
Fui dos que apreciaram o discurso que Lídia Jorge leu em Lagos, a 10 de Junho de 2025, «Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas».
Gostei do lado formal do texto, pois é dotado de uma beleza literária que só está ao alcance dos grandes escritores, que produzem obras de arte. De escritores complexos, densos e criativos, como Lídia Jorge, conhecida por romances como Os Memoráveis (fábula que cruza várias memórias e discursos divergentes sobre a esperança, as ilusões e as desilusões da Revolução de Abril de 1974 e os caminhos que levaram à democracia), mas também autora de contos, crónicas, ensaios, poesia e peças de teatro.
Gostei também do conteúdo do texto e das suas abundantes referências culturais.
Interpretar um texto de outro autor é sempre uma tarefa difícil e arrojada, pois cada texto pode ter várias leituras. Arriscamo-nos, por isso, a fazer ilações especulativas que não estavam na cabeça dos seus autores.
No seu discurso, Lídia Jorge desejou homenagear Luís de Camões, no «Dia de Camões» e no ano das comemorações dos 500 anos do seu nascimento.
Camões, o escritor genial, que «um dia nasceu e nunca mais morreu».
Camões, o artífice e modelador da língua portuguesa.
O poeta guerreiro errante que experienciou e cantou a epopeia dos «Descobrimentos Portugueses»; que narrou as proezas de uma galeria de personagens «nacionais», Antigas, Medievais e Renascentistas, de modo tão impressivo que influenciou, indelevelmente, a representação que cronistas e historiadores construíram sobre essas mesmas figuras históricas.
O poeta cavalheiresco e humanista que – como os seus notáveis contemporâneos Cervantes e Shakespeare, para os casos de Espanha e de Inglaterra — captou, ou fixou, as idiossincrasias da alma nacional. Que exaltou a coragem de um povo que conseguiu construir um império. Mas que, nesses tempos de servidão e mudança, que terão contribuído para sentenciar o seu ostracismo, teve também o desassombro de escrever que esse mesmo império foi corrompido pela ambição ébria do poder e a ganância do «vil metal».
O homem que teve uma vida cheia e desassossegada. Que viveu remediado e morreu pobre e abandonado. Que vivenciou o clímax do império e pressentiu o início do seu declínio. Que (como muitos de nós, hoje) percecionou, com melancolia, o fim de um ciclo histórico e o início de um novo ciclo que não chegou a conhecer – um novel tempo global contaminado pela loucura dos Homens, pela sua decadência moral, material e intelectual.
Partindo da vida, da obra e da época em que Camões viveu, assim como de Lagos — cidade algarvia anfitriã das comemorações do «Dia de Portugal», que outrora foi lugar simbólico de saída e preparação da Expansão Portuguesa Quinhentista, mas que terá sido também o local onde existiu o primeiro grande mercado de escravos da Europa Moderna —, Lídia Jorge derivou para uma reflexão sobre os «Descobrimentos Portugueses».
Alguns portugueses não apreciaram esta sua inflexão, por motivos bem diferentes.
Uns argumentaram que a escritora não reconheceu que a “colonialidade” continua a estar enraizada nas nossas ruas, monumentos, discursos e imaginação, que a sua narrativa da miscigenação está ainda maculada por laivos do lusotropicalismo, do sociólogo Gilberto Freyre, tese que fez escola durante o Estado Novo, e que o seu discurso sobre o império é uma «conciliação apaziguadora» e não uma «confrontação real».
Outros alegaram que Lídia Jorge sobrevalorizou o «pecado» maior dos nossos «Descobrimentos» e desconsiderou a «dimensão da grandeza transformadora» deste acontecimento. «Dimensão transformadora» evidenciada na descoberta de terras inabitadas, no desenvolvimento das técnicas náuticas e da cartografia, na navegação intrépida por três oceanos e quatro continentes que acelerou o processo da globalização, na permuta de diversos géneros alimentícios, no contributo para o progresso das ciências, na difusão da língua portuguesa, na criação dos países do mundo lusófono…
O «pecado» maior atrás citado foi a escravatura.
