"Ao contrário dos outros, o foco deste governo não é durar, é fazer." Disse-o o primeiro-ministro no debate da proposta de Orçamento do Estado (OE) para o próximo ano. Nessa enfadonha discussão na Assembleia da República, Luís Montenegro procurou pela enésima vez demarcar-se do imobilismo associado a António Costa – e não deixa de ser sintomática a necessidade permanente de o fazer.
Mesmo que não venha a ser desvirtuada pela oposição, por via do aumento da despesa ou da diminuição da receita, a proposta é o que é, e o spin dos partidos que suportam o governo não resiste à realidade: o OE não reforma nem transforma, não ata nem desata, agarra-se ao presente e negligencia o futuro.
Além de fazer brotar do chão uns milhões de euros que o país tem dificuldade em gerar, para tranquilizar as classes mais ruidosas, reconquistar a simpatia dos funcionários públicos e apaziguar a memória dos pensionistas, finge que alivia os impostos sobre as famílias e sobre as empresas, adia decisões estruturantes e ignora uma enorme quantidade de gente, que, de tão heterogénea, só tem em comum a certeza de que quase tudo na sua relação com o Estado tende a falhar.
Este OE não gera desilusão porque nunca autorizou o sonho. É um kit de sobrevivência política, o exercício possível (e bem-sucedido na lógica merceeira das votações parlamentares) de equilibrismo que, em simultâneo, encurrala Pedro Nuno Santos e desnorteia André Ventura. Na prática, o OE é um ardil a que António Costa e Fernando Medina poderiam ter recorrido para provocar Catarina Martins e Jerónimo de Sousa e para desacreditar o lero-lero centrista de Rui Rio.
Desenhar um OE implica escolhas nem sempre fáceis: exige a identificação de prioridades e a assunção de inevitáveis trade-offs. Construí-lo sem pensar exclusivamente em cenários, aritméticas, arranjos, crises artificiais e eleições precoces, pressupõe ruturas com vícios, com corporações e com a opinião publicada e, por maioria de razão, medidas impopulares, como outrora, até sob assistência financeira, o PSD ousou tomar.
Vem isto a propósito da indiferença com que sucessivos executivos têm olhado para as periferias de Lisboa e do Porto e para o exército de gente remediada, consumida por um quotidiano sisífio e sem acesso aos palanques onde se promove a doxa.
Pessoas que saem para trabalhar antes do primeiro raio de sol e a quem os transportes tardam (quando não faltam). Pessoas que têm de se contentar com uma escola pública medíocre e resignar-se com um futuro assim-assim para os filhos porque o elevador social se transformou num lirismo conveniente para quem tem uns trocos para optar pelo colégio privado. Pessoas que esperam meses, se não anos, por uma consulta ou cirurgia no Serviço Nacional de Saúde mais admirável do mundo. Pessoas que sentem na pele a insegurança característica de subúrbios excluídos e que reviram os olhos quando ouvem os delírios dos tudólogos que se lembram dos "bairros" quando "os bairros" chegam às notícias por razões trágicas. Pessoas que são forçadas a faltar ao trabalho para resolver algum assunto pendente, dado que os quase 750 mil funcionários públicos não dão conta da pesada e ineficiente máquina que nos administra.
Nessas periferias, alheadas das empolgantes discussões travadas entre quem presume enformar o pensamento pátrio, há gente sem pachorra para os costumeiros atrasos de autocarros, comboios ou barcos. Há gente cansada das supressões recorrentes de viagens e da inexistência de explicações. Há gente que não tolera a incerteza inerente ao regresso ao lar porque houve mais uma avaria ou mais um episódio de falta de pessoal. Há gente que já não se comove com as "causas" dos sindicalistas profissionais, sempre ávidos por colar greves a fins-de-semana ou feriados nacionais. Autênticas semanas de quatro dias, como lhes chamariam os discípulos de Rui Tavares.
Veja-se o caso do Tejo, onde a lógica do transporte é mais própria do Portugal pós-revolucionário que nacionalizou o que mexia e o que não mexia, com a agravante de existirem hoje duas empresas detidas pelo Estado a operar no mesmo contexto, sem que a promessa do ex-ministro Duarte Cordeiro de dissolução da Soflusa (e integração plena na Transtejo) seja concretizada.
