Quanto mais afastados os cidadãos se sentirem quanto à forma como a Coisa Pública (Res Publica) é administrada, quanto mais sentirem que aqueles que a governam pertencem a uma casta cada vez mais genética (composta quase exclusivamente por "filhos de algo>fidalgos"), cada vez mais fechada em bolha e distante mais apelo encontrarão nos discursos e propostas populistas e a prazo o país caminhará para uma "Democracia Mitigada" em que apenas os formalismos eleitorais subsistirão numa sociedade cada vez mais fechada e oligárquica.

A saída desse declínio da democracia e das instituições tem que passar por tornar Portugal numa democracia cada vez mais participada e participativa em que a democracia não é um conceito vago e abstrato que apenas é exercido de quatro em quatro anos mas que se pratica todos os dias por eleitos e eleitores.

Embora seja alvo de suspeitas por parte de conservadores, a Democracia Participativa não deve ser temida pelos nossos eleitos e, sobretudo, pelos eleitos locais nas autarquias. Recentemente, na votação na Assembleia Municipal de Lisboa sobre o Referendo Local sobre o Alojamento Local de iniciativa popular (o primeiro de sempre no nosso país) uma representante invocou os exemplos de Hitler e Estaline como tendo promovido referendos numa manobra já muito conhecida e amplamente usada pelos oligarcas que dominam os sistemas democráticos: não há nenhum instrumento democrático que não possa ser abusado e manipulado. Recentemente, nas eleições presidenciais romenas, o candidato pró-russo venceu a primeira volta devido a uma operação de manipulação no TikTok, nos EUA e na Hungria candidatos populistas venceram as eleições. Porque a democracia tem falhas vamos aboli-la e desistir do mais perfeito de todos os sistemas imperfeitos e adotar regimes autocráticos ou ditatoriais ou vamos aperfeiçoar e corrigir os erros da democracia? O mesmo se pode assim dizer - com propriedade - dessa ferramenta participativa que é o Referendo Local, instituto que, aliás, é de acesso particularmente difícil pela quantidade exigida de assinaturas, pela burocracia "juridiqueza" (que tanto é apreciada pelos juízes academitas do Tribunal Constitucional) e pelas limitações que uma lei obsoleta e restritiva hoje já impõe aos cidadãos.

Para além do dificilmente acessível referendo local, em Lisboa temos duas outras ferramentas de Democracia Participativa que têm sido desprezadas ou - pior - mal utilizadas: falamos do Orçamento Participativo e das Assembleias de Cidadãos.

Orçamentos Participativos (de freguesia e câmara municipal):
Um orçamento participativo (OP) é um processo democrático de âmbito local ou nacional onde os cidadãos podem discutir e decidir sobre orçamentos e políticas públicas. Num OP a participação na gestão da coisa pública por parte do munícipe ou freguês não se reduz ao voto de quatro em quatro anos mas a participação anual ou ainda mais regular na administração da sua freguesia. Um OP reúne o melhor da democracia representativa porque quem o organiza e executa são os órgãos eletivos (Junta de Freguesia e Assembleia) e o melhor da democracia direta ao trazer para o centro da gestão e da execução orçamental os cidadãos.

A existência de um Orçamento Participativo de Freguesia aumenta a transparência das despesas do orçamento da autarquia e o envolvimento dos cidadãos na gestão política local acabando por, indiretamente, traduzir-se num estímulo à redução da abstenção e um convite à participação em associações cívicas, sociais, culturais e à própria militância nos partidos políticos. Paralelamente, se a autarquia tiver igualmente um Orçamento Participativo Jovem ou Escolar poderão criar-se hábitos de participação que poderão trazer à participação os grandes ausentes dos dias de hoje: os mais jovens.

Os OP tendem também - se devidamente executados - a aumentar a satisfação dos eleitores para com os executivos que os implementam porque as iniciativas e obras patrocinadas neste contexto são exatamente aquelas que, por maioria de votos, os eleitores gostariam de ver realizadas na sua freguesia. Assim, a prazo, a simples existência de um OP, tende a ter efeitos eleitorais positivos nas listas eleitorais que resultam da continuidade dos executivos de Junta que os promovem. Se bem executado (tendo, nomeadamente, uma divisão por zonas que garanta que as zonas mais pobres são sempre beneficiárias que algum projeto de OP) pode ser um factor de desenvolvimento económico e social e trazer assim para o centro da participação política muitos cidadãos que tradicionalmente se autoexcluem destes processos.

Em abril de 2021 com o apoio do professor Yves Cabannes da  University College London fiz um estudo comparativo dos orçamentos participativos das Juntas de Freguesia de Lisboa. O estudo será atualizado ainda durante este ano de 2022 mas gostaria de deixar antes deste refrescamento comparativo algumas propostas que as Juntas de Freguesia de Lisboa e, em particular, a de Alvalade (que não tem um OP) poderiam incluir nos seus programas de OP já em funcionamento ou naqueles que poderão via a ter ou a retomar.

