“Dignificar a MGF, valorizar a Saúde”. Porquê esta temática no 41.º Congresso?
O nosso trabalho, enquanto médicos de família, não tem tido a valorização e o respeito que merece, daí ser preciso dignificar o seu papel em todo o sistema de saúde – não somente no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Temos de assegurar, de uma vez por todas, que são os cuidados de saúde primários (CSP), a Medicina Geral e Familiar, a base de tudo isto como já o sabemos há anos. Atualmente, estamos a viver uma nova fase e existem muitos receios, mas é nestas alturas de mudança que devemos apostar no que é mais correto. Temos o dever de dignificar a MGF para se ter melhores cuidados de saúde, um melhor sistema de saúde/SNS.
Haverá uma sessão intitulada “ULS- ganhar o futuro”. As ULS são mesmo uma mais-valia?
Vivemos tempos de uma mudança complexa e quando se altera algo há sempre resistências. É normal que tal aconteça. Mas, de facto, existem apreensões, porque o envolvimento dos profissionais, sobretudo dos CSP, não tem sido o desejável. Na prática, sente-se que estamos a apanhar o comboio já em andamento. As ULS é uma eterna questão, mas é o modelo que temos hoje em dia. O conceito de ULS, os seus princípios de base, é inatacável, porque somos todos a favor de uma melhor integração entre cuidados primários e hospitalares, melhor gestão de recursos, otimização do que já existe. O problema centra-se na forma como tudo isto é implementado, nomeadamente em qual é o papel dos CSP. Outro aspeto fundamental é a capacidade de se balizar algumas situações, respeitando a autonomia das unidades. Os limites são importantes para não acontecer aquilo que receamos: a subalternização dos CSP, ou seja, os CSP podem ser aspirados para os hospitais e ficarem completamente afogados naquilo que é a máquina hospitalar. O desejável é que haja dois níveis de cuidados a trabalharem em conjunto. É um processo difícil, que não está a decorrer de forma idêntica em todas as regiões. Vamos continuar a falar deste tema até que respeitem o trabalho da MGF.
“Continua-se também a ter unidades que não têm acesso ao modelo B, porque não têm dimensão, ou por terem uma situação sociodemográfica ou mesmo geográfica, que o impede”
O novo regime remuneratório das USF vai estar em debate. Qual a posição da APMGF em relação a este tema?
Este regime remuneratório ficou aquém do que devia ser. Quando se fala em generalização do modelo B não é oferecer a todos o que existia anteriormente, na medida que mudámos regras, indicadores, fórmulas de cálculo. Sendo certo que grande parte dos profissionais que transitaram para modelo B veem a sua remuneração melhorar, ainda não se consegue atingir o patamar anterior destas USF. Várias destas unidades correm um sério risco de ver diminuir os seus incentivos e, além disso, há algumas franjas de fora, que não são assim tão poucas. Há colegas que perdem remuneração com esta transição, apesar de nos terem garantido que isso não iria acontecer. Não interessa se são muitos ou poucos. Continua-se também a ter unidades que não têm acesso ao modelo B, porque não têm dimensão, ou por terem uma situação sociodemográfica ou mesmo geográfica, que o impede. Alertámos muitas vezes para esta situação! Esta reforma abrange mais profissionais desta vez, mas não podemos deixar pontas por resolver. Há unidades que melhor trabalho que façam, não vão ter benefícios.
Fala-se muito de USF, mas não se pode esquecer as UCSP…
Exato! Nas UCSP existem várias realidades: equipas que não se reveem no modelo USF – mesmo para estas deveria existir um pacote remuneratório diferente -; há algumas que até podem transitar para USF, mas como são novas, por muito que trabalhem, dificilmente vão conseguir o máximo de incentivos como no regime anterior; e UCSP que não conseguem ser USF modelo B, porque não têm médicos suficientes ou até o número que se espera de utentes. Lembro ainda as unidades com mais que um polo, que obriga a ter listas mais pequenas e que, por isso, não têm direito a incentivos. Não se acautelou este tipo de situações que acontecem, essencialmente, em zonas mais remotas, de maior necessidade. Continuando assim, o SNS não vai conseguir atrair médicos para estas regiões. E um utente de Freixo de Espada à Cinta ou Mourão tem tanto direito em ter médico de família como um de Lisboa ou Porto.
