Na noite de 21 para 22 de novembro de 1970, desembarcaram de seis navios, que chegaram furtivamente até à costa da cidade de Conacri, capital da soberana República da Guiné, um total de 150 comandos e 80 fuzileiros, todos eles africanos portugueses, assim como 200 dissidentes armados, naturais daquele país estrangeiro, prontos a auxiliar os portugueses. A comandar tudo, a partir de um dos barcos, estava Guilherme Alpoim Calvão.
Um dos principais objetivos, e eles eram muitos, passava pela captura ou morte do presidente do país e a formação de um novo governo, capaz de apertar a mão amiga a Portugal e impedir os guerrilheiros do PAIGC de aí manter algumas das suas bases, a partir das quais atacavam a Guiné portuguesa. Nada disto aconteceria. Era uma "fantasia" das chefias militares portuguesas.
Às cinco da manhã do dia 22, um sábado, e após terem chacinado, em vão, dezenas ou centenas de tropas do exército do presidente Sékou Touré e de elementos do PAIGC, é dada a ordem de retirada, face ao evidente fracasso da missão – em grande medida porque, logo de início, nem sequer conseguiram encontrar muitos dos alvos a atacar. No fim, um soldado português europeu acaba por morrer e cerca de 20 tropas africanas portuguesas rendem-se, por não estarem de acordo com uma missão que desconheciam. Pior sorte para os dissidentes que acompanharam as forças portuguesas e que decidiram ficar, em vez de regressar aos barcos: ainda durante a tarde desse dia, todos acabam por ser dizimados ou capturados. Para quê e qual o sentido de tudo isto? O SAPO leu o livro de António Luís Marinho e partiu para uma conversa com o autor, para dar respostas a estas perguntas.
"O que mais me espantou foi a inexistência de informação, durante a preparação da operação"
Guilherme Alpoim Calvão é uma daquelas figuras complexas, com uma personalidade forte, do século XX português. Militar de carreira, foi o ‘pai’ da operação Mar Verde e comandou-a. Após o 25 de abril, juntamente com General António Spínola integra o Movimento Democrático de Libertação de Portugal (MDLP), um grupo político anticomunista que empreende várias ações violentas contra membros da esquerda portuguesa. Vê-se obrigado a viver no exílio, mas em 1978 consegue voltar a Portugal. O António Luís Marinho conheceu-o em 1994, por causa de uma série documental sobre a Revolução dos Cravos, e falou com ele várias vezes, até falecer em 2014. Qual a imagem que retém do Alpoim Calvão?
Uma das suas facetas era o de aventureiro, e a operação Mar Verde colocou isso a nu...
Era-o, completamente.
Mesmo depois do 25 de abril, pouco ou nada se sabe sobre o que se passou na noite de 21 para 22 de novembro de 1970, tampouco os antecedentes e as consequências daquela ação militar. Não é um buraco muito grande na memória histórica de Portugal?
À época, e em Portugal, o assunto não foi comentado. Mas mesmo depois do 25 de abril, das poucas vezes em que se fala com maior abertura sobre a operação é num livro publicado pelo próprio Alpoim Calvão, o De Conakry ao MDLP [publicado em 1976]. Quando o conheci, ele contou-me a história de forma muito resumida, depois ofereceu-me o livro. Foi então que vi que estava ali uma história que merecia ser contada.
Estamos a falar de uma intervenção militar portuguesa num país soberano, e com o qual não estávamos em guerra. Mas em 1963, por exemplo, e tal como admite o próprio Alpoim Calvão, já se faziam incursões militares em território da República da Guiné, em busca de guerrilheiros inimigos – neste caso, ao longo do rio Inxanxe. Parece que ele não tinha problema algum em galgar as linhas de fronteira, durante a guerra na Guiné portuguesa, ao ponto de se sentir contrariado quando veio a ordem para parar com essas ações.
Na Guiné, essas incursões eram normais. O território da Guiné estava cercado pelo Senegal, a norte, e pela Guiné-Conacri [a República da Guiné], a sul. Os soldados portugueses, por várias vezes, entraram no território destes dois países, especialmente pelo Senegal. Aliás, houve uma operação em 1973, a Operação Ametista Real, que ficou muito célebre, onde intervieram os comandos africanos de Portugal: estes entraram no Senegal e destruíram uma base do PAIGC que lá existia. Este tipo de ações não era inédito.
