“Um dos assuntos dominantes dos últimos anos é o de que nada faz sentido. Donald Trump é o presidente [pelo menos até ao próximo dia 20 de janeiro], o [movimento] QAnon trouxe para o mainstream teorias da conspiração que antes eram marginais e centenas de milhares nos EUA estão mortos devido a uma pandemia e às alterações climáticas, isto enquanto muitos norte-americanos não acreditam que a pandemia e as alterações climáticas são mortais. É incompreensível.”
Palavras do escritor britânico e jornalista de tecnologia Tim Maughan. Mas o que leva ao sentimento de confusão que descreve? A sua teoria, que a um primeiro relance parece uma tautologia, é a de que “grande parte do mundo parece incompreensível porque ele é mesmo incompreensível”, escreve naquele que é o primeiro da sua série de artigos dedicado ao tema. Segue a explicação.
“Das redes sociais digitais à economia global, passando pelas cadeias de abastecimento, as nossas vidas sustentam-se, precariamente, em sistemas que se tornaram extremamente complexos, sendo que deixámos muito [do que rege a nossa vida] para tecnologias e agentes autónomos que ninguém é capaz de compreender totalmente.” Dito de outra forma, criámos um mundo tecnologicamente intricado, um sistema globalmente complexo, que parece ter ganho vida própria e se tornou estranho a nós. “Ninguém está a conduzi-lo”, frisa, e qualquer esperança de agarrar o leme implica compreender uma verdade necessária: “seja de que forma for, perdemos o controlo”. Entretanto, qualquer tentativa de sondarmos a máquina complexa em que vivemos, em busca de explicações para o que nos afeta, tornou-se num quebra-cabeças demasiado grande para as nossas atuais faculdades mentais.
Já voltaremos à análise de Tim Maughan. Primeiro, atentemos no órgão que nos torna tão especiais, o cérebro humano, responsável por criar as mesmas tecnologias e automatismos que parecem torná-lo menos eficiente, já para não dizer anacrónico, a lidar com os intensos e interruptos fluxos de bens e informação que marcam o século XXI, os quais servem de cimento à civilização de hoje.
Um cérebro com 86 mil milhões de neurónios… feito à medida para a Idade da Pedra
Da perspetiva da psicologia evolutiva, os mecanismos relacionados com o cérebro que hoje usamos datam dos nossos primórdios pré-históricos. Ou seja, não evoluíram quase nada, mesmo quando a civilização despontou na antiga Suméria, há cinco mil anos, ou quando se deu a Revolução Industrial (século XVIII) ou o ser humano foi pela primeira vez à Lua (1969). Em suma, somos o lento produto de uma outra era, quando existiam outras necessidades, como procurar comida e sobreviver aos predadores: o ambiente dos nossos antepassados longínquos, uma época em que desde que se nascia e até morrer nada parecia mudar à nossa volta. Foi nesse contexto, ao longo de milhões de anos de evolução, que o cérebro humano teve tempo de sobra para evoluir até estar preparado para lidar com as contingências do que era o dia-a-dia de então.
Pensemos numa emoção tão primária como o medo de cobras. Ele ainda hoje subsiste nos seres humanos, mesmo que nunca tenhamos saída da cidade ou dado de caras com um destes répteis, porque houve um momento na história da humanidade em que este medo era funcional, na medida em que garantia a nossa sobrevivência contra estes predadores naturais dos mamíferos. Se, há milhões de anos, os nossos antepassados não tivessem medo de cobras, e se fossem suficientemente curiosos para se aproximar de qualquer um destes animais, eventualmente acabariam por morrer – ou aumentaria a probabilidade de tal ocorrer –, o que diminuiria as hipóteses de passarem os seus genes a novas gerações e de sobreviverem enquanto espécie.
Mas esta é apenas uma parte da história evolutiva da nossa massa cinzenta. É preciso frisar que nos últimos sete milhões de anos o cérebro humano triplicou de tamanho, com a maior parte a ocorrer nos últimos dois milhões. A espécie Homo sapiens, quer dizer, o ser humano moderno, segundo as evidências até hoje encontradas surgiu em África há 300 mil anos, possuindo um cérebro com uma capacidade de 1200 mililitros ou mais, igual ao das pessoas de hoje: a primeira espécie do género Homo a aparecer na Terra, o Homo habilis, tinha, há 1,9 milhões de anos, um cérebro com cerca de metade do tamanho. No entanto, há muito mais a acontecer com o cérebro do que apenas a sua mudança de tamanho, desde o aumento do número de neurónios e ligações neuronais, até à forma como as suas diferentes regiões evoluem e se interrelacionam.
