Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar
Gabriel Mendes
"A leitura é exigente e lenta, mas o livro prendeu-me dias a fio. Cada linha é uma ideia, cada parágrafo um tratado filosófico, cada capítulo uma obra-prima. Adriano foi um dos “cinco bons” imperadores romanos e governou no primeiro século da era comum. Yourcenar, cultíssima em matérias clássicas, faz uma espécie de autobiografia ficcionada de Adriano, num registo epistolar e confessional. O imperador, doente e no leito da morte, escreve ao filho-adotivo, Marco Aurélio, instruindo-o para se tornar num homem melhor e preparando-o para o suceder no trono. Entretanto, conta-lhe a história da sua atribulada vida.
As memórias envolvem grandes temas, como o poder e a fragilidade, o amor e o esquecimento, a ambição e o medo, a vida e a morte; mas também a viagem, o sono ou os prazeres humanos. Foi na apreciação filosófica destas e outras matérias, mais do que na história em si, que Yourcenar me agarrou.
A fórmula certeira deste livro é referida no posfácio pela própria autora: «Um pé na erudição, outro na magia, ou, mais exatamente e sem metáfora, nesta magia simpática que consiste em nos transportarmos em pensamento ao interior de alguém».
São 250 páginas de puro prazer, expurgadas do supérfluo. Adriano é uma janela para o interior da nossa essência."
Os Miseráveis, de Victor Hugo
Hermenegildo Borges
"Este tempo muito difícil que todos nós vivemos, de pandemia e de confinamento, também dá para fruir da leitura contínua, tantas vezes adiada por falta de tempo, de uma obra extensa mas sublime como esta.
Além da descrição nua da miséria, das desigualdades sociais e da miséria extrema que flagelava, tão duramente, as crianças órfãs ou filhas de pais indigentes e criminosos na cidade de Paris do séc. XIX, gostei, muito particularmente, da denúncia que Victor Hugo faz da doutrina do positivismo jurídico que eleva a lei, uma construção humana, à condição de valor absoluto durante todo o século XIX e metade do século XX.
Victor Hugo faz incarnar no Inspetor Javert o intérprete que toda a vida se guiou pela rigorosa obediência à lei escrita e que, ao fim de muitas peripécias, é assaltado por violentos escrúpulos de consciência, perante a necessidade de conciliar o estrito cumprimento da lei com valores mais altos do que a lei. Essa crença, no valor absoluto da lei, desmoronou quando Javert foi confrontado com valores bem mais elevados do que a mera letra da lei. Foi devido a essa extrema angústia, de não poder aplicar a lei nem poder ir contra esses novos valores que se elevavam acima dela, que Javert se suicidou por afogamento, no rio Sena."
A Gorda, de Isabel Figueiredo
Inês Melo
"Se a pandemia trouxe alguma coisa de positivo foi o tempo que ganhei para me dedicar a ler (ou melhor, deixei de ter desculpa para não o fazer). O livro que me marcou mais foi A Gorda, da Isabela Figueiredo. Já tinha lido Cadernos de Memórias Coloniais e decidi começar o ano de 2021 com esta outra obra dela, que já tinha comprado há uns anos mas que estava ‘esquecida’ na estante. Como alguém que sofreu, e sofre, de problemas de peso, e de problemas de imagem daí derivados, não nego que aquilo que me empurrou para o livro tenha sido uma senda existencial de ler sobre alguém que se debate com o mesmo que eu, todos os dias. Mas a narrativa de A Gorda e da sua protagonista extravasa o que o título evoca.
A Isabela é a escritora que eu almejo um dia ser. Ela tem um dom invejável, aquele que todos nós, que querem ganhar a vida a contar histórias, gostaríamos de ter: ela escreve como as pessoas pensam, é uma escrita fluida, associativa, que parece vir do ato de recordação. É uma escrita despretensiosa, da beleza dos pequenos detalhes, das imagens e relações simbólicas que vai estabelecendo. No tempo em que vivemos, parece-me que vejo cada vez mais a beleza nesses atos de recordar, de pensar nas ligações invisíveis e simbólicas que vamos construindo nas nossas vidas.
