O SNS fez agora 44 anos. O que significa para os portugueses?
O SNS é, ainda hoje, a maior realização de democracia portuguesa. Mesmo em períodos problemáticos, como os da atualidade, o SNS faz todos os dias, mais de 140 mil consultas nos centros de saúde, cerca de 3 mil cirurgias e 17 mil atendimentos de urgência no país. Para ser sintético. O SNS fez 44 anos, mas nem toda a gente percebeu o que é! Trata-se da tradução portuguesa atual do “contrato social” iniciado pelos países mais industrializados da Europa, no sentido de encontrar uma solução que permitisse a todos o acesso universal aos cuidados de saúde. O que é importante perceber é que seja qual for a solução encontrada, pese tudo o que de muito positivo se foi conseguindo fazer, a plena realização desse direito, a concretização dessa promessa extraordinária, está sempre eivada de inúmeras e sérias dificuldades.
Porquê?
Porque conseguir acesso a cuidados de saúde de qualidade para todos, a qualquer hora, em relação a todo o tipo de cuidado e em toda a extensão do país, é um desafio extraordinário. As pessoas não se apercebem das dificuldades reais em cumprir essa promessa e, naturalmente, queixam-se disso. Claro que isso entende-se facilmente, mas ao mesmo tempo que as pessoas expressam a sua insatisfação, devem tomar consciência da natureza dessas dificuldades e dos principais fatores que as determinam. E adquirida esta literacia é necessário que colaborem ativamente na busca e implementação de soluções possíveis.
Mas quais são exatamente as grandes dificuldades?
São de variadíssima ordem. Primeiro: ter economia, ter dinheiro. Um país que tenha uma classe média muito pequena e uma classe destituída grande, não pode cumprir esta promessa. Este projeto cumpre-se através de um mecanismo segundo o qual os que podem contribuem para os que não podem. Ora, se os que podem são poucos, isto deixa de ser viável! Portugal tem passado por períodos difíceis em relação ao seu crescimento económico e também por crises significativas nesta matéria – lembremos os anos da Troika. Tivemos uma queda do Produto Interno Bruto (PIB), desemprego, dificuldades económicas, empobrecimento. Diminuiu-se entre 15 e 20% o orçamento para a saúde e, em magnitude similar, o rendimento dos profissionais. Ainda por recuperar. E isto, sabendo que tínhamos já vindo a sofrer de uma crónica suborçamentação do SNS. Ainda por cima num período de necessidades acrescidas em cuidados de saúde … isso tudo deixou rasto até aos nossos dias, quando vimos a pandemia acrescentar novas dificuldades.
Por outro lado, tem-se observado que o orçamento da saúde, tem sido, desde há anos, refém da gestão do défice público, através de um processo de cativação orçamental – não libertar o prometido – que torna uma gestão racional e previdente do SNS quase impossível. Só há cerca de um mês é que o Ministro das Finanças anunciou que vai ser possível criar uma reserva orçamental para o próximo ano, que permitirá libertar o SNS das cativações que tem sofrido e das suas consequências. Uma outra pressão financeira significativa sobre o SNS advém dos extraordinários progressos que a inovação tecnológica traz continuamente aos cuidados de saúde, na informação e comunicação, nos diagnósticos e nas mais variadas terapêuticas…
“A iliteracia, a falta de preparação e o descuido em relação às normas de “boa utilização” dos serviços dificultam o funcionamento do SNS”
Mas, as dificuldades não são apenas económicas…
… Seguramente que não. O segundo tipo de dificuldade é o comportamento das pessoas. Está escrito em todo o lado que é preciso telefonar para a Linha SNS24, antes de nos dirigirmos às urgências, exceto naturalmente em situações catastróficas … não o fazendo, ajudamos a agravar os problemas! A iliteracia, a falta de preparação e o descuido em relação às normas de “boa utilização” dos serviços dificultam o funcionamento do SNS.
