“Este período de confinamento, é evidente, tem de deixar uma marca em todos nós”. Foi com esta certeza que Manuela Bispo, psicóloga clínica, resumiu em outubro de 2020 a situação em Portugal. No entanto, e apesar das notícias relacionadas com a Covid-19 com que fomos bombardeados em 2020, os dados existentes sobre o impacto da pandemia no nosso bem-estar mental ainda são escassos, frisa a especialista e, também, o bastonário da Ordem dos Psicólogos Portugueses, Francisco Miranda Rodrigues.
Já no Reino Unido, por exemplo, tem existido um esforço a nível estatístico e investigativo no sentido de obter dados mais substanciais. No passado verão, o Gabinete Nacional de Estatísticas do país verificou que a população com sintomas de depressão disparou para o dobro, em comparação com o período anterior ao início da pandemia: basicamente, cerca de 20% dos adultos terá vivenciado alguma forma de depressão, em junho de 2020, e 13% desenvolveram sintomas depressivos que foram do moderado ao severo. Quando se trata de formar um perfil dos que têm maior probabilidade de sentir alguma forma de depressão, durante a pandemia, concluiu-se que são adultos entre os 16 e os 39 anos, do sexo feminino, incapazes de fazer face a despesas económicas inesperadas ou que sofrem de uma limitação do foro físico ou mental.
Por sua vez, uma equipa de investigadores do University College de Londres, liderados pela psicobióloga Daisy Fancourt, tem estado a monitorizar o bem-estar mental dos britânicos ao longo da pandemia. Os dados obtidos até meados do ano passado mostram que os níveis médios de ansiedade mantiveram-se altos desde o início das medidas de confinamento, nomeadamente junto de pessoas jovens, que vivem sozinhas ou com filhos, com baixos rendimentos e residentes em áreas urbanas.
Mesmo sem dados consolidados, que façam uma radiografia ao estado da saúde mental dos portugueses, depois do desafio à resistência humana que foi 2020, podemos olhar à nossa volta e questionar se os prédios, ruas, transportes e espaços públicos das cidades em que vivemos, a forma como foram planeadas e construídas, tiveram um papel na disseminação do SARS-CoV-2 ou afetaram a nossa mente. A resposta, para ambas as perguntas, inclina-se para um ‘sim’, com uma sensação de que muito poderia e deveria ter sido feito, tal como explicam investigadores nacionais e de outros países. O que se passou e o que era preciso fazer?
Fechados em casas sem condições, sem acesso a bens diários e a ver a fatura da eletricidade disparar
Uma das principais características que marca as urbes modernas, seja em Portugal ou noutro país qualquer, é a separação e deslocalização das atividades de produção das de consumo. As duas não coexistem dentro das cidades e isso é um problema, destaca Susana Batel, investigadora do Centro de Investigação e Intervenção Social (CIS) do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa. “Em Lisboa, essa separação também se verifica, com as pessoas a viverem sobretudo em zonas mais suburbanas, mas com os principais locais de trabalho, os principais serviços de saúde e de educação, localizados no centro da cidade”, começa por explicar. “Esta tendência, no caso de Lisboa, tem vindo a ser ainda mais promovida pela crise da habitação, com o aumento crítico do turismo antes da pandemia e as novas leis do arrendamento, e com a falta de políticas públicas que colmatassem o seu impacto na vida dos residentes dos bairros do centro da cidade, obrigando-os, muitas vezes, a ir viver para zonas suburbanas e periféricas”.
O que tem isto a ver com uma crise pandémica e a saúde mental? “Para as pessoas irem trabalhar e terem acesso a vários serviços essenciais, não só têm de deslocar-se por longas distâncias, mas também de concentrar-se nos mesmos sítios e às mesmas horas, nomeadamente para irem e virem do trabalho, o que põe em causa medidas de segurança básicas em relação ao SARS-CoV-2 e, consequentemente, causa também ansiedade e stress”, frisa.
Ou seja, faltam políticas de habitação realistas, capazes de devolver os centros das cidades às pessoas, mas também existe um problema ao nível da mobilidade urbana. Problemas antigos e há muito identificados, portanto, com a diferença que a pandemia os trouxe ainda mais à superfície. Tudo isto tem impactos na saúde mental dos portugueses, avisa Susana Batel, que também é membro do conselho diretivo da Associação Ibérica de Psicologia Ambiental.
Muitos, para se sentirem protegidos e evitar os transportes públicos, optaram pelo uso do automóvel privado, cujo uso, em massa, está associado a problemas ambientais, como a poluição atmosférica e sonora. Todavia, trata-se de um “meio de transporte claramente desigual, porque muitas pessoas não têm capacidade económica para ter um carro pessoal, além de potenciar outros problemas de saúde, como a falta de exercício”.