“É preciso um maior consenso, uma lógica de maior estabilidade no que são as políticas de saúde, caso contrário, andaremos sempre a mudar isto ou aquilo e os profissionais ficam perdidos, desmotivados e não vamos ter bons resultados”
O Governo mudou. Poderá ser a oportunidade para alterar essa situação?
Temos sempre esperança que se possa melhorar o que já existe. A APMGF tem sempre propostas para apresentar e estamos disponíveis para colaborar com qualquer Tutela. Esperamos que com o novo Governo se consiga manter capacidade de diálogo e que se oiça quem está no terreno. Mas também achamos que é muito importante não termos de estar adstritos a legislaturas, que já nem sempre são de 4 anos. É preciso um maior consenso, uma lógica de maior estabilidade no que são as políticas de saúde, caso contrário, andaremos sempre a mudar isto ou aquilo e os profissionais ficam perdidos, desmotivados e não vamos ter bons resultados. Não se deve fazer tábua rasa do que está para trás, mas aproveitar o que é positivo, otimizar o que está menos bem e garantir a sua sustentabilidade no futuro, independentemente da conjuntura e da cor política do Governo. Obviamente, existem sempre opções políticas que diferem de partido para partido, mas o fundamental tem de se manter, sob pena de nunca se conseguir levar nada a bom porto. Assim acabamos por andar sempre a tentar reinventar a roda.
No Programa da AD prevê-se um plano de 3 meses de recuperação de consultas, envolvendo os diferentes setores: público, privado e social. Concorda?
O papel da APMGF não é concordar ou discordar. A questão não é bem essa. Se vier a ser aplicado, é necessário perceber de que forma o vai ser. Há alguns princípios que são basilares. Quando se diz que se vai dar médico de família a todos os portugueses não se pode aplicar uma solução de ‘penso rápido’. Não se pode ir buscar colegas de outras especialidades, ou sem nenhuma, a fazerem a vez do médico de família. O acompanhamento tem que ser feito por um MGF, seja no público, privado ou social. Outro aspeto. Qual é a aposta? Se queremos um serviço público, universal e tendencionalmente gratuito – a maioria dos partidos, inclusive os que integram a AD, pensam dessa forma -, não podemos tentar resolver a falta de médicos de família com desvios de um lado para o outro. Quando se pensa em fazer acordos com os setores privado e social, não se pode esquecer que os colegas desses setores também estão a trabalhar, têm os seus utentes. A articulação não pode ser prejudicial para as diferentes partes. O que foi dito, em campanha, é que seria uma solução transitória enquanto não se conseguisse suprir as necessidades do SNS, mas como vamos operacionalizar tudo isto? Será que vamos ter um país a duas velocidades? Até pode existir alguma disponibilidade por parte dos setores privado e social nos grandes centros urbanos, mas há localidades sem médico de família e sem oferta de unidades do privado e social. Nessas localidades, esta não é com certeza a solução, porque o único acesso é o SNS, mesmo com todas as suas ineficiências. Este tipo de situações demonstra o problema que é em se falar em medidas generalistas, sem se ter em conta a realidade específica da região. Vamos esperar. A APMGF cá estará para apresentar propostas para que, no futuro, toda a população que reside em Portugal tenha acesso, efetivo, a um especialista em MGF.
“Todo este processo pode ser agilizado. Há muitos formulários solicitados pela Segurança Social que poderiam ter um preenchimento quase automático, se esta informação fosse partilhada”
Que avaliação faz da relação entre MGF e Segurança Social? O que há a melhorar?
