Portugal registou uma escalada preocupante nos casos de violência doméstica contra cônjuges ou análogos entre 2020 e 2024, ultrapassando as 37 mil vítimas anuais desde 2022. Dados oficiais da PSP e GNR revelam um aumento de 17% no número total de vítimas nesse período, com as mulheres a representarem cerca de 70% dos casos, embora o número de homens vítimas tenha crescido 37%.

Em 2020, foram identificadas 31.832 vítimas; no ano seguinte, o número manteve-se semelhante (31.530). A verdadeira rutura deu-se em 2022, com 37.696 vítimas registadas, o valor mais alto da década. 2023 e 2024 mantiveram esta tendência elevada, com 37.214 e 37.315 vítimas respetivamente.

A pandemia teve impacto direto nos registos. Em 2020 e 2021, as restrições dificultaram denúncias, apesar de a violência não ter diminuído. A quebra aparente nesses anos é atribuída à subnotificação. Já em 2022, com o fim dos confinamentos, verificou-se um “efeito de rebote”, com mais vítimas a denunciarem os abusos, refletindo um aumento real e uma maior capacidade de resposta das autoridades.

Os dados por sexo revelam que, apesar de as mulheres continuarem a ser as principais vítimas (26.566 em 2024), os homens vítimas passaram de 7.858 em 2020 para 10.749 em 2024. Esta evolução demonstra uma crescente consciencialização social, com mais homens a denunciarem situações de abuso. A APAV registou mais de 6.500 atendimentos a homens entre 2022 e 2023, um crescimento de 17%.

A análise por fases evidencia três períodos distintos: 2020–2021, com uma leve retração nos registos devido à pandemia; 2022, com um salto expressivo de 19% nos casos face a 2021; e 2023–2024, com estabilização num patamar preocupantemente elevado, acima das 37 mil vítimas anuais. A violência doméstica foi o terceiro crime mais registado em Portugal em 2024, representando 9% do total de ocorrências e um alarmante 33% dos crimes contra pessoas.

O agravamento da situação levou o Estado português a reforçar políticas públicas e medidas de proteção. Entre as medidas implementadas destaca-se a criação da licença especial para vítimas, com apoio financeiro para reorganização da vida familiar; a expansão da teleassistência e pulseiras eletrónicas para agressores, abrangendo mais de 5.600 pessoas em 2024; a adoção de medidas urgentes nas primeiras 72 horas após denúncia, com avaliação imediata do risco; o aumento do número de casas abrigo e respostas de emergência, que acolheram mais de 1.400 pessoas só no último trimestre de 2024; o lançamento do Portal da Violência Doméstica, com estatísticas trimestrais e canais de denúncia online; e o reforço da formação especializada a polícias, magistrados e profissionais de saúde e educação.

Legislativamente, o período foi marcado por revisões ao Código Penal, alargando as penas acessórias e garantindo proteção acrescida a vítimas especialmente vulneráveis. O combate à violência doméstica passou também pela articulação entre polícias, Ministério Público e Comissões de Proteção de Crianças e Jovens, sobretudo em casos com menores em risco.

As causas do aumento de denúncias são múltiplas: o fim dos confinamentos, a maior visibilidade mediática, as campanhas de sensibilização, as melhorias na recolha de dados e a quebra de estigmas que impediam homens de denunciar. Apesar dos avanços, a estabilização em valores tão elevados preocupa especialistas e autoridades. A violência doméstica continua a ser um problema estrutural, com raízes culturais, económicas e sociais profundas. A resposta institucional tem evoluído, mas exige continuidade, reforço de meios e uma mudança cultural sustentada.

Portugal tem hoje mais mecanismos de apoio do que nunca, mas os números continuam alarmantes. A aposta do Estado na prevenção, proteção e punição é clara, mas a violência doméstica permanece um dos maiores desafios de segurança e direitos humanos do país. A ambição é transformar a estabilização atual numa queda consistente de casos e, finalmente, eliminar este flagelo.