Apesar da aposta, muito mediatizada, na criação de ciclovias, a que se somam medidas como a proibição de automóveis em alguns pontos do centro de Lisboa, a capital ainda sofre da “falta de boas infraestruturas de transportes públicos e de condições para as mobilidades suaves - como deslocar a pé ou de bicicleta”.
O confinamento e a aposta no teletrabalho criaram desafios, para a saúde física e mental de quem vive em cidades, que não podem ser secundarizados, e o culpado, aqui, está noutro problema urbanístico: a má qualidade e o mau planeamento de muito do edificado para habitação, situação que também está associada a maiores custos energéticos, fazendo disparar o valor que vem na fatura de eletricidade.
“Portugal é um dos países da União Europeia que ainda mais sofre de pobreza energética, ou seja, em que as pessoas não têm condições económicas ou vivem em stress económico para iluminar, aquecer ou arrefecer adequadamente as suas casas, para que consigam dormir, trabalhar e estar em casa em condições adequadas”, dispara a investigadora do CIS. “Com o SARS-Cov-2, que obrigou a confinamentos prolongados em nossas casas, isto é uma situação que se evidenciou e agudizou ainda mais, criando problemas de saúde imediatos, por stress e ansiedade, mas também no longo prazo [trará consequências], como doenças respiratórias e cardiovasculares, para além de impactos no desempenho escolar das crianças e adolescentes e, também, no desempenho profissional dos adultos em teletrabalho”.
Bairros que mais parecem ilhas isoladas
Para Teresa Marat-Mendes, investigadora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo do ISCTE, do ponto de vista urbanístico é preciso apontar os holofotes à forma como se planeia as cidades nas suas diferentes escalas: ou seja, “a escala doméstica, do bairro, da freguesia, município, mas também a escala das mais variadas coisas, ditadas pelas necessidades das pessoas”, menciona.
A questão é que, “nas últimas décadas, algumas das escalas de planeamento têm sido menosprezadas, em grande parte devido à crença, errada, de que a mobilidade viária resolveria tudo”, critica Teresa Marat-Mendes, que também é investigadora do DINÂMIA'CET-IUL - Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconómica e o Território, pela mesma universidade. Um erro crasso com consequências bem entranhadas, desde bairros que já só servem como dormitórios à dificuldade em aceder, localmente, a bens diários - precisamente o que não deveria acontecer quando nos pedem para ficar em casa ou em isolamento, devido à Covid-19.
“A pandemia demonstrou o quão necessária é a escala doméstica e a escala do bairro para que as pessoas possam reorganizar-se em função de momentos de isolamento. Acontece que, para essa escala urbana ser eficiente, é necessário garantir que as mais diversas funções de um bairro sejam garantidas, e muitas delas perderam-se e estão ausentes na maior parte dos bairros construídos após a década de 1980. A pandemia expôs como vários ‘bairros’ [zonas habitacionais] se encontram isolados ou desprovidos de apoios a essa escala, nomeadamente acessibilidade direta e pedonal a escolas, abastecimento alimentar diário, entre outros. Isto denota um desequilíbrio na democracia portuguesa. O acesso a bens diários não é garantido a todos os cidadãos em tempos de isolamento pandémico.”
Uma prova, na opinião da investigadora, de como o urbanismo, em Portugal, se dissociou das necessidades das pessoas, não garantindo que estas tenham acesso direto a diversos tipos de apoios e serviços. Em suma, as cidades precisam mesmo de ser repensadas a partir de uma “escala humana”, sintetiza.
Transportes públicos geram desconfiança, mas partilha de bicicletas resistiu à Covid-19
Estudar e entender as dinâmicas da pandemia nas áreas urbanas está a ser um desafio para os investigadores de todo o mundo, garantem Ayyoob Sharifi (Universidade de Hiroshima, no Japão) e Reza Khavarian-Garmsir (Universidade de Isfahan, Irão), daí que tenham publicado, no final de setembro de 2020, uma revisão à literatura científica, relacionada com a gestão e planeamento das cidades, datada dos primeiros oito meses desde que foram detectados os primeiros casos de Covid-19 na cidade chinesa de Wuhan.