E há também o descontentamento dos profissionais de saúde…
A situação dos profissionais de saúde tem sido muito problemática, como em muitos outros países. Os profissionais de saúde têm queixas justificadas sobre os seus baixos salários, expectativas de melhores condições de trabalho, aspirações a vida profissional e pessoal de aceitável qualidade. Quando os sindicatos dizem que querem aumentar os salários têm toda a razão. Não só têm ordenados muito baixos, como têm perdido rendimento nos últimos 15 anos, porque para além dos cortes já referidos, os seus salários não foram atualizados.
Daqui que o diálogo entre as profissões da saúde e os governos seja particularmente exigente e difícil. As organizações sindicais estão fartas de esperar e os governos têm dificuldade em satisfazer as suas justas revindicações acumuladas de uma só vez. E depois há questões mais subtis. É da lógica sindical pretender melhorias salariais para todos, visíveis, fáceis de explicar e de compreender. No entanto, por vezes, os governos buscam, compreensivelmente, fórmulas mais complexas, transformadoras e desiguais, na medida em que uma parte significativa dos aumentos salariais propostos aparece associada ao tipo de desempenho conseguido. E, não é fácil negociar um ponto de equilíbrio útil e justo entre estas duas conceções.
As dificuldades parecem de facto notórias …
Mas há mais. O crescimento de setor privado, com fins lucrativos, tem sido muito substancial nas últimas décadas e os grupos empresariais que o constituem têm naturalmente a ambição de assegurarem uma parte crescente da prestação dos cuidados de saúde no país. Contrastando com isso, tem havido poucos progressos a assinalar na administração pública portuguesa que sustenta o SNS. Naquilo que diz respeito à sua descentralização e diferenciação de proximidade e à sua sensibilidade face à grau de satisfação dos seus profissionais, de forma a atraí-los e retê-los no SNS, e da dos seus utilizadores, os verdadeiros “proprietários” do SNS.
“A população portuguesa tem envelhecido muito consideravelmente nas últimas décadas. Isso quer dizer que uma das principais prioridades do SNS passou a ser a resposta a um grande número de pessoas com múltiplas situações de saúde de evolução prolongada”
Certamente é possível encontrar formas de ir superando essas dificuldades…
Sim, claro, mas é necessário fazê-lo contínua e persistentemente, muitas vezes com respostas imediatas, de curto prazo, para ultrapassar certas situações críticas, mas principalmente com soluções mais de fundo, mais estruturais, que levam mais tempo a realizar, mas que procuram responder àqueles desafios essenciais que a evolução dos sistemas de saúde traz.
Como por exemplo?
Há 44 anos, quando criámos o SNS, a preocupação era: a saúde da mulher e da criança; uma cobertura em cuidados médicos em todo o país; e a resposta à doença aguda. Isso continua a ser necessário, mas agora há novos desafios. A população portuguesa tem envelhecido muito consideravelmente nas últimas décadas. Isso quer dizer que uma das principais prioridades do SNS passou a ser a resposta a um grande número de pessoas com múltiplas situações de saúde de evolução prolongada e que requerem cuidados frequentemente – é a chamada morbilidade múltipla.
À primeira vista, o desenvolvimento da reforma dos cuidados nas últimas duas décadas deveria ter dado uma resposta efetiva a este novo desafio. E de facto a transição de antigo modelo burocrático de centro de saúde para um novo desenho mais decentralizado, com unidades funcionais mais autónomas, tendencialmente contratualizadas pelo seu desempenho, foi um avanço considerável quer no acesso quer na qualidade dos cuidados de saúde. No entanto, o desenho do novo centro de saúde previa um conjunto de mecanismos que compensavam a componente centrífuga do novo modelo e que devia contribuir para indispensável continuidade e integração de cuidados. Não só no interior do centro de saúde, mas também em relação ao sistema hospitalar, para além da proteção e promoção da saúde na comunidade.
E quais são esses mecanismos?
São os da governação clínica e de saúde, com os seus instrumentos próprios, como registo eletrónico único e o plano individual de cuidados, por um lado, e a base de dados sobre a saúde na comunidade e o plano de saúde local, por outro. Mas, de facto, houve pouco ou nenhum investimento no desenvolvimento efetivo desses instrumentos.