Como cineasta, à medida que lia este livro ia construindo um filme na minha cabeça. É um livro tão cinematográfico, de imagens tão fortes, cujas cenas evocam planos de um filme hipotético. Aliás, se pudesse, transformaria este livro num filme, o qual gostaria de realizar, mas não sei se alguma vez lhe conseguiria fazer justiça."
O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati
João Vieira
"Durante a pandemia nem sempre foi fácil conciliar a vida familiar com a profissional. À semelhança de milhares de pais portugueses na mesma situação, estou em teletrabalho juntamente com a minha mulher e somos pais de um menino de três anos que ainda tem pouca autonomia e que precisa muito da nossa atenção. Durante o período de confinamento, depois de um dia desgastante a tentar conciliar os dois mundos, a energia mental para saborear um livro escasseia. Mas sentia necessidade de ter esse escape e de me afastar dos ecrãs. Teria por isso de ser um livro que não me exigisse um elevado esforço mental para acompanhar.
Tinha um livro debaixo de olho há algum tempo, recomendado por um amigo. Numa noite, depois de um desses dias atribulados de confinamento, decidi começar a ler. Terminei-o numa semana com pena de o ter acabado de ler tão rapidamente. O livro de que vos falo é O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati, e a leitura foi-me especial porque aborda a forma como em algum momento das nossas vidas tomamos (ou não) algumas decisões ou como, muitas vezes, as procrastinamos.
Deixo-vos com umas das passagens de que gostei particularmente: «Entretanto, o tempo passa a correr, a sua batida silenciosa marca, cada vez mais apressada, o compasso da vida; não pode parar nem por um instante, nem sequer para olhar para trás. 'Pára, pára!', apetece-nos gritar, mas percebemos que é inútil. Tudo se afasta a correr.»"
Deus - Uma Biografia, de Reza Aslan
José Araújo
"Na pandemia não li tanto como costumo fazer. Senti-me preso, mesmo que a minha vida esteja muito resumida a um quarto [devido a uma doença crónica]. Mas Deus - Uma Biografia, do Reza Aslan marcou-me. Não sou crente, nem procurava uma experiência religiosa, apenas estava fascinado pelo tema. O livro tenta encontrar resposta para a pergunta: como nasceu a ideia de alma e de Deus? Através da caminhada que a humanidade fez ao longo da história, Reza Aslan procura os primeiros contatos com a descoberta da alma e de Deus, a evolução destes conceitos, o motivo para a humanidade precisar de um deus.
Fiquei agarrado logo nas primeiras páginas, porque me levou por uma viagem fascinante, em busca das ideias que revolucionaram a nossa forma de ser e de sentir o mundo. Talvez a alma tenha começado a ter espaço na vida humana quando começámos a enterrar e a proteger os nossos mortos, ou quando desenhámos, numa gruta em França, o que poderá ser a primeira imagem representativa de Deus [uma figura antropomórfica, encontrada na caverna de Les Trois-Frères, datada de há 15 mil anos]. Os nossos antepassados viviam e morriam e isso tinha de ter um significado ou uma continuidade. Eles precisavam de encontrar rituais, os quais seriam caminhos para uma eternidade.
Ao ler, procurei as minhas próprias respostas. Por exemplo, que Deus não nasceu de uma incompreensão face ao que é natureza, mas, talvez, da uma necessidade de não querer morrer. Quando fechei o livro, na minha mente tinha muitas coisas, como a recordação da minha tia que, quando eu era criança, tentava ensinar-me a rezar, embora nunca tenha aprendido. Era a sua fé, a herança dos nossos antepassados.
A minha mente foi desafiada a cada página do livro. Fez-me sentir que a pandemia não é o fim. É assustadora porque temos muita informação sobre ela, mas o conhecimento pode trazer o medo."