Algo que prontamente notaram foi a abundância de estudos que se focam na qualidade ambiental, ou seja, sobre a qualidade do ar nas cidades, os parâmetros meteorológicos (se a temperatura média anual subiu, ou não, e em que zonas, por exemplo), a qualidade da água disponível, entre outros tópicos conexos. Depois vinham as pesquisas sobre os impactos sócio-económicos (como o estudo das desigualdades sociais no seio das cidades), a gestão e governação das urbes e, por fim, os estudos que se debruçam sobre os sistemas de transporte e a forma como as cidades estão desenhadas. Basicamente, estes últimos encontram-se relativamente inexplorados, sintetizam.
Curiosamente, um dos estudos que destacam é da autoria de dois investigadores da Universidade do Porto, que, ao analisarem o sistema de partilha de bicicletas em Nova Iorque, concluíram que este modo de transporte mostrou ser mais resiliente que o uso do metropolitano. Basicamente, houve muito menos nova-iorquinos a deixar de usar o sistema de partilha de bicicletas, durante a pandemia, do que a evitar a rede de metro, tendo ainda encontrado indícios de que muitos trocaram este último pela bicicleta, como meio de transporte. A pesquisa vai ao encontro do que outros estudos também já verificaram.
“Esta é uma clara indicação que os sistemas de transporte não-motorizados são mais resilientes às pandemias”, começam por constatar Ayyoob Sharifi e Reza Khavarian-Garmsir. “O investimento neste tipo de sistemas não só contribui para conter a disseminação do vírus, como também pode fazer aumentar a [sua] acessibilidade e reduzir a pressão sobre sistemas de transportes sobrelotados, em situações de emergência”.
Quanto aos tradicionais meios de transporte públicos, o duo de investigadores avisa que os decisores políticos terão de ter em conta a percepção negativa que o público terá em relação a eles, devido à crise pandémica, existindo claros indícios de que as pessoas, pelo menos na fase inicial da pandemia, optaram por outros modos de transporte, preferindo a bicicleta, andar a pé ou usar o carro privado. Face a estas mudanças comportamentais, e para evitar, precisamente, uma dependência em relação aos transportes privados, “os sistemas de transporte públicos devem ser reformados e ações devem ser tomadas para minimizar os potenciais riscos de saúde, para reganhar a confiança do público”, anotam. Estas medidas são importantes porque permitem fazer a transição para uma sociedade de baixo-carbono (menos emissões de CO2) e ter “um desenvolvimento urbano mais inclusivo”.
Apesar de a forma como as cidades estão desenhadas e construídas poderem influenciar a dinâmica de uma pandemia, o assunto não parece ter sido devidamente explorado.
A hipótese de que que as áreas mais densamente povoadas poderiam ser lugares onde o coronavírus SARS-CoV-2 mais depressa se poderia espalhar, está longe de estar confirmada, apesar de alguns estudos indicarem que existe uma correlação, devido à dificuldade em manter o distanciamento social. (Já voltaremos a este assunto, para dar a conhecer o outro lado da moeda.)
Também faltam dados empíricos conclusivos, escrevem Ayyoob Sharifi e Reza Khavarian-Garmsir, sobre os efeitos que o design das ruas e dos espaços abertos, públicos, têm na disseminação da Covid-19 e nas medidas que podem ser aplicadas para a conter. Mesmo assim, algumas análises argumentam que, para facilitar o distanciamento físico em tempos de pandemia, as cidades necessitam mesmo de redesenhar os seus espaços para se adaptar a novas realidades.
Como e para quê? Para “acomodar melhor as necessidades dos pedestres e dos ciclistas, providenciando espaços abertos que sejam amplos e verdes, de modo a ir ao encontro das exigências dos cidadãos por espaços exteriores de exercício e recriação”. O bónus, ao tomar estas medidas, é que “estas reconfigurações também podem ser oportunidades para integrar, ainda mais, o verde nas cidades, conseguindo, assim, os benefícios adicionais de uma melhor saúde [para os cidadãos] e clima [para o planeta]”.
Contágio e mortalidade. Viver na cidade dos ricos ou na cidade dos pobres faz a diferença
“Existe um nível de densidade [populacional] na cidade de Nova Iorque que é destrutiva. Tem de parar, e tem de parar imediatamente. Nova Iorque tem de desenvolver um plano para reduzir a sua densidade.” Foi esta mensagem que Andrew Cuomo, governador do estado de Nova Iorque, publicou no Twitter em maio do ano passado, quando a grande urbe norte-americana entrou, pela primeira vez, em confinamento, devido à pandemia.
O mote parecia dado. Na mesma altura, um inquérito feito pelo Conselho Internacional de Centros Comerciais frisou, e a crer nos seus dados, que 27% dos adultos que vivem nos Estados Unidos estavam a considerar mudar de casa devido à crise da Covid-19, sendo que 43% dos chamados millenials (geração nascida entre 1980 e 1996) avançavam com essa possibilidade, pelo mesmo motivo.
