Deixemo-nos de exagerados romantismos. É claro que contratar Vitinha, João Neves, Kvaratskhelia, Doué ou Barcola custa dinheiro. Custa muito dinheiro. Mas contratar Vitinha, João Neves, Kvaratskhelia, Doué ou Barcola não é o mesmo, no plano conceptual, que contratar Neymar, Mbappé ou Messi. Nos primeiros 10 anos de novo-riquismo catari, o PSG tentou comprar sucesso. Falhou onde mais lhe doeu, na Champions que sempre sorriu mais às equipas-legado do que a endinheirados arrivistas, como que resistindo na sua invisível força, mais apaixonada pela tradição de Madrid ou Munique do que pelo bling-bling pornográfico de Abu Dhabi ou de Doha.

A tempo, e tal como o seu vizinho emirati, o PSG percebeu que, depois de vender camisolas, precisava de construir uma ideia. E quando assim é até a Liga dos Campeões se verga numa imensa vénia. Se calhar, no futebol destes dias, feito de clubes-estado, fundos e private equitys, não há nada mais romântico do que uma ideia, venha ela de onde vier.

E por isso esta Liga dos Campeões é, paradoxalmente, a vitória dos milionários que intrinsecamente desprezamos, mas também um elogio ao futebol, um prémio merecido para um treinador injustiçado no seu próprio país - mas que lá deixou a semente -, que ousou dar uma identidade ao que antes era apenas um conjunto de jogadores, pouco comprometidos com um objetivo coletivo, olhando só para o umbigo da sua particular vitrine de prémios.

Há 10 anos, Luís Enrique festejou com a filha no relvado o último título europeu do Barcelona. Hoje, Xana, onde quer que esteja, estará orgulhosa do seu pai.

Alex Pantling - UEFA

O primeiro duelo oficial entre PSG e Inter tornou-se, 90 minutos depois, na final da Liga dos Campeões mais desequilibrada de sempre (5-0), com maior diferença de golos entre as duas equipas. Num jogo com duas propostas quase antagónicas, a felicidade pertenceu a quem não olhou para quem tinha à frente, mantendo-se fiel ao seu jogo de ataque posicional, dinâmico, alegre, jogado com alma por um conjunto de putos extraordinários, cerebrais como Vitinha, incansáveis como João Neves, renascidos como Dembelé ou decisivos esta noite como Doué, francês de 19 anos que é uma das caras desta mudança de paradigma.

Aos 20 minutos, já o PSG vencia confortavelmente por 2-0, enchendo o campo coletivamente. Hakimi marcou primeiro, surgido na área para fechar com um simples toque para a baliza uma jogada que começou com Fabian Ruiz a atrair três adversários, dando tempo e espaço a Vitinha para expandir o seu génio. O português rebentou com um passe apenas umas quantas linhas rivais para depois Doué, vagabundo agora na esquerda, a oferecer a assistência ao marroquino depois de uma deliciosa receção orientada.

DeFodi Images

Doué que faria o 2-0, agora no lado direito, golo construído por Dembelé, deambulando ora por um lado, ora por outro, mais adiantado ou a buscar jogo mais atrás, em mais uma exibição que tira o sorriso gozão de quem não o vê este talento que às tantas, em Barcelona, parecia irremediavelmente perdido, como o Bola de Ouro deste ano.

O Inter só foi vivo quando o PSG momentaneamente se desequilibrou, uma pequena fração de minutos depois da meia-hora, depois de 30 minutos em que nada foi permitido aos italianos. Nem uma ligação, nem um respirar fundo. As bolas paradas pareciam a única fonte de oxigénio para uma equipa que, na 2.ª parte, se viu obrigada a levar o jogo para uma dimensão mais física, quezilenta até, para não lhe chamar feia. Só que as bolas impreterivelmente colocadas em Dumfries, veloz ala pela direita, abriram espaços para Kvaratskhelia, que falhou um, dois golos, até que Doué, figura máxima desta final, meteu na cabeça que o jogo era para fechar.

Aos 64’, com o Inter desesperadamente procurando espremer algo de um jogo há muito tomado pelo adversário, Dembelé abriu, de calcanhar, uma avenida para Vitinha correr. O médio português temporizou de forma perfeita o passe, saído no milésimo certo para lançar Doué, que bisou. Pouco depois, Kvaratskhelia, após tanto falhar, fez o 4-0, isolado por Dembelé, sempre Dembelé.

Mike Egerton - PA Images

A partir daí, aqueles miúdos divertiram-se como talvez só na rua hoje o futebol permite a um miúdo se divertir, em festivais de dribles e combinações, exagerados, por vezes, nos pés traquinas de Barcola, ou absolutamente letais no 5-0, marcado por Mayulu, um golo paradigmático, feito por um rapaz de 19 anos formado nas escolas do Paris Saint-Germain.

Uma vitória por 5-0 é impossível de contestar. Numa final ainda menos. O PSG é a equipa mais bonita de se ver na Europa, mais viva, mais intensa. A ideia é forte. A ideia é tudo. E os jogadores abraçaram-na, da mesma forma como, de forma quase inocente e pura, abraçaram a taça dos campeões europeus quando por ela passaram. Luis Enrique cimentou a ideia em apenas dois anos, deu-lhe um propósito quando Mbappé deixou de querer fazer parte dela, porque hoje no Parque há Príncipes, no plural, nunca no singular. Hoje, por incrível que possa parecer, venceu o futebol romântico.