Porquê este livro, cheio de pequenas histórias de figuras que marcaram o Portugal recente, e que lição podemos tirar desse somatório?
As pequenas histórias são, tantas vezes, definidoras daquilo que é a grande história. Elas ajudam-nos a definir o carácter e a personalidade de algumas das suas figuras, ajudam-nos a explicar o que as levou a ir por determinado sentido e não por outro. Personagens como Álvaro Cunhal, Mário Soares ou Francisco Sá Carneiro parecem hoje, para um jovem de 25 anos, personagens de ficção, de um romance. Não nos aborrecemos com elas. Tiveram o privilégio de viver num tempo em que tinham de arriscar, de sair de qualquer zona possível de conforto.
Estes dois nomes marcaram o século XX português, especialmente no último quartel: é Álvaro Cunhal, que retrata como um homem “ancorado em certezas”, muito convicto, e Mário Soares, “um patrono das dúvidas” que não deixou de agir e arriscar, politicamente. Como é que estas características marcaram o seu modo de exercer poder?
Conheci os dois. Ambos se definem por um traço de personalidade que é a capacidade de magnetismo, ou seja, precisamente aquilo que distingue, muitas vezes, as lideranças. Eram duas pessoas que, mesmo quando se estava numa sala com 50 pessoas, os nossos olhos ficam fixos nelas. Personagens magnéticas e fortes, cada um à sua maneira.
O poder de Mário Soares está alicerçado na dúvida permanente, mas é uma dúvida que não deixa de ser um procedimento. Por exemplo, antes de tomar uma grande decisão, o Mário Soares convidava pessoas para estarem consigo e os ouvir, mas existia uma pessoa que ele convidava sempre... para depois fazer exatamente o contrário do que ela dizia: funcionava como uma espécie de Oráculo de Delfos, mas ao contrário. Atenção, o Soares era um homem cheio de certezas, como grande parte dos líderes, mas os seus procedimentos, a sua praxis [as suas ações], construíam-se a partir da dúvida, do questionamento, da tentativa de criação de pontes com pessoas que pensavam de forma contrária.
As histórias que conto do Cunhal passam-se em alguns dos períodos conturbados da nossa história – quando esteve na clandestinidade [antes do 25 de abril] e em 1975 –, daí que qualquer dúvida ou hesitação que ele mostrasse seria sempre confundida com outra coisa, pois viveu tempos que não eram de hesitações, sobretudo para quem queria mudar o sistema e acreditava numa ideia de revolução leninista.
Numa entrevista que fez ao Álvaro Cunhal, lançou-lhe um ‘isco’ e perguntou se, já no fim da vida, não seria assaltado por dúvidas e não ficaria tentado a acreditar em Deus. Que resposta ele lhe deu?
Houve muitas pessoas que, ao longo do percurso de vida do Cunhal, tentaram ‘salvar-lhe a alma’, incluindo um padre que lhe enviou uma carta, sendo que a resposta que levou do Cunhal é uma das mais divertidas que revelo no livro. Mas, quando lhe faço a pergunta sobre se no momento da proximidade da morte adviria a dúvida, ele responde-me de uma forma brutal, muito forte: “Eu encaro a morte tal como quando a minha filha vê um animal, um cão. Enquanto as pessoas, às vezes, afastam-se, ela aproxima-se e afaga o animal. Mesmo que o animal pudesse constituir uma ameaça, ela tranquilizava-o. Eu faço o mesmo em relação à morte. Deixo que ela se aproxime, também a afago e depois deixo que ela se afaste”.
Sobre a vida interior de Cunhal, aquilo que transcende a política, sabe-se muito pouco e ele fazia o possível para garantir isso.
Dou um exemplo. Na sede do PCP, onde costumava almoçar e jantar, nunca se sentava na mesma mesa, nunca se sentava ao pé dos mesmos camaradas. Não havia qualquer tipo de possibilidade de alguém dizer que estava mais próximo deste ou daquele, ou que aquela mesa era a preferida dele.
