
No ano em que celebra a sua 25ª edição o Festival de Músicas do Mundo continua igual a si próprio, com concertos dentro e fora do recinto que nos transportam aos cinco continentes, com bancas de artesanato que se prolongam pelas artérias da cidade histórica de Sines e o comércio local que abre as portas aos que visitam o FMM.
Nesta edição destacaram-se nomes como Bia Ferreira e Nação Zumbi – duas referências da música brasileira que marcam, e continuam a marcar, duas gerações distintas; o lendário cantor senegalês Youssou N’Dour; o maior grupo musical palestiniano, os 47 Soul; e ainda a artista maliana Rokia Traoré, que já contava com três passagens pelo FMM (2004, 2008 e 2013).
Em visita a um Festival de Músicas do Mundo que continua a crescer, o Diário do Distrito foi falar com a população local, comerciantes, festivaleiros e artistas de rua com o objetivo de entender o ambiente e a música que atrai milhares de pessoas todos os anos, mas também para perceber o que este festival significa para os habitantes da cidade de Sines.
Um Festival Fora do Festival
Acontece todos os verões no Alentejo há 25 anos, quando Sines se enche de vozes, sons e ritmos que cruzam fronteiras, em simultâneo, há um outro festival a acontecer — paralelo, improvisado, genuíno. É um festival fora do festival, aquele que se vive nas ruas, nas vielas e nas praças da cidade, enquanto os palcos oficiais do Festival Músicas do Mundo explodem de energia.
Em pleno centro histórico, ao virar de cada esquina, há sempre uma guitarra a dedilhar uma melodia, um quarteto a improvisar, ou um percussionista solitário. É aqui que a música escapa das muralhas do castelo e invade a cidade — livre e espontânea, em liberdade.

O Festival de Músicas do Mundo é único
“É um ambiente lindo”, afirma com entusiasmo um comerciante, proprietário da Mercearia 27. “É para a comunidade, é para a cidade. Vais numa rua e do nada tens um violino, uma guitarra, uma voz. Faz todo o sentido!”. Assume que o festival é mais do que música: “Muda tudo: o sentimento e as pessoas. É ótimo para o negócio, claro, mas também para a alma da cidade.”
As músicas do mundo são únicas, este ambiente é único e o sentimento que se vive neste festival, nesta cidade é único. Pessoas sentadas em mantas, jovens a dançar descalços, passeios familiares, artesãos a vender bijuteria e arte — e no meio de tudo isto, músicos de rua, a alma pulsante deste outro festival.
Um deles, conta porque voltou ao festival após uma década: “Lembro-me de há 10 anos de ter gostado bastante e de ter uma boa linha de artistas de rua, queria sentir esse espírito outra vez”. E por isso decidiu trazer o instrumento, uma guitarra, “para espalhar o ambiente, espalhar boa música” e aproximar-se de outros músicos com gostos parecidos e quem sabe, “formar um projeto.”

Mesmo com os grandes nomes do FMM a actuar dentro do castelo, são muitos os que preferem o ambiente exterior. O jovem artista de rua é direto: “O festival acaba por englobar muitos estilos de música diferentes, hoje em dia a malta está mais presa no pop, eu sinto que isto ajuda a englobar uma variedade maior de musica, enriquecendo a cultura no geral”.
Diz-nos ainda que há espaço para todos: “Não houve uma noite em que não tenha tocado com os outros músicos ou partilhado ideias. Juntar novos instrumentos é sempre interessante. Para mim, o festival é liberdade.” Como resumiu outro dos festivaleiros entrevistados sobre os músicos de rua “nunca tinha visto isso antes (em festivais de verão), acho muito bem, toda a gente está no seu direito de cantar o que quiser e tocar o que quiser”.
O FMM de Sines é mais do que uma programação oficial. É uma celebração que se estende para lá dos horários e dos recintos. É a arte que acontece porque sim, os encontros improváveis, a troca de culturas feita de forma crua e honesta. Neste festival dentro do festival, Sines é palco e o público é parte do espetáculo, e em cada canto da cidade canta-se uma canção diferente — de todas as músicas, do mundo inteiro.
O FMM e a cidade de Sines
Numa altura em que o individualismo e o vício nas redes sociais andam de mãos dadas, a par das queixas de que o associativismo popular se tem perdido no sufoco legislativo e nas dificuldades de renovação geracional, o que vimos no Festival de Músicas do Mundo é algo de diferente de todos os outros festivais – mesmo com um público maioritáriamente jovem, não há bancas para tirar uma selfie para a marca “X” ou “Y”, não se utilizam os influencers como forma de promover o festival e preserva-se a tradição portuguesa das tascas, das associações e do comércio de rua.
Sines, quando eu tinha 19 anos era sempre assim. Depois isso perdeu-se e acho que o festival traz essa vida de volta durante uma semana
A cidade transforma-se. Até quem vive em Sines surpreende-se com a energia. “No dia-a-dia é raro vir aqui abaixo”, confessa um sineense que nasceu aqui há mais de cinquenta anos atrás e que voltou depois de várias décadas imigrado em França. “Mas hoje convidaram-me para vir beber um copo e isto é muito bonito. Sines, quando eu tinha 19 anos era sempre assim. Depois isso perdeu-se e acho que o festival traz essa vida de volta durante uma semana.”
Também natural de Sines, neste momento a viver fora da região, uma das visitantes do festival afirma que aquilo que mais gosta no FMM “é de conhecer o mundo todo sem andar de avião” e acredita que o festival “ajuda a população local a conhecer outros povos” e a “diminuir os preconceitos”.