No entanto, estamos a falar de incursões em zonas de fronteira, o que não tem nada a ver com o que se passou em 1970, em que se entrou pela cidade de Conacri adentro.
Exatamente.
Em 1969, Calvão propôs a operação a Spínola. Com o tempo, ela vai ganhando cada vez mais objetivos, sendo um dos principais o derrube do governo de Sékou Touré, algo que seria feito com a ajuda de oposicionistas armados da Frente de Libertação Nacional da República da Guiné (FNLG), para implantar um regime que fosse da confiança de Portugal e que não colaborasse com o PAIGC, ou, pelo menos, que não deixasse os seus guerrilheiros instalar bases no país e circular com alguma liberdade por ele. A captura de Amílcar Cabral, o líder deste movimento independentista, também estava nos planos, assim como a destruição de quatro embarcações do PAIGC, que estavam nas águas da República da Guiné. A libertação dos 26 militares portugueses que aí estavam presos é outros dos objetivos, embora não figurasse entre os principais, mas, no fim, acabou por ser o único sucesso de toda aquela empreitada militar, a par da destruição dos barcos.
O PAIGC tinha recebido lanchas soviéticas que, do ponto de vista militar, eram muito mais modernas e superiores às lanchas portuguesas, o que assustou as chefias militares. Era um alvo importante. A guerra na Guiné portuguesa tinha também como palco os rios, pois o território é atravessado por uma série deles, os quais funcionam como se fossem estradas. Ocorreram muitos combates nos rios, daí que os fuzileiros portugueses tenham tido uma importância fulcral na guerra da Guiné.
Todo o plano era extremamente ambicioso naquilo que pretendia atingir. Portugal, a nível militar, não tinha qualquer tipo de historial recente ou experiência em ações desta envergadura, ao contrário de antigas potências coloniais como a França ou o Reino Unido. Houve aqui uma grande dose de aventureirismo?
Concordo que houve na operação uma dose de aventureirismo, típica do Alpoim Calvão e, de certa forma, também do Spínola. O general Spínola era um homem de ação. Vamos imaginar, por exemplo, que o governador e o chefe militar da Guiné era o Costa Gomes [antigo comandante militar em Moçambique e Angola, antes do 25 de abril], em vez do Spínola: se assim fosse, era completamente impossível que isto se tivesse realizado. Mas se fosse o Kaúlza de Arriaga [comandou as Forças Armadas em Moçambique e liderou, aí, a operação Nó Górdio, considerada um sucesso militar] já acredito que a operação Mar Verde se realizasse na mesma. O que aconteceu teve muito a ver com o perfil do chefe militar da Guiné à época.
Todavia, o que mais me espantou foi a inexistência de informação, durante a preparação da operação. Ela podia ter sido concebida se, por exemplo, na República da Guiné existisse uma infiltração imensa de informadores, de pessoas que dessem pormenores muito concretos sobre as hipóteses de sucesso, porque, na minha opinião, os portugueses acreditaram em coisas um pouco surreais. O meu livro, aliás, faz referência a várias situações surreais…
São bastantes. Por exemplo, quem planificou a operação confiou, em pleno, na memória de um militar português que tinha desertado e que esteve alguns dias em Conacri – mais tarde, acabou por se entregar às autoridades portuguesas. Acreditou-se que ele seria capaz de identificar muitos dos alvos a atacar, apesar de ter estado muito pouco tempo na cidade e não ter visto assim tanta coisa, além de que os únicos croquis do interior da prisão onde estavam os portugueses partiram do que se recordava. Usou-se uma lista telefónica para procurar os endereços dos locais a atacar, informação que foi depois cruzada com o que surgia num mapa da cidade. E, para obterem imagens de Conacri, recorreram a capas de discos e a postais turísticos. Atrevo-me a dizer que este planeamento é de um profundo amadorismo, tendo em conta que centenas de homens e seis navios de guerra iriam estar envolvidos. Não concorda?
