cada vez mais, com a realidade virtual, aproximar a experiência humana da máquina, o aperfeiçoamento nunca vai ser tão perfeito quanto a experiência que é a verdadeira realidade.