Um dos pormenores mais importantes é que o cérebro humano tem 86 mil milhões de neurónios: 69 mil milhões no cerebelo, situado na parte traseira do cérebro e responsável pelo movimento do corpo e pelas funções corporais básicas; o córtex cerebral, a camada mais externa, espessa e recente do nosso cérebro tem 16 mil milhões de neurónios, sendo esta a região onde se desenvolvem as características que nos tornam únicos entre os seres vivos, como a memória, a atenção, a consciência, a linguagem, a capacidade de resolver problemas e o pensamento abstrato; e mil milhões de neurónios no tronco cerebral e suas extensões, cuja tarefa principal é a de manter reguladas as funções cardíaca e respiratória.
O córtex cerebral, nomeadamente o neocórtex, a parte mais nova e volumosa desta região, é, portanto, o ponto fulcral para todo o desenrolar da história humana recente e a nossa capacidade de entender tudo aquilo que fomos construindo. Em contraponto, o cérebro do elefante, apesar de ser três vezes maior do que o humano e ter 251 mil milhões de neurónios no cerebelo, útil para manter em funcionamento o seu corpanzil, apenas conta com 5,6 mil milhões no córtex.
Infelizmente, os tecidos moles, como os do cérebro, não fossilizam, daí a total ausência de registos fósseis capazes de mostrar como evoluiu o neocórtex, em termos de organização interna, no cérebro humano. Não obstante, há diferentes técnicas que permitem aos cientistas perceber como evoluiu esta região, tendo como referência o que sucedeu ao longo dos últimos 200 milhões de anos no cérebro dos mamíferos, incluindo espécies já extintas, que também desenvolveram um neocórtex. Biologia comportamental, genética, genómica, biologia molecular e etnologia, são tantas as áreas científicas que se cruzam para tentar resolver o mistério em torno da evolução do cérebro humano.
Todavia, é com relativa segurança que se pode afirmar que a região do neocórtex cresceu de forma espetacular nos primatas há cerca de dois milhões de anos, aumentando as suas capacidades mentais, quase na mesma altura em que apareceu o género Homo, tendo estabilizado na sua atual forma há cerca de uma milhão de anos. Mesmo assim, e muito tempo depois, há 300 mil anos, quando o Homo Sapiens já por aqui andava, a única tecnologia que os humanos eram capazes de produzir pautava por ser escassa e rudimentar: machados, pontas de setas e raspadores em pedra e obsidiana.
No que se refere às relações sociais, e a crer na teoria do antropólogo Robin Dunbar, popularizada na década de 1990, os humanos atuais, devido aos condicionalismos do seu cérebro, não conseguem ter mais de 150 pessoas na sua esfera social – neste caso, falamos de relações significativas. Vários estudos subsequentes, que analisaram as antigas sociedades de caçadores-recolectores, as redes de contactos no mundo dos negócios ou, até, as antigas legiões romanas, parecem apontar para o número de Dunbar. O mesmo parece suceder nas redes sociais digitais. No que respeita à esfera mais íntima de relacionamentos, ou seja, os nossos melhores amigos, também Dumbar aponta para um limite: cinco pessoas.
Números de encher o olho que só os algoritmos conseguem analisar ao segundo
Saltemos para 2020 e atentemos às contas que Tim Maughan fez, para exemplificar como se tornou, na sua opinião, impossível ao ser humano compreender e ter controlo sobre o enorme sistema global que criou:
- Atualmente, existem mais de 17 milhões de navios porta-contentores a circular pelos oceanos, sendo que entre cinco a seis milhões estão neste momento a atravessar o globo, cheios de bens mundanos como “meias, guarda-chuvas, lápis, papéis, materiais de embalagem, colchas de cama, frutas, peças de carros, comida congelada e produtos farmacêuticos”, além dos tradicionais smartphones que quase todo os seres humanos têm.
- Só a Bolsa de Valores de Nova Iorque é responsável pela transação, diária, de dois mil milhões a seis mil milhões de ações, uma escala dantesca e terrivelmente complexa só possível devido à automação, com os processos de análise e decisão a serem entregues a meros programas informáticos. “Numa indústria como a financeira, inteiramente direcionada para o crescimento, estes sistemas levaram ao crescimento exponencial da complexidade – enquanto os corretores de ações humanos conseguem, tradicionalmente, uma média de cinco transações por dia, os algoritmos de trocas de alta-frequência conseguem atingir as dez mil transações por segundo.”
- Redes sociais Digitais? Só os utilizadores do YouTube são responsáveis, a cada minuto, por carregar mais de 500 horas de vídeo, indica Tim Maughan, o que resulta em 82,2 anos, só em tempo de vídeo, despejado por dia para esta plataforma. A 30 de junho de 2020 existiam 2,7 mil milhões de utilizadores ativos do Facebook, com 1,79 mil milhões a entrarem na rede social todos os dias, em média. Mais de 500 milhões de tuítes são publicados diariamente – “seis mil tuítes por segundo, com um dia inteiro de tuítes a corresponder a um livro de dez milhões de páginas”. Pelo Whatsapp são enviadas, quotidianamente, 65 mil milhões de mensagens. Quer um número mais gordo? “Em 2025, estima-se que 463 milhões de terabytes de dados sejam criados por dia, o equivalente a 212.765.957 DVDs.”