Ele não criaria um certo distanciamento para evitar, também, a ideia de que existia em seu redor um culto da personalidade, tal como aconteceu com Salazar, em Portugal, ou Stalin, na União Soviética?
Por um lado, Cunhal fazia tudo isto para se proteger da ideia do culto da personalidade, para que ninguém dissesse que beneficiava uns em relação a outros, que era mais amigo destes do que daqueles ou que preferia camisas pretas em vez de brancas. Pelo outro lado, todo este secretismo em torno dele, todo este mistério, acabava por acentuar uma curiosidade sobre a sua figura, o que levou outros a estimular um culto da personalidade: sendo que isso era algo que Cunhal dizia, publicamente, querer combater.
Uma outra história, nos meses quentes que se seguiram ao 25 de abril, foi o convite estendido por Mário Soares ao padre católico Frei Bento Domingues (que tinha regressado do exílio em Roma) para que fosse um dos fundadores do PS. Todavia, este recusou. Qual era o calculismo político atrás deste pedido?
O Frei Bento Domingues, que ainda hoje continua ativo e a escrever, é um heterodoxo, sempre esteve muito próximo de ideias ligadas a movimentos progressistas. Hoje em dia, na Igreja Católica e com o Papa Francisco, tornou-se visível que existem progressistas no seu seio, mas em 1973 ou 1974 isso não era nada claro, sobretudo em Portugal. Mário Soares, que era um pragmático, estava obcecado com a ideia de não se cometerem os mesmos erros que ocorreram depois da instauração da República [em 1910], em que houve um ataque e uma perseguição à Igreja Católica, um clima de anticlericalismo. É por isso que Soares, muito rapidamente, dá a mão à Igreja, criando relações com a sua cúpula. O cardeal-patriarca [de Lisboa] que sucedeu a Cerejeira [este último era um apoiante convicto do Estado Novo] tem uma relação com Soares, e os dois unem-se porque, após o 25 de abril, há um combate entre os socialistas (os soaristas) e os comunistas, pelo que a Igreja acaba por dar a mão a Soares. Mas isto aconteceu muito depois do convite feito ao Frei Bento Domingues.
Vasco Gonçalves quis nacionalizar quase tudo no país, mas deixou de fora o negócio do falecido pai, para não ferir a sua memória
Durante o mandato de Vasco Gonçalves, primeiro-ministro de quatro governos provisórios entre julho de 1974 e setembro de 1975, Jorge Sampaio, que à época era Secretário de Estado da Cooperação, tinha mesmo uma espécie de bunker na casa de Maria José Rita, todo preparado para a eventualidade de uma guerra civil em Portugal?
Sim! No pico do calor do PREC [Processo Revolucionário em Curso], com o general Vasco Gonçalves claramente mais próximo do PCP, pairou de forma muito clara a possibilidade de uma revolução leninista, de uma guerra civil. Aliás, as várias forças políticas existentes em finais de 1975 estavam, de facto, preparadas para um cenário de guerra civil: a extrema-esquerda, comunistas, socialistas e quem estava mais à direita. Todos tinham armas. E houve aqui, portanto, vários planos de fuga [na eventualidade de um conflito aberto].
Foi uma época conturbada. O próprio Pacheco Pereira esteve três semanas na clandestinidade a seguir ao 25 de abril [fazia parte do PCP (m-l), grupo de extrema-esquerda que lhe deu essa ordem], chegando a perder o Primeiro de Maio. Até que percebeu que a situação em que estava era “patética” – palavra dele – e deixou de viver escondido.
Ao mesmo tempo, o próprio Vasco Gonçalves tinha os seus dramas pessoais, histórias familiares que, depois, influenciaram o evoluir dos acontecimentos em Portugal.
No livro, eu conto a história da pessoa que Vasco Gonçalves mais amou, que mais o influenciou: e essa pessoa era um salazarista convicto e feroz. Estamos a falar do pai dele, que morreu antes de Vasco Gonçalves se definir politicamente. O pai do mesmo Vasco Gonçalves que lidera, no terreno, a possibilidade de o PCP conseguir implementar uma revolução leninista e mudar totalmente as estruturas de organização do país.