“Já fui a muitos festivais, mas este distingue-se de forma muito forte. Muito multicultural. Sinto que esta questão de serem tantos países é uma coisa inédita. Não é nada comercial”, destaca um dos visitantes entrevistados que veio pela primeira vez ao festival.
A verdade é que todos os sineenses entrevistados mostravam-se de mente aberta e felizes com esta semana em que a cidade se enche de cultura, mas sobretudo de vida. Mesmo os que não se misturam na confusão do festival ou para aqueles que não lhes agrada a música, admitem o gosto ir ao centro da cidade e embrenhar-se do ambiente, muitos optando por dar uma volta com a sua família porque considerarem este ambiente seguro e familiar.
Falta de casas de banho
Contudo, nem tudo é um mar de rosas. O FMM vai crescendo de ano para ano, já tendo atingido a marca dos 100 mil visitantes por edição e por isso, existem dores de crescimento que os habitantes vão apontando, sobretudo, à Câmara Municipal.
Um casal – dois habitantes de Sines – que visitam o festival desde o inicio, reforçam esta ideia: “O festival atrai muitos turistas e um bom ambiente para o comércio local”, mas acrescentam que há coisas a melhorar no campismo porque “temos poucos jardins e pouca relva, ocupam a relva toda e a acabam por destruir (os espaços verdes)”.
Ainda antes de chegar ao centro histórico, nas zonas residenciais, é visível em cada canto da cidade, cada jardim, cada porção de relva, as tendas de quem vem acampar. Outros dois moradores comentam que “não há condições de higiene” e existe “falta de infraestruturas”, mais especificamente casas de banho para os campistas.
Numa entrevista exclusiva ao Diário do Distrito, o Presidente da Câmara de Sines, Nuno Mascarenhas, afirma que o FMM “é o único festival português que recebeu o reconhecimento por parte da Comissão Europeia para a cultura”, relembrando que em 2017 o festival “recebeu um prémio em Bruxelas, quando estávamos a competir com festivais de todas as áreas artísticas da europa”.
Em resposta às queixas dos moradores, o presidente afirma que “temos novas unidades hoteleiras” e “criámos acampamentos em diferentes áreas da cidade, o que permite alojar de forma provisória, uma vez que não estamos a falar de acampamento definitivos”. Sobre a higiene, diz ao Diário do Distrito que já foram criados “dois novos espaços com casas de banho, com duche, um junto ao pavilhão multiuso, outro no parque desportivo a que chamamos IOS”.
Por fim sublinha que “muitas das casas comerciais não possibilitam o acesso às casas de banho”. “Isso é algo que não poder ser admissivel. Já sensibilizamos as casas comerciais, (os cafés e restaurantes), para não encerrarem as casas de banho, e naturalmente, nos próximos anos, o mais fácil é condicionar a abertura dessas casas ao facto de terem obrigatoriamente casa de banho”.
Reportagem de Nádia Pedro e Diogo Alexandre