
Os motoristas de Uber são os oráculos da nossa era. Profetas discretos atrás do volante, com a sabedoria do mundo a ferver. Mas ninguém os ouve; é um sinal dos tempos. Porque, no tempo dos táxis, não havia outro remédio: falava-se. Agora não. No Uber reina o silêncio higiénico dos auscultadores nos ouvidos e a placidez da paisagem digital. Como se o passageiro, ao entrar, fosse para dentro de uma cápsula.
Mas eu falo. Quase sempre. Como nesse dia. O homem era moçambicano. Começou-se pelo tempo, depois as obras em Lisboa, até parar no futebol. Quando lhe disse que era do Benfica, sorriu e contou uma história.
Ia assim. Há quarenta anos, em trabalho, fez de carro a longa travessia até à Checoslováquia. Eram os tempos da Cortina de Ferro. Passavam-se as fronteiras como quem atravessa as Colunas de Hércules. Chegado à Alemanha Oriental, deparou-se com uma fila interminável. E, como bom português — perdão, como bom moçambicano — fez o que qualquer um de nós teria feito: viu uma faixa vazia ao lado e foi por ali fora, a ultrapassar dois, três, quarenta carros de uma assentada. Resultado: cerco policial. Fardas, vozes graves, mãos no volante, revista ao carro, documentos. Essas coisas que imaginamos desses tempos e lugares sombrios.
Mas ele atirou: “Sabe, eu sou do único país da Europa que tem uma estátua de um negro.” O guarda empalideceu. “Como assim?”. “Assim mesmo. Uma estátua. De um negro. Não sabe quem é?”. O alemão não sabia. Telefonou ao superior. “Superior, daqui subalterno. Está aqui um sujeito que afirma que há um país europeu com uma estátua de um negro.” Do outro lado a resposta firme, aberta, luminosa: “Claro! É o Eusébio!”
Contou-me isto como quem acabava de relatar um milagre. Como quem puxa aquela velha alavanca que, a nós benfiquistas, nos serve de consolo nas piores horas. A alavanca da grandeza do Benfica. Uma espécie de Portugal que se cumpriu. Como o Brasil ou a rede Multibanco.
Ora, essa é uma grandeza que nem Rui Costa, no esplendor da sua incapacidade, consegue apequenar. Porque, no final desta temporada (parabéns, Sporting), o ex-jogador que quis ser presidente decidiu oferecer-nos uma pálida imitação de Pinto da Costa — que viverá sempre em todos os dirigentes que debitem frases feitas com voz trémula. “Lage começa a próxima época.” Assim mesmo. O treinador é incapaz, mas continua. Porque agora é assim: contra tudo, contra todos, contra a realidade.
Está provado que Rui Costa não sabe gerir. Não sabe estruturar a área do futebol. Não sabe definir uma linha estratégica vencedora. Investe e investe para resultados nulos. São quatro anos de nevoeiro. De indecisão. De um clube que não se encontra. Que se habituou a ser só uma coisa mais ou menos.
O treinador, com um lote de jogadores que parece o melhor plantel da Liga, nunca se afirmou como uma equipa sólida. Um banco invejável — mas mal gerido. Bruno Lage não sabia fazer substituições. Sentava-se quem devia resolver. Di María? Fez dez jogos a mais. Bruma? Dez jogos a menos. Eu aqui, cheio de vontade de escrever um texto sobre ele — e nada.
No alto do seu castelo, Macbeth está isolado. Desculpem, enganei-me — queria dizer que Rui Costa está isolado. Cercado por sócios cada vez mais impacientes, por um clube dividido, por jogadores perdidos, por uma ideia de autoridade esgotada. Continua a falar como se mandasse em tudo. Mas está a reagir, não está a liderar. Em vez de reconhecer as evidências, prefere mais um gesto de afirmação de uma autoridade pálida, abatida, vazia. E, por orgulho, nega que a floresta de Birnam se move. Desculpem, enganei-me outra vez. Queria dizer que por orgulho começou a tomar decisões erradas. A insistir no treinador errado. A recusar mudar. A fechar os olhos à própria sombra.
E as eleições? Em Outubro? Com o campeonato a correr, com a Europa em andamento? Como pode um novo presidente, que não sendo o actual, preparar e planear uma nova época com a casa a arder? Terá de aceitar os alicerces montados por uma direcção em fim de linha? Terá de aceitar um treinador que não escolheu? Jogadores que não pediu? E compromissos que não subscreveu? Que espécie de renovação seria essa, se começasse a meio da peça, com os cenários montados e os actores já em palco?
Rui Costa deve demonstrar que é benfiquista. Benfiquista a valer. E apresentar, já na próxima Segunda-feira, a sua demissão. Com isso, permitiria antecipar eleições para Julho, dando tempo a qualquer candidato para apresentar um projecto e aplicá-lo na totalidade. Um novo presidente, eleito com legitimidade e margem, poderia definir treinador, plantel e filosofia. Desde o início. Desde a raiz. Com tempo. Com critério. Com mão.
Só falta uma substituição: a dele. E já vem tarde.
Porque a Escócia já não é trono. Já não é glória. Já não é casa. E Macbeth, coitado, já não é guerreiro. Já não é rei. Já não é homem. Perdão, enganei-me outra vez. Mas vocês perceberam o ponto.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
‘Odeio Futebol Moderno’ é um espaço de opinião sobre atualidades futebolísticas da perspetiva de um romântico entalado num tempo em que não se reconhece.