Contudo, parecem faltar provas científicas convincentes que dêem substância às afirmações de Cuomo, ou à ideia de que o melhor é mudar de ares e ir para áreas menos densas, para evitar infecções como a do novo coronavírus.
Por exemplo, um estudo que se centrou em 36 grandes cidades, espalhadas um pouco por todo o globo, não encontrou qualquer tipo de associação entre a densidade populacional e as taxas de infecção e mortalidade causadas pela Covid-19. O mesmo constatou uma outra investigação que analisou 913 áreas metropolitanas dos EUA. Segundo Shima Hamidi, especialista na área da saúde pela Universidade Johns Hopkins, na cidade estadunidense de Baltimore - e co-autora deste último estudo -, o principal fator a ter em conta, acima de tudo, é o comportamento que as pessoas adoptam, sendo que uma urbe populacionalmente densa até pode ser algo bom. Mas, como?
“Descobrimos que as pessoas são mais cautelosas em relação à ameaça [da Covid-19] em áreas densas, e são mais propensas a ter comportamentos protetivos”, explica à BBC Future. Mais especificamente, além de serem mais cautelosos, os habitantes destas áreas respeitam mais os avisos para que haja distanciamento social, evitam sítios cheios e têm uma maior tendência para ficar em casa. Isto poderá explicar, de acordo com o estudo liderado por Shima Hamidi, o motivo para que megalópoles como Singapura, Hong-Kong, Tóquio e Seul (todas no sudestes asiático) tenham registado taxas relativamente baixas de infecção por Covid-19.
Para o egípcio Sameh Wahba, responsável do Banco Mundial que está à frente do departamento que estuda a redução dos riscos de desastres, a resiliência e as boas práticas nas áreas urbanas, “o que realmente interessa é a forma como a densidade é gerida”, começa por explicar à BBC Future. Nesse sentido, refere, os casos da cidade de Mumbai e da ilha de Manhattan (Nova Iorque) fornecem uma boa comparação sobre o que está em causa: apesar de terem quase a mesma densidade populacional, Manhattan tem quatro vezes mais área de espaço habitável que a megalópole indiana, ou seja, cada pessoa em Mumbai só tem, em média, um quarto da área habitacional de um habitante de Manhattan.
Dito de outra forma, quando foram obrigados a ficar em confinamento, ou quanto optam por ficar mais tempo em casa, como forma de se protegerem contra o novo coronavírus, existia uma enorme disparidade entre as populações das duas urbes, com as pessoas em Mumbai a viver em áreas muito mais lotadas. Além do mais, há que ter em conta que quanto mais baixo é o rendimento que alguém recebe, maior a probabilidade de habitar uma casa sobrelotada, o que torna todas as pessoas dessa habitação mais vulneráveis a doenças contagiosas, como a Covid-19. E, conforme indicam os dados estatísticos fornecidos pelo governo britânico, a taxa de mortalidade nos bairros pobres do Reino Unido é mais do dobro do que a registada nas áreas ricas.
Em suma, e tal como salienta Sameh Wahba, “com ausência de condições apropriadas de habitação, a ausência de infraestruturas apropriadas, a falta de planeamento, a falta de espaços públicos e a falta de amenidades, então a densidade, nestes casos, torna-se detrimental”.
Portugal gosta muito de ‘cidades verdes’. Mas onde estão elas?
A atração do ser humano pelo verde remonta, especula-se, à época em que ainda só éramos caçadores-recolectores, deambulando pela superfície terrestre numa luta diária pela sobrevivência. Basicamente, onde se avistasse verde existiria vida e, provavelmente, sustento alimentar. Isso talvez explique porque, nos dias de hoje, o verde está associado ao mundo natural, à saúde, instilando sentimentos de tranquilidade, paz e sossego, ao ponto de os próprios músculos relaxarem quando estamos em espaços verdes.
“A saúde mental é algo complexo, mas grande parte dos estudos científicos identifica a proximidade de espaços verdes como um dos maiores benefícios para a melhoria da saúde mental”, identifica Teresa Marat-Mendes.
Mesmo assim, e apesar do que a ciência diz, outros interesses, essencialmente económicos, acabam por falar mais alto. Qual o motivo, em Portugal, para ser assim tão difícil dar o devido valor aos espaços verdes em ambientes urbanos?
“O espaço verde é ainda encarado como um espaço de recreio e de embelezamento”, responde a investigadora. “Contudo, o espaço verde detém propriedades ecológicas, produtivas e sociais que têm sido menosprezadas pela sociedade contemporânea”.