Ele próprio chegou a admitir que não tinha a certeza absoluta que se teria definido [politicamente] da forma como depois o fez se o pai tivesse continuado vivo. Isto porque a relação que tinha com o pai era tão forte, tão agradecida, que provavelmente não se teria ‘libertado’.
É um caso, entre outros que refiro em Ficheiros Secretos, de pessoas cujos percursos de vida são determinados por via de tragédias. Nas nossas vidas acontece exatamente a mesma coisa: muitas vezes, definimo-nos devido a certas coisas que nos acontecem, e que são um ponto final, um final de parágrafo, o que nos obriga a contar uma outra história para nós próprios.
Apesar da visão política que abraçou, Vasco Gonçalves tomou uma decisão que só o vínculo com o pai, com o passado íntimo, pode explicar. No verão quente de 1975 dá início a um vasto plano de nacionalizações, mas, estranhamente, decide não nacionalizar as lojas de câmbio. O motivo?
Porque o pai teve uma loja de câmbios [com a qual conseguiu sustentar a família]. O que, teoricamente, era uma corrupção moral do Vasco Gonçalves, era, igualmente, uma impossibilidade em conseguir corromper a memória do pai. Há ali um conflito entre uma revolução que ele estava a montar e uma memória que o puxava.
“A vida do José Miguel Júdice é determinada pela necessidade de vingar a memória do pai, que foi abandonado na prisão pelo PCP”
Falemos de alguém que está do outro lado do espectro político. Freitas de Amaral lamentou-se que deveria ter fundado o CDS em maio de 1974, não em julho, apenas dois meses depois. Afinal, e a acreditar nele, qual teria sido a diferença?
Ele estava completamente convencido que o facto de ter atrasado a fundação do partido levou a que o PSD tivesse ocupado toda a direita. Se não fosse o atraso de algumas semanas, o CDS teria sido um partido muito mais forte do que aquilo que foi. O CDS, à época, era provavelmente o único partido de direita no país, pois o PSD não se definia como de direita, mas sim de esquerda [daí a menção à social-democracia no nome do partido]. No CDS estavam pessoas ligadas ao antigo regime, mas tinham na liderança dois jovens brilhantes: Freitas de Amaral e Adelino Amaro da Costa [que morreria mais tarde, juntamente com Sá Carneiro, no avião que se despenhou em Camarate]. O Freitas de Amaral acreditava, portanto, que tinha cometido um erro político, um erro, durante a adolescência democrática e partidária de Portugal, que vai depois definir toda a história da política portuguesa nos 40 anos que se seguiram.
O Luís Osório define o José Miguel Júdice como um “poderoso perdedor” da política portuguesa, algo que o próprio admite, mas que continua a ser um temível “predador” na arena do poder. Quem se lembra que depois da Revolução dos Cravos ele teve de fugir do país, escreveu programas políticos para o MDLP (de extrema-direita e envolvido em ataques bombistas), liderado por António de Spínola, tendo chegado a defender, na altura, que Portugal deveria ser um país pluricontinental com capital em Luanda?
O José Miguel Júdice tem muitas pessoas que gostam dele e muitas outras que o odeiam, porque é um homem que tem uma capacidade assinalável de dividir as águas, de ser politicamente incorreto. Mas ele sempre o foi, e com 71 anos continua a ser uma espécie de enfant terrible da política portuguesa. O pai era comunista, mas a relação que tinha com ele foi de não-existência: morreu quando tinha à volta de um ano de idade. Toda a vida do José Miguel Júdice é determinada por essa ausência e pela necessidade de vingar a memória do pai, que foi abandonado na prisão pelo PCP [após se converter ao catolicismo, quando ainda estava detido].
A ideia (essa loucura) que ele escreve num ambiente quente de pré-guerra-civil, advinda da relação com o Spínola, era, no fundo, uma tentativa de reconstruir o império português, de regressarmos ao passado e colocarmos a sede de tudo num outro lugar, num local utópico.
