Nos últimos dias tem circulado mais uma comparação entre Portugal e a Irlanda. E com razão: são países com uma centralidade diferente, periféricos por relação ao centro da Europa; são pequenos, mas colados a vizinhos gigantes; e, quando aderiram à União Europeia, eram ambos pobres.
Nos últimos 30 anos, enquanto o PIB português cresceu 48%, o da Irlanda aumentou mais de 300%. Esta diferença merece uma reflexão sobre o que foi feito e o que ficou por fazer para que Portugal se mantivesse num voo tão lento enquanto a Irlanda descolou. Vou exemplificar essa reflexão através da política pública traçada pelos dois países no setor aeronáutico – aquele que melhor conheço – onde o contraste entre os dois países é uma verdadeira metáfora para o caminho escolhido por cada um e para os resultados obtidos.
Os últimos 30 anos coincidiram com a liberalização comercial do espaço aéreo europeu. Foi graças a ela que o protecionismo estatal das companhias de bandeira deu lugar a um novo enquadramento no qual todas as companhias aéreas europeias passaram a poder voar qualquer rota, colocar bases de aviões onde quisessem, num mercado único e aberto a qualquer avião registado e certificado em qualquer Estado-membro.
Portugal, país do sol, do turismo, dos bons preços, do povo afável e poliglota, tinha tudo para dar certo, mas manteve-se trancado numa mentalidade de proteção estatal. A Air Atlantis, à época uma companhia charter, foi bloqueada pelo acionista Estado que, temendo pela TAP, preferiu forçar o seu encerramento em 1993 do que embarcar na ideia do acionista minoritário privado que a queria converter numa low cost portuguesa com bases em Faro e Funchal. Em consequência dessa decisão, essas regiões não têm companhias portuguesas a voarem para destinos internacionais.
A Portugália, outra companhia emergente na altura e que era 100% privada, foi limitada, até ao fim, a operar apenas rotas para onde a TAP não voava e foi impossibilitada de voar para os arquipélagos, numa estratégia de “proteção” que nos amarrou a todos – passageiros, trabalhadores, fornecedores e entidades – à companhia do Estado.
Enquanto isso, na Irlanda, um país insular, pouco turístico e com uma economia frágil, a então quase falida Ryanair assumiu a oportunidade que a Europa lhe trouxe e levou-a ao extremo. De um mercado pequeno, com uma libra irlandesa cara e sempre sob a sombra do Reino Unido, a companhia deu um salto gigante e transformou-se, em 30 anos, na marca aérea com maior valor do mundo e na companhia líder do tráfego europeu, com mais de 80 bases espalhadas em diversos países.
Já a Aer Lingus, a dita companhia de bandeira, foi vendida à British Airways sem receios patrióticos, e foi essa integração num grupo forte e complementar, que permitiu a duplicação dos voos de longo curso com destino aos Estados Unidos, o seu mercado de longo curso por excelência, com mais de 20 destinos e múltiplos voos diários espalhados por toda a América do Norte. Permitiu isso e, claro, livrou o contribuinte irlandês de qualquer compromisso financeiro público com o setor, ao mesmo tempo que lhe criou uma conetividade acessível, invejável e transformadora que jamais tiveram no passado.
Mas a Irlanda não se limitou a inovação e crescimento ao puro transporte aéreo de passageiros. Ao ser o primeiro país europeu a ratificar a Convenção do Cabo e o Protocolo sobre Equipamento Aeronáutico em 2005 (Portugal, signatário da convenção, ainda não ratificou), a Irlanda abriu as portas para que as empresas mundiais de leasing de aviões – um dos segmentos mais lucrativos do setor – se fixassem na ilha, contribuindo com mais de 4% para o PIB irlandês.
Na Irlanda, a abertura ao mercado europeu e o “medo” do vizinho gigante foram transformados em oportunidade, de tal forma que a irlandesa Ryanair é hoje líder em vários aeroportos ingleses, incluindo em Londres. Tal como a Hungria tem a Wizz Air, a Holanda tem a Transavia e a Irlanda tem a Ryanair, Portugal poderia ter tido uma Air Atlantis à escala europeia com bases em Faro, Funchal e porque não em Málaga, Marselha ou Nápoles. Em Portugal, continuamos a proteger estruturas obsoletas e a promover uma nostalgia das caravelas, navegando contra os ventos da modernidade.
Perdemos este comboio e, por falar nisso, também nos isolámos na ferrovia e, em pleno século XXI, não temos qualquer ligação à segunda maior rede de alta velocidade do mundo.
O PIB português cresceu 48% nos últimos 30 anos. Foi pouco, mas sobretudo foi pura sorte.
Docente em Sistemas de Transporte e consultor em aviação, aeroportos e turismo