Dez propostas para o aperfeiçoamento dos Orçamentos Participativos:
1. Além de ser possível votar e apresentar projetos para o Orçamento Participativo (OP) deve ser – seguindo o espírito e prática de Porto Alegre – que os cidadãos possam também ter o seu papel na ordenação das prioridades do orçamento autárquico de investimento.
2. Acreditamos também que deve ser possível votar no OP a partir dos 14 anos (atualmente em alguns OPs de freguesia em Lisboa o limite são os 16 anos ).
3. O que aconteceu ao primeiro OP do mundo, o de Porto Alegre, prova que o OP não pode ser partidarizado e que, pelo contrário, é preciso que seja criado ou que se desenvolva enquanto algo de transversal a todos os partidos ou, pelo menos, à maior quantidade possível elaborando, desejavelmente, um carta de compromisso comum quanto à continuidade do OP.
4. O OP deve ter um foco especial em projetos de pequena escala e de baixo custo. São estes que permitem uma mais rápida execução e uma maior resistência às pressões dos lobbies e grupos de influência.
5. Os OP permitem criar “Capital Social” na Comunidade e os cidadãos começam a conhecer melhor os processos de governação da cidade: nesse sentido seria interessante fazer reuniões em que técnicos da CML responsáveis pela execução passada de projectos de OP falassem e trocassem opiniões antes da fase de apresentação de projetos.
6. Para além de votarem nas propostas de OP, os cidadãos devem também poder votar na prioridade de tipos de investimentos que as juntas de freguesia gerem nos seus orçamentos. Se o dinheiro vem dos impostos porque não temos uma palavra na forma como ele é gasto? Isto aumentaria o conhecimento dos cidadãos sobre a forma como se investem os fundos públicos.
7. Porque o processo é mais importante que o produto: o ano participativo não se pode esgotar no momento da votação das propostas. Deve ser criada uma “caravana das prioridades” em que os cidadãos são levados para conhecer a sua cidade e poderem criar ou apoiar futuras propostas sobre freguesias que não são as suas e recolher ideias para a sua própria freguesia.
8. Ponderar fazer como acontecia em Porto Alegre (Brasil) e fazer aprovar todas as propostas vencedoras na Assembleia de Freguesia, sem aprovação automática, por forma a comprometer (e a fiscalizar) a execução das propostas.
9. Impedir que pequenos grupos em pequenas freguesias, mas muito mobilizados, sejam capazes de distorcer a votação, votando em massa num projeto que queiram ver aprovado. Para criar criando uma maior transparência na participação, propomos que sejam enviadas por carta as propostas e RSF de resposta a todos os moradores da cidade. A possível distorção será assim reduzida através do aumento do universo de votantes nas propostas de OP, diluindo mobilizações por parte de grupos organizados.
10. Além de ser possível votar e apresentar projetos para o Orçamento Participativo (OP) deve ser – seguindo o espírito e prática de Porto Alegre – que os cidadãos possam também ter o seu papel na ordenação das prioridades do orçamento autárquico de investimento.

Orçamentos Participativos Municipais com Foco em Habitação:
Sejam lançados orçamentos participativos municipais com uma parcela específica dedicada a projetos habitacionais. Os cidadãos poderão propor e votar em iniciativas tais como construção de novas habitações sociais, reabilitação de parques habitacionais existentes, programas de apoio ao arrendamento acessível e melhorias na infraestrutura dos bairros sociais.

Conselhos Municipais de Habitação com Participação Cidadã:
Criação de conselhos municipais de habitação com representantes eleitos pelos cidadãos. Esses conselhos participariam do planeamento e supervisão das políticas habitacionais municipais. Os cidadãos poderiam levar preocupações e sugestões directamente ao conselho.

Quanto à outra ferramenta participativa que foi mal executada em Lisboa, o "Conselho de Cidadãos de Lisboa". A crise dos partidos é a crise da democracia enquanto estes seguirem sendo - infelizmente - a principal forma de participação dos cidadãos na Democracia.  Urge encontrar formas alternativas de participação e reformar os partidos (por dentro) para que estes sejam mais abertos às suas bases e se potencie a influência das suas bases nas decisões internas. A este respeito, descer os limites dos referendos municipais e nacionais, aumentar o seu âmbito, potenciar e facilitar o acesso às ILC, simplificar o processo - desburocratizando - eleitoral autárquico abrindo-o mais às listas de cidadãos e permitir a eleição de deputados independentes à Assembleia da República poderiam revelar-se ferramentas de reforma democrática muito importantes.