Face aos meios que existem atualmente, a forma como se reuniu a informação para a operação pode parecer uma anedota. Olhando para os meios que existiam à época, não consigo dizer se houve um grande amadorismo, mas posso dizer, pelo menos, que foi bastante aventureiro. Vários passos da operação acabam por falhar porque não existia informação credível. Por exemplo, foram atrás do Amílcar Cabral quando nem sequer estava no país; vão para o aeroporto para destruir os aviões MIG [soviéticos] e não está lá nenhum [estavam noutra base, no interior do país]; falharam o ataque ao palácio presidencial porque se enganaram na morada, tendo antes atacado, por engano, a casa do bispo de Conacri. De facto, e como se costuma dizer, andaram ali um bocadinho aos papéis.
Para destruir as lanchas do PAIGC e da República da Guiné que estivessem junto à costa, Alpoim Calvão viajou até à África do Sul, entrou em contacto com os serviços secretos do país e conseguiu que lhe dessem cerca de 30 minas lapa. No regresso, trouxe esses explosivos consigo... num voo comercial da TAP.
As minas vinham dentro de sacos da TAP [risos].
Isso não é de um enorme risco? Obviamente que as minas estavam desarmadas, mas um defeito no material ou um incidente no seu transporte poderia causar uma explosão dentro de um avião cheio de civis.
Nos dias de hoje isso seria de outro mundo. Mas, naquela altura, a operação foi planeada de forma secreta. Os próprios soldados africanos que iam estar envolvidos, com exceção das chefias militares – que, na prática, eram portugueses europeus – nem sequer sabiam o que iam fazer. Inicialmente, disseram-lhes que iam para Cabo Verde. Só algumas horas antes da operação, quando já estavam muito perto da cidade, é que lhes foi dito o que iam atacar. Perceberam que aquela não era uma missão normal, pois as fardas que vestiam tinham sido feitas para serem muito parecidas com os do exército da República da Guiné: e, para não ocorrer confusões, traziam uma faixa no braço
“O último ataque em Conacri, comandado pelo Marcelino da Mata, foi um banho de sangue”
Foram mobilizados cerca de 200 guineenses, da República da Guiné, que se opunham ao regime de Touré, ligados à FNLG. Porque se escolheu este movimento, em particular?
Existiram contactos anteriores, na Suíça e, creio eu, igualmente em França, com dissidentes que os portugueses iam conhecendo. Mas mesmo este processo foi caricato. Foi, do género, ‘um diz aquilo, este apresenta o outro, aquele refere que há um grupo na Serra Leoa e um outro que está sabe-se lá onde’. Acabou por ser desta maneira [atabalhoada] que foram encontrar os voluntários que entrariam na missão. A certa altura, estava planeado ir buscar alguns elementos à Serra Leoa e tiveram de abortar a missão, isto porque eclodiu um golpe de estado no país: uma confusão. Além disso, os dissidentes da FNLG estavam muito pouco preparados, a maior parte deles não tinha qualquer tipo de experiência militar, pelo que tiveram de ser treinados, quase a correr, na ilha de Soga [na Guiné portuguesa].
Ou seja, escolheram, sem grande critério, um grupo de dissidentes que nem sequer tinha um treino militar adequado, acreditando que, mesmo assim, eles seriam capazes de derrubar o regime de Touré e tomar o poder?
Eu já desafiei um amigo meu, que é realizador, a fazer um filme sobre a operação Mar Verde. Seria um filme que teria todos os condimentos, desde os mais dramáticos aos mais cómicos.
E uma das personagens poderia ser Barry Ibrahima, um homem de 29 anos que foi recrutado pela FNLG, um ex-contabilista dos serviços das finanças da República da Guiné que fugira para o Senegal…
...Por ter desviado cerca de 250 mil francos guineenses. Foi mesmo assim. Temos de ter em conta que um dos objetivos era atacar Conacri julgando que existia lá uma força de dissidentes, a qual se iria juntar às tropas de dissidentes treinadas em Soga. Depois, todos juntos, tomariam conta da cidade enquanto os militares portugueses saíam. Só que nada disso aconteceu: ninguém se juntou à força que invadiu.
Esses homens acabaram por ficar sozinhos e à mercê de centenas de soldados cubanos, ali estacionados, que prontamente os subjugaram. Curiosamente, o quartel onde estavam os cubanos era um dos alvos da operação, mas, para não variar, não encontraram o local. As forças portuguesas conseguiram, não obstante, encontrar os quartéis onde estavam os soldados guineenses.