Aliás, anos depois o José Miguel Júdice admitiu que tudo o que idealizou e escreveu era de uma enorme infantilidade.
Mas é uma infantilidade muito provocada por uma utopia. A utopia está muito conotada como sendo uma coisa da esquerda, mas também há utopias de direita. O José Miguel Júdice, tal como outros jovens radicais de direita da época, era um intelectual. Mas houve outros jovens radicais do MDLP que fizeram explodir sedes do PCP, atacaram e raptaram pessoas. Isso aconteceu, pelo que o Júdice teve de se preparar para tudo: daí se ter exilado em Madrid, já casado e com filhos.
E muita água passou debaixo da ponte, desde esses tempos. Mas, e feitas as contas, devemos mesmo vê-lo como um perdedor?
Ele tem uma frase notável sobre os vencidos e os vencedores: ele acha que é, e define-se, como um vencido da vida, mas não sabe se a soma de todas as derrotas não dará, no fim, uma vitória.
“Durão Barroso não foi um jovem utópico, ele era um individualista, daí que fugisse às decisões tomadas pelo MRPP: uma marca do que foi depois o seu percurso político”
Outro enfant terrible do pós-25 de abril é o Durão Barroso. Militou na extrema-esquerda, no MRPP do Arnaldo Matos, mas ficou conhecido por tomar decisões, radicais, que iam muito além do que tinha sido decidido pela direção do partido. É conhecida a história de quando vai à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e convence quem está com ele a roubar mesas e cadeiras para equipar a sede do partido. Quando regressa, de camião cheio, Arnaldo Matos atira-se a Barroso e ordena a devolução de tudo. Mas o que causou mais marcas foi quando decidiu, por sua conta, sanear todos os professores catedráticos dessa faculdade, sendo que Arnaldo Matos apenas tinha referenciado quatro nomes.
Durão Barroso tinha duas características muito faladas por quem se cruzava com ele, quando tinha 20 anos ou pouco menos. Existia nele uma certa agressividade, inclusive uma certa violência verbal e física: ocorriam grandes sessões de pancadaria entre o MRPP, o PCP e outros grupos da extrema-esquerda, sendo que o Durão Barroso estava na primeira linha desses confrontos. Daí que, à primeira vista, ninguém o visse como um intelectual, quando, afinal, essa também era uma característica sua. Ele tinha uma capacidade e um magnetismo que o faziam ganhar as RGA [as reuniões gerais de alunos] na Faculdade de Direito: todos ficavam dependentes, para o bem e para o mal, da palavra do Durão Barroso. Daí que a história do saneamento seja um episódio importante, pois tem uma palavra decisiva numa das RGA que acabou por determinar o futuro de vários dos grandes professores da Faculdade de Direito.
Nos últimos 20 anos, a memória que temos dele é como primeiro-ministro de Portugal e presidente da Comissão Europeia, mas ele foi, igualmente, uma das grandes figuras do verão quente de 1975. Todavia, não o classifico como tendo sido um jovem utópico: ele era um individualista, daí que fugisse às decisões tomadas pelo MRPP, agindo muitas vezes ao arrepio do que eram as ideias centrais do partido. Creio que isto é, igualmente, uma marca do que foi depois o seu percurso político. É com estas pequenas histórias que as pessoas talvez possam perceber o que o levou, num momento importante da vida política portuguesa, a abandonar o cargo de primeiro-ministro e ir para a Comissão Europeia, porque são histórias que definiram a sua personalidade.
O então Presidente da República, Jorge Sampaio, salientou que a decisão de Durão Barroso seria boa para o país, devido ao importante cargo que ocuparia, mas ainda hoje paira a dúvida sobre se a mudança para Bruxelas beneficiou Portugal ou a carreira de Durão Barroso…
Sim, é uma dúvida que ainda hoje persiste. Mas isso já é uma questão de análise política.