Exemplos? “Veja-se o caso da Serra de Carnaxide, que tem sido alvo de contestações e manifestações de defesa daquela área natural. A Serra de Carnaxide corresponde, a seguir a Monsanto, a uma das principais áreas verdes da Grande Região de Lisboa, e deve ser preservada devido ao corredor ecológico que oferece, nomeadamente brisas, recursos hídricos, e não só. Contudo, a pressão imobiliária é grande e Carnaxide tem sido alvo dessa mesma pressão”.
Espaços verdes são, acima de tudo, espaços públicos, uma raridade numa era que privilegia os espaços privados e de consumo. Parques naturais, jardins e hortas urbanas, todos estes espaços devem ser mais do que mera decoração, em cidades que dependem em demasia do betão e do asfalto. Não obstante, e tal como elucida Susana Batel, faltam em Portugal “espaços públicos e verdes em que as pessoas possam estar e encontrar-se de forma segura, mantendo o devido distanciamento social”. Não pode haver dúvidas: estes espaços são, inequivocamente, “muito importantes para prevenir o isolamento e fechamento extremos” que têm ocorrido durante a pandemia, com as suas “consequências de saúde mental associadas, como a ansiedade e a depressão, que muitas pessoas experienciaram durante o confinamento”.
Medidas rápidas que podiam ter sido tomadas… mas não foram
Criticar e apontar falhas é sempre fácil. Afinal, que tipo de medidas, de rápida execução e a pensar no imediato, poderiam ter sido tomadas por quem gere e manda nas cidades, para conter os contágios e mitigar impactos na saúde mental?
Tomemos Lisboa como modelo do que poderia ter sido. “Ao nível da mobilidade, aumentar o número de transportes públicos - comboios, autocarros, metros -, para que as pessoas que têm de deslocar-se dentro de Lisboa, ou de e para Lisboa, para trabalhar e aceder a outros serviços essenciais, possam manter o distanciamento social de segurança”, defende Susana Batel. Não menos importante, isso também evitaria que se gerasse mais stress e ansiedade.
O argumento económico, quer dizer, a justificação de que não há dinheiro, ainda por cima em tão pouco tempo, para melhorar os sistemas de transportes públicos, é quase sempre atirado à liça. Mais uma vez, os velhos problemas, cujas soluções foram sendo adiadas, afloraram durante a pandemia com maior impacto.
Que mais se poderia fazer, desta vez sem levar como resposta a falta de euros nos cofres públicos? “O fechamento de mais ruas ao trânsito e a criação de zonas exclusivamente pedonais, bem como a redução do número de faixas para os carros noutras ruas, assim como o alargamento dos passeios, em conjugação com o alargamento e melhoria da rede de ciclovias existentes”, enumera. “São medidas exequíveis a curto prazo e que poderiam assegurar um maior cumprimento das necessidades de distanciamento social e, através disso, melhorar o bem-estar e qualidade de vida das pessoas”.
Medidas que, à primeira vista, parecem simples e inteligentes. E, se olharmos para o que parece estar abandonado, nas nossas cidades, também é possível vislumbrar aí soluções rápidas e práticas: “Seria exequível, e muito relevante, criar mais espaços públicos e verdes, de boa qualidade, em zonas de edificado devoluto e em descampados, onde as pessoas possam estar e conviver com maior segurança, contribuindo para o seu bem-estar, tanto pelos benefícios dos espaços verdes, como pela possibilidade de uma interação social segura”.
Tudo somado, ficamos com a dúvida sobre se os poderes locais e central, no nosso país, estão mesmo sensibilizados para a necessidade de termos cidades que, fisicamente, tenham em conta a saúde mental dos seus cidadãos, especialmente em contextos de emergência, como a atual. Paira a sensação de que, no fim, as boas intenções raramente saem do papel ou do palanque mediático. Crítica justa?
“Os governos locais e central estão sensibilizados para a saúde mental dos seus cidadãos, quanto muito através das diretivas europeias que lhe são impostas e pela própria agenda da sustentabilidade”, afiança Teresa Marat-Mendes. “Há ideias, projetos e uma geração nova interessada em promover ideias, face às necessidades atuais. Porque não saem as ideias do papel? Diria que, para que isso aconteça, será primeiro necessário que venham exemplos a demonstrar a viabilidade dessas ideias. É a questão do medo, da insegurança, o receio da tentativa. Contudo, acredito que as coisas estão a mudar, devido às necessidades... mas devagarinho”.