As tropas cubanas eram as que, em princípio, ofereceriam maior resistência. O ataque aos outros quartéis foi quase uma carnificina [as tropas governamentais estavam mal equipadas e malnutridas]. O último ataque, comandado pelo Marcelino da Mata, foi um banho de sangue.
O Marcelino da Mata é um dos militares da Guerra Colonial mais condecorados, sendo que a Assembleia da República fez passar um voto de pesar logo após a sua morte, em fevereiro deste ano, situação que causou polémica e fez ressurgir a acusação de que era um criminoso de guerra. Em 1995, quando o António Luís Marinho recolheu depoimentos junto dele, é o próprio Marcelino da Mata a admitir que, quando recebeu a informação de que a operação tinha terminado, matou a sangue-frio largas dezenas de tropas que se tinham rendido e juntado no quartel da Guarda Republicana, incluindo (e não sabemos se por engano) soldados dissidentes que aí foram ter para apoiar os portugueses. Ainda segundo ele, o próprio Alpoim Calvão ao saber do sucedido terá ficado furioso, mas, depois, não houve qualquer tipo de represália. Esse relato, bastante vívido, faz-nos pensar duas vezes sobre o que é, ou não, um herói de guerra.
O Marcelino da Mata contou-me histórias que achei estranhas... [silêncio]. Eu tentei conferir os depoimentos que me deu com outras fontes, e fui avisado de que ele era um bocado mitómano: se morriam cinco, ele dizia que eram 50, se morriam 50, para ele eram 500. Mas é verdade que ele entrou ‘de cabeça’ pela guarita do quartel da Guarda Republicana, porque ele era mesmo assim, enquanto militar.
Está a dizer que, no quartel e após ter recebido ordens para sair de Conacri, ele matou soldados governamentais que se renderam e tropas que estavam ao lado dos portugueses, sem fazer qualquer tipo de discriminação?
Exatamente. Isso foi confirmado por mim, junto de outras fontes. E o comandante Alpoim Calvão ficou mesmo furioso por ele ter matado os homens que estavam do nosso lado. Mas esta era a forma como o Marcelino da Mata lutava, a qual não era nada convencional. Era um indivíduo implacável, até desumano, em muitas situações, e não hesitava em matar: ele não tinha qualquer problema com isso.
Foi delineado algum plano, na operação Mar Verde, sobre o que fazer com as tropas que se rendessem aos portugueses?
Suponho que a ideia não era matar todos os que encontrassem, mas não sei se existia um plano para prisioneiros. E não deveria existir por causa da tal fantasia de que milhares de outros soldados se iriam juntar na oposição ao Sékou Touré, o que permitiria tomar conta da cidade e controlar tudo. Claro que nada disto aconteceu.
“Se os aviões MIG estivessem operacionais aquilo teria sido um desastre para os portugueses”
Um dos alvos falhados foi a emissora de rádio ligada ao regime, a qual continuou a transmitir mensagens do Sékou Touré, provando, assim, que ainda detinha o poder.
Existiam duas rádios. Uma foi atacada, sendo que o Marcelino da Mata deitou abaixo o emissor, mas a rádio principal não era essa. Mais um engano, portanto. Quando avançaram para a segunda rádio, o comandante da força, que era um comando africano, cortou-se um pouco. E foi essa rádio que nunca deixou de funcionar e de fazer apelos do Touré. Se existiam setores militares da República da Guiné minimamente dispostos a lutar contra o regime, assim que ouviram a voz do presidente a decisão que tomaram foi a de ficarem quietos.
Logo no desembarque, Januário Lopes, um comando africano que fazia parte do grupo encarregue de tomar de assalto o aeroporto e inutilizar os aviões MIG, decide desertar e entregar-se ao inimigo, e, com ele, foram cerca de duas dezenas de soldados. Pelos vistos, tomou essa decisão assim que descobriu que o alvo era Conacri e qual a missão.
Há outras versões sobre o que sucedeu. O Marcelino da Mata, numa entrevista que em tempos deu, disse que eles não se tinham entregado, que foram lá deixados porque não chegaram a tempo de embarcar nas lanchas que os levariam para os barcos [quando a operação foi dada por terminada]. Mas essa informação foi desmentida por várias pessoas com quem falei, e algumas referiram que o próprio Januário levou os outros desertores ao engano. Seja como for, o Januário queria mesmo entregar-se e ficar lá.