“Uma reforma desta amplitude carece sempre de um mínimo de documentação pública sobre os seus objetivos e seus fundamentos técnicos e sobre as principais características da nova organização proposta”
E então os ACeS, os agrupamentos de centros de saúde, não foram um sucesso?
A ideia de agrupar os centros de saúde em ACeS foi intimamente associada ao propósito de lhes proporcionar autonomia na sua gestão. Nem essa autonomia foi concedida, nem os instrumentos necessários ao seu desenvolvimento frutificaram. Perdemos o nome histórico e altamente sugestivo de “centro de saúde”, a favor da feíssima e insignificante designação de ACES.
A reforma anunciada da reorganização do SNS em 39 Unidades Locais de Saúde (ULS) resolve os problemas de continuidade e integração de cuidados que o preocupam?
Em primeiro lugar, os mecanismos e instrumentos de saúde publica e de continuidade e integração de cuidados que referi não necessitam de uma reorganização do SNS para serem implementados e conseguirem realizar os seus objetivos. Uma reorganização profunda de um grande serviço público como o SNS, tem sempre um preço, por vezes elevado. A experiência internacional demostra-o. Os rearranjos que implica consomem sempre energia, tempo e recursos. Por isso seria importante poder argumentar com suficiente rigor que, apesar do preço da reorganização, esta ativaria os instrumentos referidos mais rápida e eficientemente do que aconteceria na ausência de qualquer reorganização.
E esta argumentação está em falta?
Uma reforma desta amplitude carece sempre de um mínimo de documentação pública sobre os seus objetivos e seus fundamentos técnicos e sobre as principais características da nova organização proposta. Suficientemente detalhada para poder ser analisada e compreendida por todos os interessados, e muitos são-no. Isto é especialmente importante quando se sabe, à partida, do caráter controverso da reorganização proposta. De outra forma ficamos desconfortavelmente prisioneiros entre a maledicência sobre o desconhecido e a fé de que tudo vai correr bem. E sabe-se como este tipo de transformações são dependentes da convergência de muitas boas vontades, bem informadas e motivadas.
“Os profissionais de saúde querem ter um ordenado melhor, mas querem também maior flexibilidade na forma de trabalhar; poder escolher horários; viver além de trabalhar…”
De qualquer forma, haverá muito mais a acontecer atualmente na saúde que deve merecer a nossa atenção?
Assim é, de facto, começando pela criação da Direção Executiva do SNS, como Instituto Público Especial, com a autonomia de gestão inerente. Uma decisão muito importante. Além das óbvias vantagens dessa autonomia, liberta o Ministério da Saúde (MS) para se focar noutros aspetos da política pública de saúde, como a Saúde Pública, as questões do medicamento, da tecnologia, dos recursos humanos e dos recursos financeiros. Este ano, já tivemos um primeiro reflexo desta libertação do MS da tutela direta do SNS e, há dias, o Conselho de Ministros aprovou o Plano Nacional de Saúde 2030, o que requer que todos os setores da governação do país se envolvam na sua implementação.
Há outos dois aspetos que merecem também especial atenção: o primeiro é fazer do SNS um centro de conhecimento. Os profissionais de saúde querem ter um ordenado melhor, mas querem também maior flexibilidade na forma de trabalhar; poder escolher horários; viver além de trabalhar; ter condições de trabalho estimulantes, com futuro e que permitam investigar e, eventualmente, até ensinar. O sistema de bolsas de investigação para o SNS, que está agora em andamento, é uma boa notícia, porque acrescenta aquelas condições que os profissionais sentem que valorizam a sua carreira e o seu futuro. Espero que aconteça com velocidade e intensidade suficiente para que muita gente beneficie. O segundo aspeto, que interessa referir é a intenção de finalmente fazer um sério investimento tecnológico no SNS. O primeiro candidato foi a cirurgia robótica, que é estado de arte, mas há mais tecnologias fundamentais. Esta intenção já em processo de concretização é também uma boa notícia.
Muito recentemente o governo legislou sobre a dedicação plena nos hospitais e sobre as unidades de saúde familiares (USF). O que pensa sobre estas decisões?
