Um livro cumpre a sua missão quando nos interpela, intriga e obriga a pensar e, porventura, a reformular preconceitos ou a aprofundar conhecimentos. Foi o que me aconteceu com O Mago do Kremlin, o primeiro romance de Giuliano da Empoli (Gradiva, 2022), autor do ensaio Os Engenheiros do Caos (2023), que versa sobre os ideólogos e pregadores responsáveis pelo «carnaval» populista global, que «pôs o mundo ao contrário».

Como diria Pessoa, «primeiro estranha-se, depois entranha-se». A sua estrutura narrativa parece inspirada no admirável romance de Sándor Márai, As velas ardem até ao fim (2021)um inusitado encontro noturnoentre duas personagens, num castelo arruinado, que simboliza o fim de uma época. Durante esse encontro, um dos protagonistas vai desnudando a sua história de vida até desvendar um segredo.

O romance de Empoli também é povoado por duas personagens centrais que se encontram, não para autopsiar um mundo velho, mas para convocar um admirável mundo novo. Esse encontro foi propiciado por uma troca de mensagens, entre os dois, nas redes sociais, a propósito do livro Nós (1922), de Evgueni Zamiatine, distopia profética (que terá inspirado Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de Orwell) que augurou um mundo digital, dos algoritmos, «liso, sem asperezas» (p. 16), dirigido por tiranos que hoje sabemos serem os oligarcas de Silicon Valley, os mandarins do partido único chinês, os milionários trumpistas dos EUA ou o atual «Czar» do Kremlin e os seus antigos colegas do KGB.

As personagens são um académico francês, que se encontra em Moscovo a investigar a vida e a obra de Zamiatine, e Vadim Baranov, génio da comunicação, cognominado de «Mago do Kremlin», figura imaginada, descendente da aristocracia czarista e da elite comunista da URSS, que ascendeu a fantasmagórico estratega de Putin.

Baranov, depois de contribuir para erguer e consolidar a popularidade de Putin, decide sair de cena, demitir-se e isolar-se num acolhedora moradia neoclássica, aninhada entre a floresta e as margens de um pequeno lago situado longe de Moscovo – casa onde decorre a ação deste romance. Os segredos que ele vai contar, nessa noite branca, ao académico e narrador desta história, podem deixar o leitor perturbado e meditabundo. Ficção e realidade confundem-se para oferecer ao leitor um tratado de ciência política sobre a história contemporânea da Rússia, a idiossincrasia dos russos, a invasão da Ucrânia, a intrincada geopolítica do mundo, a ascensão de Putin dos subterrâneos ao cocuruto do poder, a mente maquiavélica deste «Príncipe» do Kremlin e a autópsia da autocracia totalitária e granítica que conseguiu erigir (denominada, em linguagem metafórica, «democracia soberana», assente na «verticalidade do poder»).

Nem tudo é o que parece! O mundo é complexo e por isso nunca pode ser interpretado com elucubrações maniqueístas. Moral desta história: só os cidadãos bem informados, esclarecidos da sua História e precavidos contra os alçapões da memória, só os cidadãos genuinamente inquietos com o futuro de um mundo (onde os seus descendentes e entes queridos deverão viver e não vegetar), só os cidadãos movidos pela razão e não pela cólera podem fintar as tramoias mortais dos populismos soberanistas e ditatoriais. Na Rússia. E, sobretudo, no Mundo a que se convencionou chamar «Ocidente».

Termino com um trecho do livro aqui apresentado, um diálogo fictício, tão cínico quanto esclarecedor, travado entre o oligarca Yevgeny Prigojine (amigo de Putin, que acabaria, porém, por reservar-lhe um destino trágico) e Baranov, o «Mago do Kremlin», quando este ainda se encontrava na plenitude das suas funções políticas.

Prigojine «- O cérebro humano está cheio de pequenas falhas […] Conhecê-las e tirar proveito delas é o ofício de quem gere um casino. Mas também é assim que funciona a política, não achas? Enquanto se está à vontade, e se tem um emprego assegurado, uma bela família, a casa de campo, as férias à beira-mar, a reforma em perspetiva, está-se tranquilo. Fazem-se escolhas prudentes, não se quer correr riscos. Escolhe-se aquilo que se conhece. Mas digamos que as coisas começam a ir menos bem. A situação muda, o tipo perde o emprego, perde a casa, já não consegue ver um futuro. Que faz ele nesse momento? Joga na prudência? De todo que não: começa a apostar como um louco! Prefere o risco desconhecido à manutenção da sua situação atual. É aí que tudo muda: o caos torna-se mais atraente do que a ordem, pois ao menos oferece a possibilidade de qualquer coisa de novo, não é? Um golpe de teatro… é então que as coisas se tornam interessantes. A revolução de 1917, o nazismo, nasceram assim, se não me engano? Porque uma maioria de pessoas preferiu lançar-se no desconhecido em vez de continuar a viver como dantes. […] Não sou nem um intelectual nem um especialista em relações internacionais, mas tenho a impressão de que estamos novamente aí. Os ocidentais pensam que os filhos irão viver menos bem que eles. Veem a China, a Índia e, graças a Deus, a Rússia darem passos de gigante, e eles nada. A cada dia o poder deles reduz-se, a situação escapa-lhes ao controlo, o futuro já não lhes pertence.» Baranov: «-Eles estão dispostos a fazer as escolhas mais absurdas. O nosso dever é simplesmente ajudá-los.» Prigojine: Precisamente. Não se trata de os derrotar ou de os obrigar, somente de acompanhar um movimento que já está instaurado. É isso que o Czar [Putin] compreende muito bem. Tal como eu, é um apaixonado do judo e sabe qual é o princípio básico: utilizar a força do adversário contra ele.» (pp. 210-211).

Boas leituras! E, já agora, no dia 18 de maio, votem movidos pela razão e não pela cólera, que é sempre péssima conselheira.

Luís Filipe Torgal