Pese embora a rendição, Touré acabou por não ser clemente para com o Januário Lopes. Ao fim de pouco tempo, o seu destino ficou traçado.
Ele e os restantes soldados que se renderam foram todos executados, pura e simplesmente.
Por volta das cinco da manhã do dia 22, Alpoim Calvão ordena o fim da operação e o retorno aos barcos. Não encontraram os caças MIG no aeroporto, nem existia sinal sobre onde estariam. O medo de que entrassem em ação e, inclusive, ameaçassem os seis navios portugueses que estavam junto à costa era bem real?
Se os MIG estivessem operacionais aquilo teria sido um desastre. Houve um que ainda sobrevoou, muito alto, a frota portuguesa.
Só que, pelo que hoje se sabe, estavam quase todos avariados e a necessitar de reparações.
Sim, mas o outro grande problema [para as forças leais ao presidente Touré] é que os pilotos desses aviões ainda estavam em fase de instrução. Não tinham treino suficiente. Seja como for, [e devido à falta de informação] havia o medo, por parte das forças portuguesas, de que pudessem levantar voo.
Os dissidentes da República da Guiné, que tinham desembarcado com os comandos africanos portugueses, foram apanhados de surpresa com esta retirada?
Atenção, é preciso frisar que regressaram aos barcos quem o quis. Muitos quiseram ficar. A ordem de retirada foi o reconhecimento de que não existia mais nada que se pudesse fazer em relação à missão: os grandes objetivos tinham falhado. Na prática, a operação resumiu-se à destruição das lanchas do PAIGC e à libertação dos presos portugueses. E mais nada. Claro que, dependendo da forma como se vê como tudo acabou, se pode dizer que o copo ficou meio-vazio ou meio-cheio. Para o Alpoim Calvão, o homem que chefiou a operação, ficou meio-cheio.
Mesmo assim, Alpoim Calvão não desistiu. Aos barcos ainda regressaram 80 soldados da FNLG, os quais foram, em pouco tempo, infiltrados numa zona de fronteira com a República da Guiné. O que lhes sucedeu?
Pouco depois de entrarem no território, foram rapidamente cercados e acabaram por ser mortos. O exército da República da Guiné, desta vez, já estava preparado.
A libertação, bem-sucedida, dos 26 militares lusos, acabou por servir para esconder o enorme fracasso que foi tudo o resto?
Sim! A ideia era operar um golpe de estado e prender ou matar o presidente, assim como capturar o líder do movimento nacionalista na Guiné Portuguesa. Ou seja, o que se queria era inverter toda a política de um país que era hostil a Portugal e transformá-lo numa nação amiga. No entanto, tudo isso falhou. Mesmo as lanchas do PAIGC que foram destruídas, essas devem ter sido substituídas por outras, cedo ou tarde. Sobrou, para alegria dos mesmos, a libertação dos portugueses que estavam lá cativos. Claro que, depois, criou-se a narrativa [pois a operação nunca foi oficialmente reconhecida por Portugal] de que eles é que tinham fugido e transposto a fronteira. Os militares resgatados até tiveram de assinar um documento que os obrigava a nunca poder falar do que realmente aconteceu: só o fizeram depois do 25 de abril.
Há suspeitas de que Portugal tenha recebido ajuda de outros países, além dos serviços secretos da África do Sul, que forneceram as minas?
A compra das armas usadas, as Kalashnikov [a famosa arma de assalto AK-47, de fabrico soviético], foi feita por um empresário português, que as comprou na Checoslováquia e até na União Soviética - na altura, já existia um grande mercado negro em torno das Kalashnikov. Não parece que tenha existido qualquer tipo de apoio de outros países. Contudo, eu acho que os serviços secretos franceses já deveriam saber qualquer coisa sobre o que estava a ser preparado.
Uma história que circulou foi a de que Sékou Touré sabia que alguém ia tentar uma ação militar contra ele. Essa possibilidade é real?