Enquanto os quase 15 milhões de passageiros anuais (dados apresentados pelo anterior governo) desesperam por alternativas, os braços armados de alguns partidos, sobretudo do PCP, vão utilizando as paralisações totais e as supressões cirúrgicas como instrumentos de guerrilha.
Recursos humanos? São sempre curtos, mesmo que os quadros de pessoal até tenham aumentado no ano passado – a fazer fé no que, à falta de informação mais rigorosa, anunciou o anterior ministro do Ambiente. Salários? São inaceitavelmente baixos, ainda que ali, também pela especificidade das funções (turnos irregulares, trabalho noturno e riscos associados ao labor nos navios ou nos cais), as remunerações tendam a ser mais elevadas do que na generalidade da Administração Pública. Assiduidade? Inatacável, embora os relatórios mais recentes das próprias empresas revelem taxas de absentismo – 11,6% na Transtejo e 16,3% na Soflusa – superiores à média estimada para os trabalhadores da Função Pública, que rondará os 7%. Já para não falar da comparação mais embaraçosa com os 4,1% de média nacional, que inclui o setor privado.
Paralelamente, a governance da Transtejo e da Soflusa também deixa muito a desejar, começando pela bizarria de, sem que se tenha verificado a fusão, os órgãos sociais (conselho de administração incluído) sejam coincidentes. Qual é a lógica? E que sentido faz que uma das empresas, que detém a outra, subcontrate a segunda para um serviço (ainda que para uma carreira específica) que, em tese, estaria mais que habilitada a realizar?
Com a informação de que dispomos – não se compreende que no final de 2024 não existam Relatórios de Gestão e Contas referentes a 2023 –, podemos também concluir que os resultados líquidos de ambas as empresas subsistem no vermelho (3,617 milhões de euros em 2022 na Transtejo, 3,081 milhões no caso da Soflusa). Tudo, note-se a curiosidade, apesar do aumento do número de passageiros transportados em 2022.
Quem atravessa o rio para trabalho, lazer ou turismo não pode continuar refém de anacronismos ideológicos, por um lado, e amadorismos de gestão, por outro. O Tejo deve ser poupado às lutas de classes serôdias e às cruzadas partidárias travadas com o dinheiro de quem compra títulos de transporte e com os impostos de todos nós.
Ainda que, por razões socioeconómicas atendíveis, o Estado continue presente nas travessias do Tejo, é inconcebível que perpetue um monopólio ruinoso e que só dificulta o dia-a-dia de milhares de portugueses que só querem chegar ao trabalho, ir buscar os filhos à escola ou regressar a casa com rapidez, segurança, conforto e previsibilidade. Com concorrência efetiva, tanto se lhes dá se quem presta o serviço é público ou privado, como acontece num sem-número de cidades em todo o mundo (mesmo naquelas que não estão nosso top of mind quando pensamos em inovação e competitividade).
Num país virado para o futuro, já deveríamos ter implementado serviços similares aos TVDE para travessias fluviais – chamemos-lhe os Uber do Tejo – e, lamentavelmente, ainda estamos a tentar quebrar a omnipresença do Estado no transporte coletivo.
No entanto, nem tudo são nuvens negras. No final de 2025, termina o contrato de serviço público assinado pelo Estado e pela Transtejo/Soflusa, que, felizmente, graças a uma adenda feita em 2021, só será renovado se as partes estiverem expressamente de acordo nos termos e condições para um novo quinquénio. É uma excelente oportunidade para o governo romper os grilhões da CGTP e sacudir as clientelas do PS e do PSD que vão parasitando estas empresas.
Senhor primeiro-ministro, tem no Tejo a oportunidade perfeita para mostrar que está a par da urgência de transformar a sério o país. E para confirmar que o foco do seu governo não é durar, é fazer. Idealmente, qualquer coisinha que vá além da gestão da situação. Não nos falhe.
Ex-jornalista e especialista em comunicação