Swami Vivekananda, um devoto do yoga que nasceu na cidade indiana de Calcutá em 1863, foi a primeira pessoa a importar esta prática para os Estados Unidos da América, em finais do século XIX. Naquela época, Vivekananda enquadrava o yoga nas esferas da filosofia, psicologia e do aperfeiçoamento pessoal. Existia uma áurea mágica, quase sobrenatural, no yoga que ensinava, muito diferente, portanto, das versões que hoje se vulgarizaram, mais focadas no treino da postura física e na respiração.
Apesar de ter chegado a usar a expressão “fica como uma rocha, tu és indestrutível”, junto dos seus estudantes, estas palavras não eram para ser entendidas de forma literal, eram somente uma metáfora para o estado de espírito que pretendia para os seus discípulos.
Mais tarde, a chegada à Europa e EUA das antigas tradições indianas do hatha, um yoga físico, no dealbar do século XX, levou à sua fusão com as formas ocidentais de cultura física, abrindo portas ao yoga como hoje o conhecemos. Um dos nomes que popularizou esta nova prática como meio para alcançar benefícios práticos de saúde foi o também indiano Swami Kuvalayananda, que viveu até 1966.
E foi precisamente na década de 1960 que o yoga, na sua versão ocidentalizada, se difundiu em massa com a ajuda da televisão, atraindo depois a atenção dos movimentos Hippie e New Age, que o ajudaram a popularizar ainda mais. Tudo se robusteceu com as famosas aulas compactadas em cassetes de vídeo e DVDs, nas décadas de 80 e 90, ao levar a prática para o interior dos lares americanos, tendo depois dado azo a toda uma indústria de fitness que, só em Terras do Tio Sam e segundo números de 2016, conta com 37 milhões de praticantes.
Este número de pessoas é responsável por gastar 13,5 milhões de euros com o yoga (ainda dados de 2016), sendo que cerca de cinco mil milhões se destinam ao pagamento de aulas. O resto é o custo dos acessórios necessários e afins. Estima-se que, nos últimos quatro anos, todas estas cifras tenham aumentado muito mais. Além do mais, é preciso ter em conta que, conforme indicam os últimos dados estatísticos, 37% dos filhos com menos de 18 anos, dos praticantes, também faz yoga.
No entanto, e igualmente nos EUA, tem surgido uma tendência inquietante. “As pessoas que são atraídas para o yoga são as mesmas que se sentiram marginalizadas e dececionadas pelo sistema médico, explica à revista Insider Julian Walker, uma instrutora de yoga dos EUA que estudou as práticas de culto nesta indústria do bem-estar. Só que o problema mostrou ser bem mais profundo quanto esta publicação online, numa investigação jornalística que publicou em meados deste mês, revelou que as redes sociais de grupos de yoga estão a partilhar as mesmas descabidas teorias da conspiração do grupo extremista QAnon, incluindo desinformação médica em plena pandemia.
Eles dizem o quê!?
Em 2019, o FBI declarou que o movimento de extrema-direita QAnon era uma ameaça terrorista nacional, levando as redes sociais Facebook, Instagram, Youtube e Twitter a um esforço concertado para apagar todas as páginas relacionadas com o grupo. O pior é que o presidente incumbente dos EUA, o republicano Donald Trump, já fez declarações em que legitimava, de forma indireta, as suas teorias da conspiração, apesar de não existir qualquer tipo de base fatual que prove as suas afirmações fantasiosas.
As suas mensagens começaram a disseminar-se pelas redes sociais no outono de 2017, tornando-se virais, com os seus seguidores a acreditar que Trump é uma espécie de herói que combate uma sociedade secreta, formada por satânicos do partido democrata, estrelas de Hollywood e multimilionários, responsável por uma rede de pedofilia e tráfico sexual. Nada disto é real, antes daria uma boa história surreal de noir fiction, o que não impediu o QAnon de ganhar cada vez mais fama. O pior é que os seus membros são prolíficos em criar teorias da conspiração a partir de qualquer crime que tenha tido lugar em território norte-americano, tentando interligar tudo a um suposto ‘estado dentro do estado’, ou ‘estado profundo’ (do inglês deep state), responsável por orquestrar tudo.
Sobre estas teorias conspirativas, não precisamos de ir muito longe para perceber que há determinados contextos históricos, um espírito de época, que lhes serve de alimento. Tal como explica a Encyclopaedia Britannica, ”as teorias da conspiração aumentam em prevalência durante períodos de ansiedade generalizada, incerteza ou sofrimento, como durante guerras e depressões económicas, e na sequência de desastres naturais como tsunamis, terremotos e pandemias”. Mais: “O conteúdo das teorias da conspiração está carregado de emoção e a sua alegada descoberta pode ser gratificante. Os padrões de evidência para corroborar teorias da conspiração são tipicamente fracos e, geralmente, resistem à falsificação. A sobrevivência das teorias da conspiração pode ser auxiliada por preconceitos psicológicos e pela desconfiança em fontes oficiais”.
Uma confusão de ideias pronta a publicar para dezenas de milhares de pessoas
Jennifer Davis-Flynn, jornalista freelancer e instrutora de yoga nos EUA, notou, em março deste ano, que o mural do seu Instagram começou a ficar impregnado de estranhas publicações com origem nos seus colegas yogis (os praticantes de yoga), relata a revista Insider. Muitos afirmavam ter dúvidas sobre a real gravidade da Covid-19 no país, colocavam em causa e insurgiam-se contra as medidas de confinamento e o uso de máscara facial, além de defenderem que a ‘medicina natural’ e a meditação podem proteger melhor as pessoas dos efeitos do vírus SARS-CoV-2. Qual a base científica para o dizerem? Nenhuma, tal como asseveram a Organização Mundial de Saúde e o Centro de Controlo e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, na sua incansável caça aos mitos em relação ao novo coronavírus.
