No setor aéreo português, o Estado quer ser tudo: legislador, construtor de infraestruturas, regulador, acionista de companhias aéreas e concedente. Este excesso de papéis concentrados num único ministério tem consequências graves para o mercado, as empresas e os contribuintes. Naturalmente, os conflitos de interesse tornam-se não só inevitáveis como, frequentemente, paradoxais.
A TAP, propriedade do Estado, detém quase metade dos movimentos aéreos de aterragem e de descolagem autorizados (os chamados slots) do dito "esgotado" Aeroporto da Portela, também ele propriedade do Estado. Trata-se de uma posição dominante historicamente legitimada que concede à TAP uma vantagem sobre outras companhias que desejam estabelecer-se em Lisboa, seja para lançar novas rotas seja para aumentar frequências. Apesar de legalmente aberto, o mercado aéreo bate de frente com uma barreira natural em Lisboa que garante à TAP uma situação altamente privilegiada e blindada. Num cenário de privatização, esta segurança e proteção tem um valor financeiro elevado e estes slots da Portela tornam-se no ativo financeiro mais importante da companhia aérea.
Para termos uma ideia de quanto um mero slot pode valer, nada melhor do que exemplificar com o caso de Londres Heathrow, o aeroporto mais congestionado do mundo e um dos poucos que permitem a comercialização dos slots por parte das companhias, em transações que se assemelham ora a um subaluguer ora a um trespasse. Em 2016, a Oman Air pagou 75 milhões de dólares por um slot matinal em Heathrow à Kenya Airways. Já o recente acordo de venda de 41% da ITA Airways à Lufthansa foi sustentado na valorização dos slots que a companhia detém no congestionado e altamente cobiçado aeroporto de Linate, em Milão.
Ainda que qualquer consolidação no mercado europeu seja acompanhada da cedência de slots nos aeroportos congestionados das companhias envolvidas e ainda que seja inevitável que a privatização da TAP implique perder alguns dos seus slots em Lisboa, a posição manter-se-á praticamente inalterada e a TAP continuará a dominar. Estas contas serão bem diferentes no caso da construção de Alcochete como aeroporto potencialmente ilimitado, no qual esse ativo estratégico dos slots – atualmente, um bem escasso na Portela – perderá valor por se tornar num bem abundante. Tal situação poderá colocar o governo numa posição difícil: ter de justificar aos eleitores a disparidade entre o valor atribuído à TAP aquando da intervenção pública e o potencial encaixe orçamental numa venda que já não poderá refletir a valorização dos slots na Portela.
Outro ponto sensível desta síndrome refere-se aos voos noturnos. Nos principais hubs europeus localizados próximos dos centros urbanos, como Frankfurt, Amesterdão, Zurique ou Londres Heathrow, as operações noturnas estão sujeitas a rigorosas restrições, que variam entre proibições totais ou pesadas taxas adicionais para voos ruidosos e fora de horas. Em Lisboa, contudo, as regras são muito menos restritivas e permitem várias exceções. A TAP é, naturalmente, a maior beneficiária desta flexibilidade para operar voos noturnos atrasados por relação ao horário previsto e para os voos intercontinentais que aterram sobretudo durante a madrugada. São estas aterragens matinais – as que começam às cinco da manhã – que mais seriamente impactam o sono dos residentes.
Alterar esta legislação afetaria sobretudo a companhia do Estado, a TAP, prejudicando toda a sua operação em cadeia e afetando profundamente o valor de mercado da empresa. Neste aspeto, torna-se mais simples para o Estado adiar ou minimizar as mudanças legislativas dos voos noturnos/matinais, sacrificando a qualidade de vida dos habitantes em prol da rentabilidade da "sua" companhia aérea; e, com isso, torna-se duplamente benéfico não construir um novo aeroporto na região de Lisboa: protege-se o valor da TAP num processo de privatização e evita-se o investimento numa infraestrutura que, quando um dia abrir, já estará obsoleta por relação à forma como iremos viajar no futuro.
Esta "síndrome da Portela" é uma armadilha peculiar onde o Estado português, enquanto legislador, regulador e agente económico, se encontra aprisionado num ciclo de compromissos contraditórios comparáveis aos sentimentos manifestados pelas vítimas do assalto e rapto dos anos 70 em Estocolmo, que mostraram um comportamento de defesa e de apego pelos seus raptores, incluindo nos processos judiciais que se seguiram.
À luz da evolução tecnológica que se avizinha, dos compromissos impostos pela agenda climática e tendo em conta os desafios atuais das nossas restantes infraestruturas e de necessária descentralização das entradas aéreas no país, talvez esta síndrome nos salve de algo maior… e bem pior.
Docente em Sistemas de Transporte e consultor em aviação, aeroportos e turismo