O Poder Sem Limites, de Anthony Robbins
Vanessa Colaço
"Quando compramos uma máquina de lavar roupa, ela vem com um livro de instruções. O mesmo não acontece com uma máquina chamada cérebro humano. Com tantos botões e programas é fácil ficarmos perdidos. A roupa sai tingida ou mal lavada e não sabemos bem o ‘porquê’. Na realidade, a pergunta certa é ‘como’: o que fizemos, especificamente, para a roupa ficar assim? Que processos ou sequência de botões usámos para isso acontecer? Este livro, do Anthony Robbins, foi, para mim, um verdadeiro livro de instruções, um Do it Yourself para mim.
Escrito por um sonhador que tinha tudo para que as coisas lhe saíssem erradas, mas a quem quase tudo correu certo, este livro correu e continua a correr o mundo como um livro de autoajuda. No entanto, olhar para ele como tal é ver apenas a ponta do icebergue. O Poder Sem Limites introduziu-me à metodologia da Programação Neurolinguística (PNL), um palavrão que se foi tornando sexy.
Com o livro ganhei as primeiras aprendizagens sobre ‘como’ funciona o meu sistema interno, ou seja, a minha máquina de lavar. Sobre o como tomo decisões, como interpreto situações, como me avalio a mim mesma e ao mundo à minha volta. Descobri como isto sucede de uma forma pragmática e segundo o ponto de vista dos processos neurológicos.
Durante a pandemia, já depois de ter feito cursos de especialização em PNL, voltei a lê-lo e a consultá-lo como se fosse um amigo que nos relembra como é lidar com a incerteza, a insegurança ou o medo."
Mulheres, Raça e Classe, de Angela Davis
Bárbara Góis
"Revisitar é sempre importante, principalmente porque as experiências de vida, cumulativas como são, acabam por nos acrescentar bagagem importante para apreendermos novas lições das obras que já lemos, e também dão capacidade de forjar, com essas mesmas lições, ferramentas de transformação da realidade. Por força das últimas grandes mobilizações antirracistas e face à necessidade de conceber respostas às questões atuais do racismo e da violência policial em Portugal, revisitei o clássico Mulheres, Raça e Classe, da Angela Davis.
É um livro em que a autora faz uma análise, detalhada, sobre as diferentes maneiras como a escravidão determinou e o racismo continua a determinar as narrativas construídas sobre as mulheres negras, nos Estados Unidos da América e no mundo. Angela Davis acaba por concluir que a escravidão [quando era legal] e o racismo de hoje são estruturais para a existência do sistema capitalista, um sistema que explora o trabalho de toda a humanidade e também a natureza.
Mas isto é feito pelo capitalismo através de diferentes recursos. É precisamente isso que Davis diz no livro, explicando quais foram os recursos violentos utilizados por colonos, latifundiários, industrialistas e capitalistas desde a fundação dos EUA, passando pela incapacidade da “primeira vaga de feminismo” em romper, até à década de 1980, com conceções racistas, a que se junta o impacto que tem um sistema judicial punitivo na manutenção das dinâmicas do sistema capitalista em que vivemos."
Encíclica Fratelli Tutti (Todos Irmãos), de Papa Francisco
Deolinda Machado
"A 3 de outubro de 2020, em Assis [Itália], o Papa Francisco assinou a Encíclica Fratelli Tutti (Todos Irmãos) dedicada à fraternidade social. O Papa perpassa temas recorrentes da doutrina social da Igreja [Católica Apostólica Romana]. Nele é feito um convite, conforme explica o Cardeal José Tolentino Mendonça, para «repensar os nossos estilos de vida, as nossas relações, a organização das nossas sociedades e sobretudo o sentido da nossa existência».
Identifico-me totalmente com esta leitura dos sinais dos tempos, com esta "bússola" que precisamos de afinar, no caminho comum que fazemos como humanidade, onde a dignidade da pessoa tem de ser central e para todos, sem exceção. A situação de pandemia e o que dela resulta para as populações, no que concerne à saúde e aos problemas relacionados com o mundo do trabalho - desemprego e pobreza galopantes -, constituem preocupações de fundo.