Cerca de uma ou duas semanas antes da operação Mar Verde, o Touré falava de um possível ataque contra a República da Guiné. Quando o ataque das forças portuguesas realmente acontece, ele parece ter ficado surpreendido, mas o Touré estava mais ou menos preparado para um acontecimento daqueles – por exemplo, ele estava no palácio presidencial [em vez de estar numa das suas residências]. Não sei se ele saberia das coisas com grande pormenor…
Sabia que algo estava prestes a acontecer, mas não de que forma?
Exatamente!
O Sékou Touré tinha um bom relacionamento com os EUA, nomeadamente por causa da bauxite, explorada no país por empresas norte-americanas [ainda hoje a República da Guiné é um dos maiores exportadores desta matéria-prima]. Há sempre a possibilidade de algumas informações lhe terem chegado ao ouvido, devido a um jogo internacional de interesses?
Sem dúvida. Alguém pode lhe ter dito: ‘atenção que algo pode estar para acontecer’.
“Admira-me que Marcello Caetano, um homem tão ponderado e cerebral, tenha autorizado a operação”
Esta missão militar, arquitetada pelo Calvão e o Spínola, jamais teria acontecido sem que existisse, no fim, um consentimento político por parte do governo português. A questão é que há toda uma névoa sobre o que levou o regime a concordar com esta arriscada opção. Para começar, o ministro do Ultramar, à época o Silva da Cunha, admite que a operação não estaria bem estruturada e tinha todo o potencial para correr mal, danificando ainda mais, inclusive, a imagem internacional de Portugal. Viana Rebelo, o ministro da Defesa, mostra-se totalmente contra e recusa-se a assumir a responsabilidade de uma operação daquelas num país soberano. Só que o Presidente do Conselho, Marcello Caetano, e ignorando o que os seus ministros lhe dizem, depois de falar com Calvão e Spínola fica convencido e ordena que avancem com o ataque. Como conseguiram arrancar dele o ‘sim’ final? Estamos a falar de uma personagem política que, por natureza, era atreita a riscos desnecessários.
Não há registos do que foi falado nessa reunião com Marcello Caetano, pelo que não há certezas sobre o que levou àquela decisão. Na minha opinião, deveu-se à confiança que ele tinha no general Spínola – uma confiança que acabou por perder, nos anos seguintes. Parece-me que o Marcello Caetano não se quis incompatibilizar com ele. Admito que eu próprio fico admirado como é que um homem tão ponderado e cerebral, como era Marcello Caetano, tenha aceitado e autorizado a operação Mar Verde. Parece evidente que o comandante Alpoim Calvão terá tido uma capacidade muito grande de o convencer.
A decisão do Marcello Caetano não poderá ter sido fruto de uma incapacidade em encontrar alternativas para a situação na Guiné portuguesa, um ato de desespero?
À primeira vista parece mesmo isso: desespero. Contudo, este episódio deu-se em 1970. Se tivesse acontecido em 1973, por exemplo, então já se poderia dizer que era o desespero total e que valia tudo. Só que em 1970 a guerra contra a guerrilha [do PAIGC], apesar de não estar a ser fácil para os portugueses, ainda não estava na fase dramática que poucos anos depois se viveu. A meu ver, a decisão do Marcello Caetano terá sido uma surpresa para o próprio Spínola, e eu até coloco a hipótese se o Spínola não terá tido a esperança de que Marcello Caetano recusasse a operação. Simplesmente, custa a crer que um homem tão fora do meio militar, como era o Presidente do Conselho, concordasse com aquilo. Aquilo que o motivou a aceitar a operação é uma dúvida que ficará para a história.
Quando os navios portugueses ainda estavam a regressar de Conacri (com destino a Bissau), Alpoim Calvão envia uma curta mensagem, a bordo de uma das embarcações, em que frisa que o golpe de estado falha porque não tomaram o posto de rádio nem o aeroporto. Isto não soa a uma desculpa, feita à pressa e já antecipando a críticas que iriam surgir, para o que foi, afinal, um enorme falha a nível de planeamento?
O Calvão previu imediatamente qual seria a reação do Spínola. E, de facto, foi uma reação forte. Planear uma operação daquelas sem serviços de informação foi, logo à cabeça, o principal erro. A PIDE ainda chegou a introduzir um indivíduo em Conacri, mas, na altura dos acontecimentos, esse homem já não estava lá.