“Balsemão e Júdice eram bon vivants; era impossível aproximarem-se de Cavaco Silva, porque ele era o contrário deles: Cavaco nem sequer tinha relações pessoais com os seus ministros”
Francisco Pinto Balsemão criou um império da comunicação social em Portugal e influenciou a política portuguesa desde a década de 1980. No entanto, ser filho, neto e sobrinho único de uma família abastada (o único herdeiro, portanto) colocaram-no numa situação de privilégio, tendo ainda herdado parte do jornal Diário Popular, tal como refere no livro. O poder que conseguiu atrair até si foi fruto das circunstâncias ou das suas capacidades?
É verdade que a vida dele já estava facilitada à partida, mas a maior parte das pessoas que começam nas mesmas condições que Pinto Balsemão acabam por não conseguir triunfar. O mérito dele foi o de ter tido o ímpeto e a força, apesar de todos os privilégios, para fazer muita coisa e ter acrescentado algo mais a isso.
E, para defender o que é seu, Balsemão chegou a parecer um cowboy em pleno Faroeste. Ou, pelo menos, é assim que o Luís Osório pinta a situação, não é?
É uma história muito interessante, a qual também o ajuda a definir como pessoa, quando já está à frente do jornal Expresso. O Balsemão recebe a informação, no verão de 1975, que as brigadas revolucionárias de Isabel do Carmo e Carlos Antunes estavam a chegar à sede do Expresso e iam rebentar com aquilo tudo, e ele espera por eles sentado numa cadeira, com os pés em cima da mesa e com um revólver em cima da mesma. Estava pronto para tudo.
Quando formou governo como primeiro-ministro, entre janeiro de 1981 e junho de 1983, Balsemão teve Cavaco Silva como ministro das finanças. Uma das curiosidades que revela é que Cavaco, num momento de nervosismo antes de falar no Parlamento, foi aconselhado por Balsemão a falar como se estivesse numa aula, pois a generalidade dos deputados percebia menos de finanças do que os alunos a quem dava aulas. Cavaco agradeceu o cuidado, mas o futuro ditou que se tornassem inimigos. O que faz mover esta inimizade?
O fascínio que o Cavaco Silva tem para algumas pessoas tem muito a ver com uma herança salazarista, não porque existia uma ligação direta entre Cavaco e Salazar, mas porque existe aqui um padrão: o padrão de um homem circunspecto, que se faz a si próprio, que se mostra distante, muito institucional e que surge como uma figura providencial. O Cavaco Silva não tinha relações pessoais com os seus ministros, por exemplo. Já um homem como o Pinto Balsemão, ou o José Miguel Júdice e o Mário Soares, eram bon vivants [apreciavam os prazeres da vida, sem o esconder]. Era impossível a estes homens aproximarem-se de Cavaco Silva, porque ele era o contrário deles. Além do mais, Balsemão era milionário e não precisava do Cavaco.
Falemos agora sobre quem sucedeu a Cavaco Silva no Governo, o António Guterres. Em agosto de 1999, desabafou numa conversa que teve consigo estas palavras: “Se quantificarmos o exercício das minhas funções, 80 por cento da vida de um primeiro-ministro é horrível de aturar. Gerir os conflitos das pessoas, os seus ciúmes e expectativas nem sempre correspondidas, gerir o peso da máquina administrativa, uma máquina que emperra e faz perder horas e horas e horas”. Que primeiro-ministro português se atreveria, nos dias de hoje, a admitir que está ‘farto’ do cargo que ocupa?
Isto foi-me dito no segundo mandato...
É um desabafo que já demonstra um enorme desgaste…
Exatamente. O que ele diz acabou por ser uma luz para o que aconteceu após as eleições autárquicas [de dezembro de 2001], momento em que ele define a situação política portuguesa como um “pântano” e decide demitir-se. O António Guterres é um homem diferente, e aquilo que na altura disse é algo que o define em relação a outros homens de poder, a outros políticos que ocuparam o cargo de primeiro-ministro – se Guterres é melhor ou pior do que eles, isso já é uma outra questão, mas ele é claramente diferente. Não deixou de entrar no combate político puro e duro, foi politicamente ambicioso e lutou por essa ambição, mas, depois, foi alguém que mostrou um enorme despojamento no exercício do poder. Só com o António Guterres era possível que isto acontecesse: sair a meio de um mandato porque já estava ‘farto’, cansado.