O grande problema é que são duas entidades que têm muitos pontos de contacto, mas com formas de trabalho muito distintas e separadas. O maior problema, à partida, é que não há sistemas de informação que se cruzem e que permitam facilitar o trabalho. Um exemplo claro é o dos utentes com baixa prolongada em que os médicos da família têm de emitir relatórios mensais com a mesma informação clínica. Estes serão depois entregues pelas pessoas nas juntas de avaliação de incapacidade para depois a baixa ser prorrogada. Todo este processo pode ser agilizado. Há muitos formulários solicitados pela Segurança Social que poderiam ter um preenchimento quase automático, se esta informação fosse partilhada. Obviamente, deve sê-lo com limites e com proteção de dados.
Também é importante trabalhar em conjunto para que algumas das burocracias sejam reduzidas e para que a partilha de informação seja tranquila e célere. É ainda uma forma de se evitar que os utentes sejam obrigados a andar a percorrer várias ‘capelinhas’ para terem acesso a um papel para um dado subsídio. Tudo isto consome recursos e gasta tempo. Nesta sessão não se trata tanto de fazer o diagnóstico, que já é conhecido, mas apontar soluções para o futuro. E, claro, é um momento em que ambas as partes partilham os seus desafios.
No que diz respeito ao setor privado, vão ter uma sessão com testemunhos. Qual o intuito?
A lógica é ser algo muito terra-a-terra, com três colegas que trabalham em realidades muito distintas. Desta forma, queremos mostrar o que pode ser a MGF fora do SNS. Existe muito para fazer e algumas nem são assim tão clínicas. Mesmo no setor privado, os médicos de MGF podem ter várias funções. Este tema gera sempre muitas dúvidas, nomeadamente no que diz respeito à integração nas equipas.
Mais uma vez vão abordar a Saúde dos Migrantes e Refugiados. Quais os principais desafios?
Há dois grandes grupos: inscrição dos utentes e o seu contexto. A inscrição nem sempre é possível por não existirem dados, dificultando registos e prescrição de MCDT e receitas médicas. Este é um obstáculo grande ao acesso a cuidados de saúde. Relativamente ao contexto, a matriz sociocultural influencia o seu estado de saúde. Há patologias que não são comuns em Portugal. A alimentação, contexto familiar, carga genética, aceitação de propostas terapêuticas, entre outros.
“Já estamos a trabalhar nesse grande evento, o WONCA 2025, no qual se vai dar especial atenção à nova visão para os CSP no contexto de desenvolvimento sustentável, de One Health“
A Morte é outra das temáticas. É mesmo o elefante branco na sala?
É verdade. É um tema que não se gosta de abordar enquanto pessoas, utentes ou profissionais. A própria formação nesta área não é abundante. Mas, de facto, confrontamo-nos com a mesma com alguma frequência. É o caso dos utentes que sabem que a sua vida está a chegar a uma fase final, mas também a família. Até connosco próprios, porque acompanhamo-los durante anos e existe já uma ligação que ultrapassa a profissional. Como vamos lidar com este desafio? Como podemos apoiar o doente a família? Que recursos existem?
Mais uma vez vão ter o Clube de Leitura. Qual é a mais-valia da Literatura na prática clínica?
Não podemos viver só de Medicina. Os médicos também têm outros interesses e esta é uma aposta que se tem de manter até para nos encher a alma. Não devemos ler apenas livros técnicos.
Este ano, a obra de Lídia Jorge intitula-se “Misericórdia” e tem por base a realidade das ERPI. Com este Clube de Leitura também se pretende que o médico tenha em conta diferentes perspetivas da realidade?
Também é fundamental sair da visão meramente clínica e olharmos para uma outra mais ligada à sociedade, mais humanista, de ligação a um mundo não clínico.
Nos próximos tempos, o foco vai ser, essencialmente, o WONCA 2025?
Sim, sem dúvida! Já estamos a trabalhar nesse grande evento, o WONCA 2025, no qual se vai dar especial atenção à nova visão para os CSP no contexto de desenvolvimento sustentável, de One Health. Vai ser inevitavelmente marcante e este evento vai melhorar o ânimo de todos os especialistas em MGF. Bem precisamos!
Maria João Garcia
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