Recentemente, a Câmara Municipal de Lisboa executou um processo inovador, que advogo há muitos anos como uma das vias possíveis para a reforma da democracia, e que traz em si mesmo algumas virtualidades que poderiam aumentar a participação política dos cidadãos na vida da sua cidade. Poderia trazer, mas... Mas tal não vai acontecer dada a forma incompleta e muito superficial como o "Conselho de Cidadãos" (CCL) foi executado em Lisboa. Apesar desta má execução continuo a acreditar no conceito de uma assembleia de cidadãos e lanço neste texto algumas propostas concretas de melhoria e sabendo que esta foi uma edição experimental acredito que há tempo para corrigir estes erros assim haja vontade política e real adesão a este conceito e não uma simples medida executada para obter efeito mediático e de alcance temporário.

Talvez o maior erro do CCL tenha sido o ter partido de uma base de inscritos e não de cidadãos aleatoriamente escolhidos, tendo havido várias opções para o fazer, desde chamadas para números aleatórios, até ao envio de cartas para caixas de correio aleatoriamente escolhidas. É isso mesmo surge no relatório de execução deste primeiro CCL onde se escreve a dado ponto que "as tomadas de decisão derivam de pessoas sorteadas de forma aleatória, através de um processo de amostragem independente, proporcionando a elaboração de propostas mediante um processo deliberativo (Gerwin, 2018). Segundo Gerwin (2018), o ideal é que cada membro elegível da população, para participar numa assembleia de cidadãos, seja convidado a integrar este processo". Aliás, este processo de "seleção" enferma, ele próprio, de uma maleita: todos os especialistas neste tipo de painéis são unânimes: os participantes "não podem ser selecionados": devem ser escolhidos a partir de uma base de cidadãos de forma aleatória (como, aliás, sucede nos EUA com a escolha dos jurados de alguns tribunais). E é também importante sublinhar (e isso não ficou garantido no CCL) de que não serão novamente chamados a intervir em novos painéis deliberativos porque na aplicação pura deste modelo os cidadãos são chamados apenas para "mandatos únicos e não renováveis" (Manuel Arriaga em "Reinventar a Democracia").

O segundo maior erro foi a duração do evento: "Este evento decorreu nos dias 14 e 15 de maio de 2022, motivando a construção de propostas em torno do tema das alterações climáticas" (relatório do CCL) dois dias é um prazo demasiado curto e que contradiz as recomendações internacionais e ademais a participação no CCL não foi remunerada assim como também indicam as recomendações para este tipo de eventos: "A participação na assembleia de cidadãos é remunerada. Há dois motivos para tal. Primeiro, e tal como (por exemplo) os cidadãos que servem num júri nos Estados Unidos, os integrantes da assembleia de cidadãos estarão a abdicar do seu tempo livre para trabalhar em prol de todos nós. É, por isso, justo que sejam compensados pelo seu trabalho. Segundo, a remuneração dos participantes é uma medida importante para assegurar que cidadãos com menores recursos.

Conclusão

O fortalecimento da democracia em Portugal exige um esforço conjunto para aproximar os cidadãos das decisões que afetam diretamente a sua vida, especialmente no âmbito local. Ferramentas como os orçamentos participativos, as assembleias de cidadãos e os referendos locais são instrumentos valiosos para aumentar a transparência, a inclusão e a participação cívica. No entanto, para que estas iniciativas tenham sucesso, é essencial que sejam bem estruturadas, acessíveis e implementadas com seriedade e compromisso.

A democracia não se deve limitar ao ato muito limitado de votar de quatro em quatro anos, mas sim tornar-se uma prática contínua e acessível, que envolva tanto os cidadãos quanto os seus representantes num diálogo constante. Reformas nos partidos, maior abertura para iniciativas independentes, descentralização das decisões e a simplificação dos processos participativos são passos fundamentais para construir uma sociedade mais justa e inclusiva.

Os erros na implementação de iniciativas como o Conselho de Cidadãos de Lisboa mostram que boas ideias podem perder impacto quando executadas de forma superficial ou que tenha apenas propósitos de marketing político. Aprender com estas falhas e corrigir o rumo é assim essencial para recuperar a confiança dos cidadãos e evitar que o descontentamento com as instituições alimente o populismo e o afastamento cívico.

Por fim, ao adotar e expandir práticas de Democracia Participativa, Portugal tem a oportunidade de liderar pelo exemplo, mostrando que é possível reverter o declínio da confiança democrática através de ações concretas, que promovam a inclusão, a transparência e a participação. Uma democracia mais participativa não é apenas uma resposta ao populismo, mas uma forma de garantir que a administração pública esteja alinhada com os interesses e as necessidades de toda a sociedade.

Rui Martins é fundador do Movimento Pela Democratização dos Partidos