O comodoro Luciano Bastos, envolvido na operação, descreve, no seu diário pessoal, que Spínola, num tom agressivo e revelando agitação, usou palavras e termos bastante ásperos para com Calvão. Não obstante, o general acabou por escrever um despacho de louvor ao comandante Alpoim Galvão, poucos dias depois. O Spínola tinha medo de que o seu nome fosse enrolado naquele fracasso militar?
Concordo que também foi por causa disso. Tentou, um pouco, salvar a sua pele. Ao mesmo tempo, Spínola sabia que continuava a precisar do Calvão para outras operações militares. Com esse documento, o general [oficialmente] reconhece que ele fez tudo o que poderia fazer, além de que evitou ter em Alpoim Calvão um inimigo – evitou que se incompatibilizassem. Houve um grande alarido inicial, mas depois as coisas acalmaram-se.
Fora do círculo militar, o Governo português teve uma real noção do que aconteceu?
A minha suposição é a de que tudo ficou dentro de um meio muito restrito de pessoas. Acredito, sinceramente, que muitos ministros nunca chegaram a saber o que aconteceu. Ficou cingido a um círculo que envolvia, além do Marcello Caetano, os ministros dos Negócios Estrangeiros, da Defesa e do Ultramar, além de um ou outro elemento de confiança dentro do Governo.
A República da Guiné denuncia à comunicação social, e junto das Nações Unidas (ONU), que foi vítima de um ataque militar por parte de Portugal. Mas parece que, fortuitamente, a contrainformação portuguesa consegue ganhar pontos e colocar em dúvida a narrativa (verdadeira) que apresentaram. Ajudou o facto de que Sékou Touré não era, de forma alguma, uma personagem política recomendável?
O Touré era um ditador, facínora e sanguinário, que já tinha enfrentado outros golpes de estado, pelo que reunia pouquíssimas simpatias a nível internacional. Se a operação Mar Verde tivesse como alvo o Senegal, onde o presidente era o Léopold Senghor, teria sido um escândalo mundial, sem sombra de dúvidas, apesar de o Senegal também apoiar a guerrilha guineense e aí existirem bases do PAIGC. Só que o Léopold Senghor era uma figura completamente diferente, era um homem sempre aberto ao diálogo e que chegou a ser intermediário em negociações de paz. Ajudou muito à narrativa portuguesa, portanto, que a queixa fosse feita por Sékou Touré: a ideia que se tentou passar foi a de que ‘não tivemos nada a ver com isso, foi o homem que inventou tudo, é só mais uma das suas mentiras’. À contrainformação portuguesa também ajudou que, em França, uma série de jornais que eram ‘simpáticos’ em relação ao regime português ajudassem a vender bem a história.
Seja como for, Touré acabou por conseguir reforçar ainda mais o seu poder na República da Guiné, tendo usado a invasão e o golpe falhado como justificação para afastar e executar potenciais opositores, incluindo figuras completamente inocentes.
O bispo de Conacri, por exemplo, cuja casa foi tomada de assalto por engano, foi acusado de conspirar e preso.
“Portugal não estava tão só como se possa pensar: a Alemanha foi um basto de venda de armas, assim como a França, e os EUA fechavam os olhos”
Três dias após a operação, é enviada pela ONU uma missão que vai a Conacri perceber o que se passou, e os factos acabam por vir ao de cima. O Conselho de Segurança da ONU, com a abstenção da França, Grã-Bretanha, Espanha e EUA, aprova a 8 de dezembro um documento que atribui a Portugal a autoria do ataque e condena a ação militar, ao mesmo tempo que “pede ao governo português” o que já constava em anteriores resoluções, ou seja, que “aplique imediatamente às populações dos territórios sob sua dominação os princípios da autodeterminação e da independência”. Na prática, que tipo de consequências concretas, para Portugal, resultaram deste pronunciamento de culpa e deste “pedido”?
Portugal já estava muito ‘batido’ no que respeitava às resoluções da ONU, devido à questão colonial, mas, pura e simplesmente, nem sequer as respeitava. Para Portugal, a aprovação deste documento de condenação era só mais um: o país já andava nisto, com a ONU, desde 1955, quando entrou na organização. O governo já nem levava muito a sério as várias resoluções que desde então foram sendo aprovadas, por causa das colónias.