Um pequeníssimo e breve exemplo de como a nossa civilização está neste momento construído sobre uma teia global por onde circulam, sem parar, bens, capitais e dados. O que chama mais a atenção é que “as redes que construímos para gerir estes fluxos, de modo eficiente, tornaram-se tão vastas e complexas que estão, agora, muito além da escala de compreensão de uma só pessoa, e, também, de qualquer grupo de pessoas”.
Os políticos que elegemos limitam-se a gerir um sistema que parece ter vida própria
Na opinião de Tim Maughan, é quixotesco tentar encontrar neste sistema algo análogo a um “organismo”, com um centro nevrálgico (ou cérebro) de onde brotam braços que se ligam aos diferentes nódulos desta rede mundial, mantendo tudo interligado, processando todos os dados que por aí passam e tomando decisões. “A realidade destas redes está mais perto do conceito de inteligência distribuída, ou conhecimento distribuído, onde vários atores diferentes – cada um dotado de informação limitada, a qual não vai além do seu meio-ambiente próximo – interagem de uma determinada forma que conduz a processos de decisão, muitas vezes sem eles próprios saberem que é isso que estão a fazer”.
Não é preciso ser um grande especialista para perceber que quando mais intrincada e vasta é uma máquina, ou sistema, maiores as hipóteses de algo correr mal, algures nos interstícios. “Ainda este ano vimos as cadeias de fornecimento a debaterem-se com a pressão causada pela pandemia de Covid-19, o que levou à escassez e à má alocação de quase tudo, desde máscaras faciais de proteção, farinha e papel higiénico”, avisa. Aliás, os efeitos devastadores do coronavírus na economia global mostram o quão frágil é o sistema sobre o qual a nossa civilização assenta.
Por outro lado, torna-se exaustivo e extremamente moroso tentar descortinar, no seio de um sistema complexo, o que realmente aconteceu de errado, capaz de levar tudo a enguiçar. É o que sucede com a Internet, da qual tanto dependemos. Uma prova disso são os ataques informáticos. Uma das indústrias mais afetadas pelos ataques malware, em 2017, foi a do transporte de mercadorias por via marítima, afetando gigantes como a Maersk, levando a que as suas redes de fornecimento, durante um certo momento, tivessem de paralisar por completo.
“Por outro lado, também temos de nos preocupar por estes sistemas funcionarem demasiado bem. Estas redes foram construídas – ou, para sermos mais precisos, evoluíram – para serem o mais eficiente possíveis, e, como vimos através dos exemplos anteriores, abdicámos de muitos dos processos de decisão em prol destas mesmas redes, de modo a atingir esse objetivo. Mas aquilo que não lhes concedemos foi a capacidade de tomar decisões éticas e fazer julgamentos morais”, problematiza o escritor e jornalista.
E assim se abre outro capítulo problemático, no entendimento de Tim Maughan. Se a humanidade perdeu capacidade de controlar e tomar decisões sobre o sistema global que criou, é a própria democracia que está em risco, assim como o poder político para conseguir acabar com as desigualdades económicas e a pobreza no mundo, por exemplo.
“Se cada um de nós luta para perceber ou influenciar nada mais do que as pequenas partes do sistema, o mesmo é verdade para os políticos e os líderes mundiais. Os políticos e os eleitores têm cada vez menos controlo sobre a forma como estas redes [evoluem] e fluem. Em vez disso, encontram-se numa posição em que apenas gerem pequenas partes destas redes, e, certamente, não parecem ser capazes de operar mudanças drásticas nelas (até porque pertencem, maioritariamente, a empresas privadas), apesar de terem um impacto muito direto nas economias, políticas e população das suas nações. Parafraseando o documentalista [britânico] Adam Curtis, em vez de elegermos líderes visionários, estamos, na verdade, a votar em meros gestores de nível médio de um sistema complexo, global, que ninguém controla por completo.”
E é precisamente dentro deste vácuo político e democrático, vendo nestas falhas do sistema uma oportunidade a agarrar, que surgem líderes como Donald Trump, nos EUA, ou Boris Johnson, no Reino Unido, aponta. Face a um cenário em que os políticos só têm de agir de acordo com as decisões, automatizadas, que brotam destas redes, limitando-se a seguir uma espécie de guião previamente escrito, tudo o que alguns deles têm a fazer, para chegar aos cargos mais importantes do Governo, é “colher o medo das pessoas para parecerem poderosos, evocando o nacionalismo, o racismo e o fascismo”, critica.