«Processo de dominação cruel, tão antigo quanto a humanidade» — as palavras são de Lídia Jorge. Portanto, os portugueses não foram os pioneiros da escravatura, que foi uma prática tão remota quanto infame verificada em todas as civilizações pré-clássicas e clássicas (Suméria, Egito, Pérsia, Grécia, Fenícia, Cartago, Roma…), nas civilizações orientais e ameríndias pré-colombianas (China, Japão, Índia, México, Peru…), na Europa Medieval e no Mundo Árabe, evidentemente, também nos antigos reinos da África Negra.
Devemos, porém, reconhecer que, desde o século XV, os portugueses se envolveram, sobretudo em África, num tráfico negreiro organizado, «longo e doloroso», realizado à escala intercontinental, especialmente lucrativo para os traficantes lusos e para a coroa de Portugal, que foi replicado por outros países europeus até ao século XIX.
Convenhamos que discursando na cidade onde outrora existiu um importante mercado de escravos, Lídia Jorge teria de evocar a escravatura.
Aludiu a um tráfico negreiro «novo»! É justo aqui referir e não obnubilar que as fontes históricas contraditam esta perspetiva, porquanto demonstram que a escravatura intercontinental já existia antes em África, tendo sido praticada, de modo sistemático, desde a Idade Média, por árabes muçulmanos — com a conivência de chefes africanos — que percorreram os territórios subsaarianos e a costa africana banhada pelo oceano Índico.
Em todo o caso, é insofismável que o tráfico negreiro dirigido por portugueses tratou seres humanos como alimárias vendidas à «peça» (um negro entre 15 e 25 anos fazia uma «peça»; uma criança com menos de 8 anos e os adultos de 35 a 40 anos contavam-se por «meia peça»). Desmembrou famílias. Forçou os escravos negros – crianças, mulheres e homens – a prolongadas viagens transoceânicas realizadas em condições inumanas, que, por isso, provocaram grande mortandade (no século XVI, a taxa de mortalidade dos escravos transportados nos navios «tumbeiros» rondava os 10% ou mesmo os 20%, causada por fome, desidratação, insalubridade e epidemias). Alojou-os em miseráveis enxovias. Agrilhoou-os. Marcou os seus corpos com ferro em brasa. Forçou-os a trabalhos insuportáveis. Submeteu-os a torturas e aos mais perversos abusos. Sujeitou-os a epidemias que na época eram letais (provocadas por doenças como a varíola). Converteu-os, à força do gládio, ao cristianismo. E «atirou-os ao lixo quando morriam, sem um pano a envolver o corpo».
Tudo isto está documentado em múltiplas fontes coevas, arqueológicas e escritas. Fontes escritas assinadas por aqueles que não discutiam estas práticas, mas também por alguns cronistas e escritores humanistas que — para recorrer a uma expressão de Ortega y Gasset — superaram as suas circunstâncias e as denunciaram.
Deve este pecado exigir remorso e redenção?
Sim!
Importa que Portugal reconheça o pecado cometido. Que historiadores continuem a investigar e a divulgar a História da escravatura, e que os jovens e menos jovens aprendam este assunto, de modo científico e não panfletário, nas escolas, nas suas casas, em livros, periódicos, exposições, documentários e museus. Que jovens e menos jovens conheçam uma História da Expansão Portuguesa mais objetiva e menos gloriosa da que foi ensinada e propagandeada durante os longos anos do Estado Novo.
Deve este pecado servir para estigmatizar perpetuamente Portugal, relegar para as trevas a «grandeza transformadora» que também significou a Expansão Portuguesa e exigir que o nosso país indemnize os países que colonizou?
Não!
A História é o que é: uma sucessão mais ou menos coerente de factos luminosos e tenebrosos, uma continuidade descontínua de acontecimentos, conjunturas e estruturas. O filósofo napolitano Giambattista Vico (1668-1774) defendeu que a História regista um «progresso em espiral», porque o seu processo civilizacional tem avanços e recuos, passando por pontos idênticos, mas estruturalmente diferentes. Talvez Vico tenha razão.
