Por vezes, quando olhamos para os cartazes que anunciam um filme ou para os trailers que circulam na Internet, ficamos sem perceber se estamos perante uma longa-metragem de ficção-científica ou uma obra ligada ao domínio do fantástico. Ou, então, se vamos ver mais uma imitação dos filmes da Marvel e da DC Comics (com os seus impolutos e previsíveis super-heróis) ou algo um pouco mais refinado.
No primeiro caso a confusão é justificável, pois a fronteira entre os dois géneros é muito ténue, a exemplo do que fez George Lucas na primeira trilogia de A Guerra das Estrelas, com a fusão entre um universo dominado pela alta tecnologia e o misticismo da “força”: embora os elementos ligados ao fantástico estejam, aqui, subjugados ao imaginário da ficção-científica.
Façamos logo a pergunta. Afinal, o que poderemos esperar de Duna, a película da Warner Brothers que custou 142 milhões de euros e que quer deixar marca no mundo cinematográfico pós-pandemia? Vamos ver ficção científica ou fantasia; heróis com poderes super-humanos contra vilões odiosos; uma maniqueísta história do bem contra o mal?
Este artigo vai tentar evitar spoilers desnecessários em relação ao filme Duna, realizado por Denis Villeneuve e que se estreia nos cinemas portuguesas a 21 de outubro. Não obstante, é preciso ter em conta que ele se baseia no livro homónimo publicado pela primeira vez no distante ano de 1965, e que, depois dele, o autor, Frank Herbert escreveu mais cinco livros até 1985 que fazem uma importante continuação desta saga. Ou seja, há muito que os fãs e leitores desta hexalogia conhecem a história quase de trás para a frente. Quanto aos que apenas leram o primeiro livro e, partir dele, teceram as suas análises quanto ao que o filme poderá ser, é quase certo que não perceberam as importantes mensagens e ideias que Frank Herbert destilou em milhares de páginas, ao longo de quase duas décadas.
Toda a saga é uma história sobre fanatismo religioso, a perigosa ilusão de que estamos destinados a ser salvadores e a forma como o poder absoluto nos corrompe.
Duna não é uma obra sobre a ascensão de um messias pelo qual todos torceremos, nem um épico onde os oprimidos se juntarão para lutar contra forças despóticas, tampouco cria uma vincada barricada com heróis e vilões de cada lado – embora a tendência seja para que nos afeiçoemos mais à personagem principal e àquelas que gravitam em torno dela, auxiliando-a no seu trajeto. Acima de tudo, e resumindo de forma bastante breve, toda a saga é uma história sobre fanatismo religioso e as guerras que têm lugar quando habilmente alguém o consegue usar; perscruta a síndrome do super-herói, a ilusão de que estamos destinados a ser salvadores; alerta para o perigo de o poder absoluto, um poder semelhante ao de um deus, estar concentrado nas mãos de uma só pessoa; e analisa com todas as nuances a forma como esse mesmo poder corrompe aqueles que de início parecem ser os nossos heróis.
Política, religião e economia: tudo isto se interconecta de modo complexo no universo criado por Frank Herbert, um mundo onde todas as forças em ação entram em liça para controlar uma matéria-prima única, capaz de dar o poder nos três domínios já referidos – um pouco como ainda hoje sucede com o ouro negro da Terra, o petróleo.
Uma das grandes diferenças é que beber petróleo – ao contrário da exótica especiaria de Duna – não dos dá a capacidade de presciência, a possibilidade de vislumbrar e conhecer o futuro, um dom que muitos desejam, mas que se torna numa verdadeira maldição quando é usado para impor uma mesma visão do que é e deverá ser o melhor destino para a humanidade. Mas sobre isso, e como se lida com este problema, não mais falaremos, para que a emoção e o mistério não se percam enquanto vê o filme. Contudo, fica desde já mencionado um dos elementos místicos que caracterizam Duna. E há mais.
Se Villeneuve for fiel à obra de Herbert, então não esteja à espera de encontrar um herói supremo. Quando vir o filme, desconfie de qualquer personagem que se assemelhe a um messias, detentor de um poder demasiado desproporcional.
A personagem Paul Atreides será o protagonista do primeiro filme de Denis Villeneuve, estando previsto um segundo filme (sem data anunciada) que fará a continuação da história, pelo que não se sabe se o realizador canadiano juntará a essa segunda parte acontecimentos e ideias narradas nos outros livros de Frank Herbert.
