00:37. — “Seca de jogo.”
00:38. — “Seca de tudo”, respondo.
00:41. — “Já vi mais anúncios neste jogo do que remates do Benfica”, insiste-se do lado de lá.
00:44. — “Uma competição que nem o meu pai nem os meus filhos conseguem ver não merece existir”, observo.
00:44. — “Bom critério.”
É isso amigo leitor, acertou em cheio. Esta transcrição é parte de uma troca de ideias mais vasta sobre essa coisa que nos foi acontecer e à qual há quem chame Campeonato do Mundo de Clubes. Imagine: por WhatsApp, sozinho no sofá, cheio de sono. Um torneio que se vê assim não vale o vidro da televisão onde é transmitido. Perdão, da aplicação, que para fazer o bingo da vulgaridade contemporânea tem de haver uma “app”. Mas o Mundial de Clubes já foi autopsiado por quem sabe. E chega.
Ora, se tudo quanto é detestável no futebol de hoje se encontra em exibição nos relvados norte-americanos, sobra-nos o que passou. E quem ama o futebol que já não existe, o futebol-impossível, melódico e ferido, ama o râguebi.
Sim, o râguebi. Esse futebol bastardo. Esse irmão enjeitado. É que há uma genealogia, e o râguebi é sangue do mesmo sangue: Football, Rugby Football.
Quando o futebol começou, não havia ainda partições. Era um jogo praticado por rapazes ingleses nos pântanos dos colégios. Um só jogo, imensos conjuntos de regras. Por vezes, podia usar-se as mãos. Por vezes, não. Às vezes, valia arrancar a camisola ao adversário, noutras punia-se o mais breve encosto. Só mais tarde, como acontece com quase tudo, foi preciso organizar as coisas. E aí, como sempre que se tenta colocar ordem no caos, veio o cisma: o rugby football foi para um lado, o association football (esse que hoje se chama simplesmente “futebol”) foi para outro.
Da gloriosa marcha fúnebre do futebol-futebol já nós sabemos. Mas da plácida sobrevivência do râguebi não se sabe tanto. Sobretudo, porque se manteve na penumbra do território singelo do amadorismo. Ora, onde o amadorismo medra, não há dinheiro. Mas há outras coisas. Daquelas que já ninguém se lembra muito bem para que servem. Coisas como lealdade, coragem, respeito, entre outros detalhes de um mundo que em tempos foi o nosso.
Reparem, quando falo de râguebi não me refiro às efemérides mediáticas que de 10 em 10 anos surgem no telejornal. Esqueçam o Mundial e a Nova Zelândia. Quando falo de râguebi é râguebi mesmo. CDUL contra o Técnico. Évora contra o Direito. Jogos que não dão em canal nenhum e cujos resultados aparecem lá nuns sítios da internet, os mesmos desde a Web 1.0, feitos por uns carolas empenhados na modalidade. Aquele que é jogado ao Sábado por tipos que têm de estar a trabalhar à Segunda. Com cheiro a Voltaren e a cerveja no fim do jogo. Com o Gonçalo Foro a levar um pontapé nos rins e a não pedir falta. Com miúdos de 18 anos a levarem pancada de tipos de 35 e a agradecerem. Com o Mike Tadjer de orelhas em brócolos e a espinha dorsal intacta.
O futebol é mais popular? Como não? É muito mais intuitivo. Qualquer um percebe à primeira. E joga-o em qualquer lado. Meia bola e força. Maravilhoso e trágico num gesto só. “Vai onde te leva o coração”, recordam-se? Sei de muito boa gente que foi e que ainda hoje não voltou. O futebol encarna esse culto da emoção, do imediatismo, da facilidade, do prazer como sentido último.
Num regime destes, râguebi é panque-roque. Um paradoxo vivo, como tudo o que interessa. Só se avança passando a bola para trás (pura contra-cultura). Juntos, em bloco, porque sozinhos estamos feitos (outra). E quem chega à linha sabe que só lá chegou porque alguém o empurrou. No râguebi não se confia no talento. Confia-se no outro (estão a ver?).
É contenção e confronto. Estrutura e disciplina. O oposto do Carnaval em que o futebol se tornou: vedetas adolescentes com cláusulas de rescisão maiores do que o PIB das Ilhas Fiji. É, numa palavra, a ideia de civilização em jogo.
Leitor, pense nisto com calma. Não lhe ocorre que o futebol, que vemos sem remédio como quem cumpre um dever cívico, poderia, quem sabe, aprender alguma coisa com o seu irmão bastardo? Pois. Também eu.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
‘Odeio Futebol Moderno’ é um espaço de opinião sobre atualidades futebolísticas da perspetiva de um romântico entalado num tempo em que não se reconhece.