É um erro grosseiro, um anacronismo, pretender julgar o passado com os parâmetros mentais e morais do presente. Um erro que não conserta nem redime pecados antigos e serve apenas para alimentar discursos ideológicos que semeiam o ódio e criam ainda mais clivagens entre povos e nações.
Essa é a razão pela qual não me revejo nas ações políticas mais radicais ou «wokistas», que, aliás, creio também não serem subscritas por Lídia Jorge, apesar da consciência e sensibilidade social que esta autora sempre revelou por temas como a emancipação feminina, a memória histórica, o racismo ou a escravatura.
No seu discurso, Lídia Jorge incorporou evidências que hoje, mais do que nunca devem ser ditas muitas vezes, para que as pessoas não esqueçam.
Sim! Devem ser ditas muitas vezes, neste tempo insano, em que florescem de novo perigosas ideologias populistas autoritárias, soberanistas, «fascistas» (no sentido genérico e não histórico do conceito), que pretendem rever e mitificar a História, depreciar a Ciência, exaltar a guerra, glorificar nacionalismos, humilhar os fracos, diabolizar os emigrantes, suprimir as democracias, abolir os direitos humanos e o direito internacional.
Na verdade, importa, aqui e agora, enfatizar que «cada um de nós é uma soma. Tem sangue do nativo e do imigrante, do europeu e do africano, do branco e do negro e de todas as outras cores humanas».
Por exemplo, os portugueses descendem dos celtiberos, dos lusitanos, dos romanos, dos suevos, dos visigodos, dos árabes, dos borgonheses, dos judeus… «Descendem do escravo e do senhor que o escravizou». Descendem «do pirata e do que foi roubado». Descendem do verdugo e da sua vítima.
Para onde nos leva esta perpétua «aventura antropológica»?
Portugal aboliu a escravatura, nos seus territórios metropolitanos e coloniais, em 1869 (ao contrário de uma certa mitologia que se foi difundindo, não foi pioneiro nesta decisão). Ainda que se tenham mantido os escravos com alguma ligação aos «senhores» até 1878, porventura pela impossibilidade de se efetuar o pagamento das indemnizações previstas na lei, e que o trabalho forçado nas «Províncias Ultramarinas» portuguesas tenha permanecido pelo menos até 1962!
Foi, todavia, um dos países pioneiros a abolir a pena de morte para os crimes civis, em 1867.
No mesmo século XIX, progrediram as revoluções liberais, que confluíram nos regimes constitucionais, na divisão dos poderes políticos, na liberdade de expressão do pensamento, na tolerância religiosa, na soberania popular, na igualdade perante a lei, no sufrágio universal, no poder dos cidadãos, enfim, na democracia. Os movimentos socialistas, sufragistas e feministas complementaram estas revoluções, acrescentando condições laborais mais justas, o voto das mulheres e o combate pela igualdade de género.
Mas o mundo voltou a regredir, nas primeiras décadas do século XX: duas catastróficas guerras mundiais, a ascensão dos fascismos, do nazismo e do estalinismo, o holocausto, as bombas nucleares de Hiroxima e Nagasáqui.
Para progredir de novo, depois de 1945 (confirmando o «progresso em espiral» explicado por Vico): a Carta dos Direitos Humanos, o movimento da descolonização, o nascimento da União Europeia, o Estado Social, a multiplicação das democracias…
Hoje, ingressámos num novo ciclo de retrocesso civilizacional da História. O mundo digital ultraliberal conjugado com a «civilização do espetáculo» e a crise do hipercapitalismo estão a alienar as massas sociais e a delegar o poder em oligarcas tecnológicos e em líderes loucos, narcísicos, mitómanos, amorais e, em alguns casos, incultos; estão a converter cidadãos em súbditos (ou «seguidores») e a endeusar «chefes» predadores endrominados pelo «vil metal» e pelo lado cruel e maquiavélico do poder.
Nestes tempos difíceis e inquietantes, é legítimo que nos interpelemos sobre o destino de Portugal e, afinal, da humanidade.
Foi, sobretudo, essa inquietação que transpareceu no discurso de Lídia Jorge, apresentado no «Dia de Portugal, de Camões e da Comunidades Portuguesas».
Luís Filipe Torgal