A verdade é que ele ficou muito triste e desiludido com os portugueses, porque achou que tinha feito tudo bem no primeiro mandato (aguentou um governo que era minoritário) e acreditava que teria uma maioria absoluta nas legislativas de 1999. O que não sucedeu, pelo que teve de andar a fazer compromissos atrás de compromissos no segundo mandato: daí a sua frase de que a maior parte do trabalho de um primeiro-ministro é uma grande chatice. Quando diz isto está num momento em que, verdadeiramente, quer fazer outra coisa na vida. Quer 'cumprir-se' e percebe que já não é no exercício do poder político que o consegue. Todos os restantes protagonistas políticos, à época, eram mais políticos do que Guterres. Respondendo à pergunta, acho que nenhum dos políticos [portugueses] que conhecemos seria capaz de um tal despojamento, após umas autárquicas, e afirmar que está ‘farto’ de ser primeiro-ministro.
“A vida do Siza Vieira é marcada pela tragédia e foi isso que o definiu: a morte do irmão, depois a da mulher – depois disso, viveu sempre sozinho”
Teve a oportunidade de privar com a Amália Rodrigues, inclusive na casa dela. É verdade que a Amália Rodrigues, ao contrário do mito que se criou, detestava vinho?
O meu pai era um dos melhores amigos da Amália. A última entrevista que deu, poucos meses antes de morrer, foi feita por mim. Ela era uma diva, uma mulher que tinha várias particularidades. A primeira coisa que saltava à vista era a de que não era capaz de viver sem pessoas à sua volta, não conseguia viver sozinha. E o facto de ter, permanentemente, pessoas ao pé de si, amplificava ainda mais a solidão que sentia. A história do vinho é aquilo a que hoje chamamos de fake news (sendo que notícias falsas é algo que quase sempre houve). Mas a Amália não gostava que se dissesse isso dela, chegava a ficar exaltada, porque não bebia. Aliás, muitas das paixões que teve na vida perderam-se, precisamente, por causa do vinho, do alcoolismo, especialmente o primeiro marido dela.
Álvaro Siza Vieira, o mais premiado arquiteto português de sempre, afinal queria ser escultor, um Gaudi português, só que o pai não aprovava. Entrou no curso de arquitetura com a ideia de ganhar tempo, mas, entretanto, o irmão faleceu e não foi capaz de fazer uma desfeita aos pais, descreve em Ficheiro Secretos. Houve mais momentos de tristeza que marcaram o caminho que depois trilhou?
A vida do Siza Vieira é marcada pela tragédia. Primeiro foi a morte do irmão [quando ainda estudava na universidade], depois a da mulher [em 1973], o grande e único amor da vida dele – depois disso, e sem ser com os filhos, viveu sempre sozinho. A sua vida foi determinada por esses dois momentos. Lembro-me de estar a conversar com o Siza Vieira na casa da pintora Armanda Passos e, a certa altura, ele diz isto: “Quando eu faço os meus esquiços, esqueço-me sempre de pôr janelas. Nunca ponho janelas. Elas vêm depois”. É uma confissão interessante, porque, no fundo, não há janelas na vida do Siza Vieira, não há um espaço em que ele possa abrir essas janelas para o mundo. O seu mundo é um mundo concentracionário, um mundo interior, e é aí que ele vive e cria, e foi aí que se definiu enquanto arquiteto, um dos maiores da nossa história. Não se teria definido dessa forma sem essas duas tragédias, pois foram momentos fundadores daquilo que ele é.
Em muitos casos, parece que a ausência de felicidade tem de andar aliada, de forma perversa, com a genialidade. Eugénio de Andrade, por exemplo, nunca escreveu a palavra “felicidade” nos seus poemas. Porquê?