São ambas matérias fundamentais para o futuro do SNS. Como não podia deixar de ser, neste tipo de assuntos, há opiniões discordantes sobre alguns dos detalhes destas legislações nos meios profissionais e sindicais. Parece-me, no entanto, que é muito importante começar a percorrer o caminho anunciado para criar melhores condições de exercício profissional nos centros de saúde e nos hospitais e, através da experiência obtida, fazer os ajustamentos necessários para melhorar a funcionalidade dos serviços e corresponder melhor às expetativas dos profissionais.
Está preocupado com o futuro do SNS?
Estou sim. Penso que para sairmos o mais rapidamente possível da situação atual precisamos de evoluir rapidamente para um novo modelo de governação e governança para a saúde.
“Não podemos continuar a ter praticamente todas as “tropas da governação” mobilizadas para o imediato, para o curto prazo”
O que é que isso quer dizer?
Não podemos continuar a ter praticamente todas as “tropas da governação” mobilizadas para o imediato, para o curto prazo. Para lidar com a complexidade dos sistemas de saúde de uma forma sistémica, não medida a medida ou dossier a dossier, necessitamos de novas formas de tratar a informação e o conhecimento e, principalmente, de um dispositivo reconhecível e competente de análise, planeamento e direção estratégica. Já não se trata de saber o que é necessário fazer, mas principalmente como fazê-lo.
É preciso saber qual é a agenda dos atores sociais: o que pensam os médicos, os enfermeiros, a Indústria. O que pensa o setor privado; qual é a sua agenda e o que pretendem fazer; o que é que as pessoas querem; como será o futuro; que tensões existem no sistema de saúde; que evoluções tecnológicas farão um futuro diferente. Tudo isso tem de ser pensado a tempo. É sob essa análise que funcionam algumas respostas a curto prazo, mas principalmente as de médio e longo prazo. Em resumo, a situação pode ser configurada desta forma: temos um contrato social extraordinário, mas que constitui uma promessa difícil de cumprir, que exige um esforço contínuo de superação, imediato e a prazo.
Por exemplo?
Por exemplo, em janeiro de 2018 foi apresentada uma proposta para mudar a Lei de Bases da Saúde, que foi aprovada em setembro de 2019, praticamente dois anos depois. Mas, o novo estatuto da Direção Executiva do SNS foi publicado em julho de 2023. Isto não pode acontecer! Dada a natureza da Lei de Bases e daquilo que estava em discussão, a Lei de Bases e o Estatuto do SNS deveriam ter sido desenvolvidos simultaneamente. Esta perda de tempo, esta dificuldade de perspetivar o futuro, mesmo o futuro próximo, é incomportável para um sistema que está sob pressão. Nós, na Academia, culpamo-nos, porque também não conseguimos convencer o sistema político da importância de constituir esse dispositivo de pensamento e ação estratégica. Não somos muito persuasivos!
A pandemia da covid-19 pode ser uma justificação para este atraso do Estatuto?
Falamos de 2018 e 2019, e estamos agora em 2023. Além dos danos imediatos e agudos, que foram substanciais, a pandemia criou vários problemas para o futuro imediato. O primeiro são os cuidados acumulados que não foram prestados. É preciso fazer essa recuperação, num sistema já sobrecarregado com o imediato. Por outro lado, a covid-19 introduziu uma doença crónica, chamada “covid longa”, que abrange uma percentagem não desprezível dos infetados e que acresce às necessidades de cuidados de saúde. Finalmente, a enorme pressão da pandemia sobre as profissões da saúde tornou ainda mais evidentes as múltiplas insuficiências existentes. Ao mesmo tempo que respondíamos à covid-19, era indispensável preparar o pós-covid imediato e fazer uma avaliação independente e detalhada da gestão da pandemia para extrair as lições que alimentam um futuro melhor. Acudir ao imediato ao mesmo tempo, ter uma “reserva pensante” que perspetiva o futuro é um dos aspetos mais salientes do novo modelo de governação da saúde de que precisamos.
SM
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