Um mês depois, as publicações foram cooptadas por teorias das conspirações que em nada tinham a ver com as antigas e tradicionais mensagens de inspiração, iluminamento pessoal e amor que eram típicas da comunidade, diz Jennifer Davis-Flynn. Basicamente, os yogis que seguia no Instagram dedicavam-se, por exemplo, à partilha de mensagens em que se lê que o coronavírus é um engodo para esconder os problemas de saúde que a tecnologia 5G causa nos humanos, ou que tudo se resume a um estratagema para obrigar a população mundial a ser inoculada com uma vacina que contém um dispositivo de localização.
Atualmente, os posts dos yogis nesta rede social recorrem a hashtags que são, precisamente, as usadas pelo movimento QAnon, reiterando um “awakening” (“despertar”) em relação à “the truth” (“a verdade”) que são os casos de pedofilia e tráfico de humanos, conforme enunciados pelas teorias da conspiração. Tudo falso.
O que causa espanto, conforme descobriu a Insider, é que muitos dos praticantes de yoga que partilham estas publicações afirmam não subscrever, explicitamente, estas teorias. Se é assim, porque o fazem?
Uma das praticantes de yoga entrevistadas, Jane Allen Chaisson, que partilha várias publicações no Instagram com as hashtags já mencionadas, incluindo um vídeo de recrutamento do QAnon que dá conta de uma “cabala” mundial instrumentada por pedófilos, garantiu que não se identifica como membro do QAnon, apesar de ter recomendado o vídeo em causa aos seus 1450 seguidores. Em julho, escreveu num post: “Coisas extremamente tenebrosas, horríveis e inarráveis têm vindo à luz recentemente. Informação sobre as nossas preciosas crianças. Se não sabem do que estou a falar, sejam corajosos e informem-se.”
Com 56 mil seguidores no Instagram, a influencer e yogi Stephanie Birch publicou em agosto que “estamos a atravessar uma guerra espiritual, contra fantoches magistralmente manipulados, que dura há anos”, seguido das hashtags “great awakening” (“grande despertar”) e “purpose over popularity” (“propósito acima da popularidade”).
A mestre de yoga Bizzie Gold, também com 56 mil seguidores, fez questão de publicar vídeos sobre uma suposta “agenda satânica” – mais propaganda diretamente ligada à QAnon –, utilizando palavras-chave facilmente reconhecíveis por quem está ligado ao movimento de extrema-direita. Todavia, e mais uma vez, esta yogi afirma à Insider que não se identifica com a QAnon, adiantando que qualquer tentativa de categorizar as pessoas que partilham este tipo de conteúdos é “uma caça às bruxas”.
O que os une? Preconceito e desconfiança para com o a ciência
Investigadores da Universidade de Amesterdão, nos Países Baixos, verificaram em abril que o movimento QAnon atravessou, nos últimos anos, por um processo de ‘normificação’, ou de legitimação, se quisermos usar outra palavra, que o tornou aceitável por grupos de pessoas cujas ideias e crenças não são tão extremas. Esta ‘normificação’ aconteceu, explicam os pesquisadores neerlandeses, porque as teorias do QAnon viajaram de uma subcultura marginalizada da Internet para uma audiência muito mais vasta, devido à atenção que os média mainstream começaram a dar-lhes. Devido a isto, as suas mensagens acabaram por ser amplificadas nas próprias redes sociais onde originalmente surgiram, ganhando uma maior força de replicação.
Pelo meio, ajudou que o presidente dos EUA, Donald Trump, tenha ajudado a legitimar as teorias do movimento QAnaon, ao deixar-se fotografar ao lado de alguns dos seus principais promotores, por exemplo.
Mas o Cavalo de Tróia através do qual o QAnon entrou na comunidade do yoga, nos Estados Unidos, terá sido o documentário Plandemic, o qual se tornou viral no Youtube e Facebook apesar de estar infestado de desinformação sobre o novo coronavírus e a pandemia.
Para começar, o realizador é um conhecido influencer entre os praticantes de yoga, com a narrativa do documentário a assentar nas velhas desconfianças desta comunidade para com a medicina moderna, indica Julian Walker à publicação online Insider. “O sentimento anti-vacinas é muito forte na comunidade do yoga”, começa por avisar. “Não é anormal que os yogis façam uma dura dieta vegan, uma limpeza [ao organismo] com sumo ou jejuns, ou que não acreditem na medicina ocidental”, adianta a investigadora e instrutora de yoga. “As pessoas atraídas pelo yoga e a espiritualidade sentiram-se marginalizadas e dececionadas pelo sistema médico. Para muitas mulheres, houve uma sensação de paternalismo [condescendência].”
O confinamento e o distanciamento social a que foi submetida a população norte-americana, devido à pandemia de SARS-CoV-2, levou a que muitos procurassem um sentimento de comunidade nas redes sociais digitais. Os algoritmos destas plataformas, já muito criticados por favorecerem conteúdos de teor negativo, com o objetivo de suscitar e aumentar o envolvimento de diferentes utilizadores dentro da sua rede social – o problema está bem sumarizado no controverso documentário O Dilema das Redes Sociais –, podem ter sido importantes para que dois grupos muito diferentes, os yogis e o movimento QAnon, acabassem por se intersectar, devido às suas visões extremistas. A máquina de propaganda e desinformação deste último parece ter ido ao encontro dos preconceitos e desconfiança dos primeiros.