A delegação da ONU que foi a Conacri chegou a entrevistar, por exemplo, o Januário Lopes e os homens que se renderam com ele, os quais confirmaram o que verdadeiramente se passou. Não existiam dúvidas, para aquela delegação, de que foram soldados portugueses que estiveram envolvidos no ataque. Mesmo assim, a contrainformação portuguesa ainda tentou criar a história de que o Januário era um desertor e que tinha roubado: tentaram denegri-lo, mas junto da ONU isso não pegou.
Na prática, não aconteceu nada a Portugal. Os EUA, por exemplo, que votou várias resoluções contra Portugal, nunca deixou de fechar os olhos quando, por exemplo, o armamento que chegava ao exército português via NATO era usado na Guerra Colonial.
No caso dos EUA, a Base Aérea das Lages, que na altura era importante no contexto da Guerra Fria, pesava no jogo político e diplomático.
O uso da Base das Lages foi sempre uma contrapartida. Portugal fazia sempre uma certa ameaça através dela [a ameaça de que não deixaria a força aérea norte-americana usá-la], caso os EUA fossem demasiado hostis em relação à questão das colónias. A história do "orgulhosamente sós”, quando se fala de Portugal durante a ditadura, nunca foi bem assim. O país, à época, não esteve tão só como se possa pensar: a Alemanha foi um basto de venda de armas, assim como a França; os EUA não vendiam, mas ia-se buscar ao Canadá e eles fechavam os olhos. O equipamento para a Guerra Colonial tinha de vir de algum lado, e o problema é que acabava sempre por chegar. Portugal nunca teve problemas, sem ser o financeiro, em comprar armas.
Entretanto, a guerra na Guiné continua, até ao ponto em que se torna insustentável para o exército português fazer face aos avanços da guerrilha.
O ponto de viragem na Guiné é quando a aviação portuguesa começa a ser abatida, quando o PAIGC começa a usar os Strela [mísseis terra-ar, fabricados na União Soviética, que podiam ser disparados ao ombro e revolucionaram as guerras de guerrilha]. Nesse momento, começam a ficar isolados vários quartéis, os quais eram abastecidos pela aviação e que, quando sofriam uma ameaça, podiam contar com a sua intervenção. O PAIGC nunca chegou a ocupar as grandes cidades, na Guiné, embora as tenha ameaçado e até bombardeado os seus arredores. Contudo, a pressão da guerrilha acabou por se tornar tão grande que se tornou evidente que Portugal não aguentaria, por muitos mais anos, a situação. Era impossível e insustentável manter a guerra durante mais tempo, tanto do ponto de vista humano – mesmo que recrutassem, localmente, soldados –, como do ponto de vista financeiro. A certo momento, mais de metade do orçamento de estado estava a ser aplicado na Guiné.
É preciso frisar que Portugal, na Guerra Colonial, combateu em três frentes e durante vários anos – Guiné, Angola e Moçambique –, apesar de sermos um país pequeno, com apenas dez milhões de pessoas. Não sei quantos países conseguiriam tal coisa. Isto só aconteceu porque estávamos em ditadura, pois se houvesse uma democracia em Portugal tal nunca teria acontecido daquela forma. É verdade que a França também teve uma guerra colonial, com a Argélia, mas resolveu-a politicamente porque era uma democracia, porque a oposição política manifestou-se contra ela, porque a imprensa, que era livre, teve um papel enorme na oposição à mesma. Em Portugal, como se estava sob ditadura, foi mais fácil aguentar a guerra durante 14 anos, porque a política do regime era a de que tínhamos de ficar em África, embora tivesse sido à custa de sacrifícios enormes: humanos e económicos.
Já não estamos em ditadura. Portanto, qual o motivo para o Estado português ainda não ter reconhecido a operação militar secreta que foi realizada naquele mês de novembro, há mais de meio século?
Oficialmente, a operação nunca foi admitida. Como nunca se o fez, o Estado português, mesmo depois do 25 de abril, preferiu não falar mais do assunto. É a velha ideia do ‘pode ser que se esqueçam’. Nós, portugueses, temos um pouco o hábito de esquecer as coisas, mesmo em relação à Guerra Colonial. Mas tenho dúvidas que isto seja mesmo esquecido, pois, por exemplo, sei que uma historiadora guineense está neste momento a escrever um livro precisamente sobre o ataque: ela está a tentar reavivar a história do que se passou.