Quem é Paul? Para uns ele é o Kwisatz Haderach, um termo usado pela organização matriarcal Bene Gesserit e que se refere ao “o escolhido”, o ser humano, sob seu controlo, capaz de conduzir a raça humana a um novo paradigma existencial. Debaixo de uma fachada pesudo-religiosa, o que lhes dá uma aura de misticismo, força e impregnabilidade, as Bene Gesserit interferem nas políticas do império galáctico, desenvolvem um milenar e meticuloso programa de experimentação genética com base em matrimónios escolhidos a dedo, e, como se não bastasse, desenvolvem uma intensa engenharia religiosa em vários lugares do Universo, tudo para proteger os seus interesses. Todavia, o que engendraram ao longo de tanto tempo acaba por não correr da forma que esperavam.
Para outros, Paul é igualmente o Muad'Dib, alguém que se torna no messias libertador – Frank Herbert baseou-se na palavra arábica mu'addib, que significa “professor”, sabendo que no antigo tempo dos califas um mu'addib era aquele que os governantes do mundo islâmico contratavam para ensinar as suas crianças. Um libertador que, conscientemente ou inconscientemente, educa e treina os que o seguem como se estes fossem crianças? Esta é uma nuance que não terá escapado a Frank Herbert, pois faz parte da análise que sempre tentou fazer dos diferentes e complexos modos como se pode conquistar, exercer e manter o poder.
Se Villeneuve for fiel à obra de Herbert, então não esteja à espera de encontrar um herói supremo. O mote é simples, quando vir o filme: desconfie de qualquer personagem que se assemelhe a um salvador messiânico, detentor de um poder demasiado desproporcional em relação aos que o rodeiam, sejam eles amigos ou inimigos. Espírito crítico, exige-se, até porque é isso que Frank Herbert sempre pediu aos seus leitores.
Estou a pagar um bilhete de cinema para ver ficção científica ou fantasia?
Aqui chegados, subsiste outra pergunta fundamental, colocada no início deste artigo. Afinal, Duna pertence ao domínio da ficção científica ou ao do fantástico? Vamos por partes.
Numa tentativa simples de separar as águas, pode-se afirmar que a ficção científica enuncia “um espaço público modificado pela tecnologia” e “um espírito transformado pela ciência”, além de que “está ligada à tomada de consciência das possibilidades que a tecnociência abre à humanidade”. Esta é, pelo menos, a explicação que o francês Éric Dufour, especialista em filosofia do cinema, escreve no livro O Cinema de Ficção Científica.
Todos os elementos místicos de Duna, os quais roçam o sobrenatural, têm origem na racionalidade científica, são fruto de uma intervenção tecnocientífica destinada a transformar o devir da humanidade.
Segundo este autor, uma obra entra na esfera da ficção científica se contiver, no mínimo, uma das três seguintes características: estar “ligada ao desenvolvimento científico e às suas consequências”; aquilo que é extraterrestre surge representado na forma do “outro”, com as suas diferenças em relação ao “nós”, os terráqueos; tem de estar relacionada com a evolução e futuro da espécie (ou, pelo menos, da sociedade) humana.
Efetivamente, Duna encaixa-se na primeira e última destas características, pois todos os seus elementos místicos, os quais roçam o sobrenatural, têm origem na racionalidade científica, são fruto de uma intervenção tecnocientífica destinada a transformar o devir da raça humana.
No entanto, o que não faltam são películas, capazes de reunir uma ou todas estas condições, que transvasam para outros géneros, sem que a ficção científica seja a mais marcante. É o caso de Alien: O 8º Passageiro, de Ridley Scott (1979), um filme que, para sermos mais rigorosos, pertence mais ao género de terror. As fronteiras entre diferentes géneros são ténues e estão longe de serem estanques.
Se quisermos ser mais puritanos, para separar o trigo do joio, a distinção que Éric Dufour apresenta em seguida é lapidar, enfiando Duna dentro da luva da ficção científica:
“Enquanto a ficção científica apresenta sempre um momento situado no tempo e está intimamente ligada a um sentido histórico, a fantasy [o fantástico], pelo contrário, apresenta um momento sempre sem história, logo sem devir (nem passado nem futuro), completamente bloqueado num estádio que de nada provém e a nenhum lado irá. […] Onde a ficção científica argumenta com a capacidade do Homem [do ser humano] para defrontar a natureza e dominá-la, a fantasy sublinha a naturalidade do Homem e as forças inefáveis e indizíveis da natureza.”
Apesar de serem dois géneros diferentes, Dufour relembra que podemos estar diante de duas maneiras diferentes de interpretar um mesmo facto ou acontecimento. Tanto assim é que na segunda trilogia de A Guerra das Estrelas George Lucas troca o misticismo (o fantástico), como forma de explicar a existência da "força", por um argumento bem mais racional e científico: afinal, tudo se deve a criaturas microscópicos – os midiclorianos – que vivem dentro dos seres vivos, em simbiose com eles, dando-lhes acesso a poderes que mais ninguém tem.