Aliás, destaco o número 162 da Encíclica, que diz: «A grande questão é o trabalho». […] «Não há pobreza pior do que a que priva do trabalho e da dignidade do trabalho». É que o trabalho realiza pessoal e socialmente, ele «não é só um modo de ganhar o pão, mas também um meio para o crescimento pessoal, para estabelecer relações sadias, expressar-se a si próprio, partilhar dons, sentir-se corresponsável no desenvolvimento do mundo e, finalmente, viver como povo»."
Revolução e Contrarrevolução em Portugal, de Nahuel Moreno
Danilo Moreira
"É um livro que fortaleceu a minha ideia de que os direitos humanos nunca são garantidos e que é necessário lutar por eles, continuamente. Por outro lado, devemos estar atentos e envolvidos sem nunca descurar as conquistas [sociais e políticas], por melhores que elas possam ser. Também fiquei a compreender qual motivo para o 25 abril de 1974 não ter sido mais consequente.
Há manobras de distração, por vezes de pessoas ou organizações em que confiamos, que pensamos terem surgido ou que foram criadas, numa primeira fase, para nos defender até às últimas consequências, mas que acabam por ser verdadeiras formas de contrarrevolução e, por conseguinte, nos fazem baixar a guarda.
A história que aprendemos na escola e a que nos transmitem pelos mais diversos meios, sobre o 25 de abril, nem sempre batem certo com a realidade, ou, no mínimo, pode haver algumas lacunas na informação, negligenciadas (propositadamente ou não) em prol do interesse de uma minoria, assim como, por outro lado, existem pontos de vista mais próximos da realidade e factuais que merecem ser lidos e relidos com maior atenção,
A história ensina-nos. A análise feita por Nahuel Moreno mostrou-me, por exemplo, que uma participação ativa na sociedade civil passa pelo nosso envolvimento coletivo, seja enquanto organizações de bairro, estudantis, coletivos que lutam pela justiça climática, a justiça laboral, o direito à habitação, e outros mais que procuram combater o machismo, racismo, xenofobia ou a homofobia. Se queremos um mundo melhor, necessitamos mesmo de nos envolver de alguma forma e contribuir como pudermos."
Lições de Sociologia, de Theodor Adorno
Pedro Pereira Neto
"Em 1968, um ano antes do seu falecimento, Theodor Adorno lecionava pela última vez o curso de Sociologia. Fê-lo num contexto particular, com algumas semelhanças ao atual: o da promoção incessante do empirismo positivista, isto é, de uma visão e prática científicas baseadas em evidência matemática. Na base desta, como hoje, o risco de uma certa ingenuidade, segundo a qual a realidade individual e coletiva é redutível, em toda a sua complexidade, à simplicidade objetiva e administrativa do algarismo.
Reproduzindo gravações das lições desse último ano de trabalho letivo, captadas, mantidas e recuperadas em fita magnética, é bem visível nestas Lições de Sociologia o estilo, o tom e o tempo do olhar particular de Adorno sobre o mundo, sobre a profissão [de professor], sobre a relação de honestidade intelectual para com alunas e alunos, da qual visivelmente nunca abdicou, e em prol das e dos quais assumiu, amiúde, forte sentido crítico em relação à própria instituição em que desenvolvia a sua atividade.
Com uma lisura, ironia, generosidade e precisão nem sempre presentes nos dias de hoje, em contexto académico, é possível observar na transcrição do seu discurso o cuidado para com o ritmo de aprendizagem de quem o escutava, e ao serviço de quem nunca deixou de considerar estar, sem abdicar de um fortíssimo compromisso com o rigor e com a heterogeneidade da experiência humana – a mesma que está, atualmente, votada a figuração da sua própria existência perante o avanço de uma visão administrativa da sociedade. A oportunidade desta leitura, em 2020, foi absoluta."