Porque, para ele, era uma impossibilidade, seja de forma permanente ou em determinados momentos. Há duas relações que são determinantes na vida do Eugénio e, depois, em toda a sua escrita. Temos a relação com o pai, que é uma não-relação, uma relação que o constrói pela capacidade de odiar: só viu o pai uma vez. E, depois, há relação com a mãe, uma relação de amor total, o único amor da vida dele. Conheci o Eugénio de Andrade na sua casa, que hoje em dia é uma fundação [situada na cidade do Porto], e posso dizer que é a pessoa que conheci que mais fantasmas carregava. Era um homem que andava como se estivesse sempre acompanhado, apesar de estar sozinho: na sua cabeça, a mãe estava sempre com ele.
Salazar mandou criar “uma espécie de campo de concentração para leprosos"
Existe uma figura do século XX português que está esquecida. Abel Almeida foi ‘caçado’ pelas autoridades do Estado Novo aos 14 anos e institucionalizado na década de 1930. Ele e quase todos os leprosos do país foram depois arregimentados numa aldeia, local de onde não poderiam sair até ao fim da vida. Considerado o último leproso português, a história de luta e resistência de Abel Almeida é a sua maior marca. Quem foi este homem?
A história dele dava um filme. Das histórias que conto, é a única sobre um homem anónimo. Estive com ele três vezes e foi das pessoas mais impressionantes que conheci. É um dos primeiros a entrar na grande leprosaria que se construiu [em 1947] na aldeia da Tocha [o Hospital-Colónia Rovisco Pais, entre Aveiro e a Figueira da Foz], a qual chegou a ter cerca de mil doentes: um número impressionante. Com boas intenções, o médico Bissaya Barreto (o mesmo que ‘inventa’ o Portugal dos Pequenitos, em Coimbra) convence Salazar, que confiava nele, que era muito importante que os leprosos pudessem ter um lugar só para si. Mas, como se costuma dizer, de boas intenções está o Inferno cheio.
Ser leproso nas décadas de 40 ou 50, e ainda depois, era um enorme estigma. Os leprosos que eram institucionalizados ficavam em isolamento, os vínculos que tinham com a família eram cortados, as suas roupas e todos os restantes pertences que tinham eram queimados. A ideia de criar uma grande leprosaria passa por retirar os leprosos das várias instituições que então os acolhiam e colocá-los num só lugar, e, em seguida, procurar pelo país outros casos: existiam famílias que escondiam os seus leprosos, nomeadamente crianças, para que estas não lhes fossem retiradas. Há um momento terrível da nossa história em que, durante um mês, há um apelo do Estado português para que haja denúncias sobre onde é que estão os leprosos, e as autoridades iam depois buscá-los à força e colocavam-nos na nova leprosaria.
O Abel, na altura, estava apaixonado por uma mulher, também leprosa, mas quando se entrava na leprosaria as mulheres iam para um lado e os homens para outro. Acabaram separados, portanto.
Assim contado, vem logo à memória os campos de concentração da Alemanha nazi…
E era mesmo. Funcionava como uma espécie de campo de concentração para leprosos. É por isso que toda vida do Abel Almeida, naquele local, é uma vida de combate. Um dos primeiros combates que tem, e que consegue ganhar, é para que as mulheres e os homens não estejam separados, para que ele e a futura esposa pudessem estar juntos. É o primeiro diretor de um jornal aí criado, acaba por ser o representante dos doentes e, com o 25 de abril, acaba por ser escolhido para ser o representante do Movimentos das Forças Armadas (o MFA). Aliás, o MFA, após a revolução, invade o local sem sequer saber o que existia ali, e depois de escolherem o Abel como representante nunca mais lá apareceram.
É uma das histórias mais bonitas que conto – e no livro estão mais pormenores –, mas é uma pena que este homem nunca tenha sido condecorado, ainda por cima quando há tantas pessoas que o são. O presidente da República deveria condecorá-lo a título póstumo: quando morreu, foi também um resistente que morreu, mas um resistente anónimo. Uma vítima de uma época inclemente e dura.