
Há precisamente 60 anos, na manhã de 11 de julho de 1965, aterrava o primeiro voo comercial em Faro, marcando o início de uma transformação profunda na conectividade e na economia de toda uma região. Nesse dia, o aeroporto de Faro foi inaugurado pelo almirante Américo Tomás, último Presidente da República do Estado Novo, que em 1958 ironicamente “venceu” as “eleições” contra o grande impulsionador deste projeto: Humberto Delgado, o “general sem medo”, que, como diretor do Secretariado da Aeronáutica Civil, lançou a semente do que viria a ser o aeroporto internacional do Algarve.
Pensado em 1945, para acolher a aviação a hélice, o projeto teve de se reinventar várias vezes para acompanhar a revolução dos aviões a jato de maior porte, exigindo pistas mais longas e zonas de estacionamento ampliadas. Quando, 20 anos depois, o primeiro voo comercial da TAP ligou Faro a Lisboa, duas vezes por semana, poucos imaginariam o que estava para vir: uma transformação total da economia algarvia, que trocou a pesca e a agricultura pelo turismo, à medida que cada vez mais companhias e operadores internacionais promoviam o destino.
Nos anos 90, a TAP — e a sua subsidiária Air Atlantis — chegaram a fazer de Faro uma base robusta, e a própria TAP chegou a operar voos diretos sazonais para sete cidades europeias, três destinos domésticos e até um para o Canadá. Hoje, a companhia “nacional” é uma sombra do que foi no Algarve, mantendo apenas uma rota residual para Lisboa que representa pouco mais de 3% do tráfego total. Os outros 9 milhões de passageiros voam com low costs e companhias estrangeiras que nem sempre foram assim tão acessíveis para quem vivia à porta do terminal.
Durante décadas, o regime jurídico-comercial dos voos charter fazia de Faro uma estrutura aberta ao mundo, mas fechada aos locais: os lugares nos aviões eram monopólio dos pacotes “avião+hotel” comprados nos mercados de origem e vedados aos residentes no Algarve. Foi preciso o mercado único europeu desregulamentar comercialmente a aviação para que o aeroporto de Faro se aproximasse, enfim, dos algarvios.
Em seis décadas, Faro saltou de 59 mil para quase 10 milhões de passageiros anuais. É a maior porta de entrada para a região turística mais internacional de Portugal, mesmo sem ser hub de ninguém. Vive quase exclusivamente do tráfego de lazer – frágil, sazonal, vulnerável a crises, modas e caprichos de operadores estrangeiros. Ainda assim, sem aeroporto não haveria milagre turístico, nem o Algarve tal como o conhecemos…mas será que quando tiver 20 milhões de passageiros em vez de 10 milhões, o Algarve vai duplicar a sua prosperidade?
Ao celebrar o impacto socioeconómico desta infraestrutura em toda uma região e perante a vontade política de criar um novo aeroporto de capacidade ilimitada à volta de Lisboa, é importante conhecer a resposta a esta pergunta, porque à boleia de resorts, campos de golfe, marinas e de um urbanismo caótico, também nasceram desequilíbrios gritantes: paisagens descaracterizadas, preços de habitação proibitivos, bairros-dormitórios longe de tudo e sem transportes públicos e um voto de protesto que se renova em cada ida às urnas. O aeroporto de Faro trouxe o mundo para o Algarve, mas não trouxe garantias de prosperidade partilhada.
E porque Portugal adora reciclar coincidências, erros e ironias, é bem possível que em 2026, no 61.º aniversário do aeroporto, um novo almirante-Presidente da República assista às comemorações e Faro poderá ser o exemplo de um país que moderniza pistas, amplia terminais e bate recordes de turistas – mas que ainda não descobriu como embarcar todos no mesmo voo para um futuro que não deixe ninguém em terra.
Docente em Sistemas de Transporte e consultor em aviação, aeroportos e turismo