Há noites que resistem ao tempo. Noites em que o futebol se transforma num espelho de vontades, de escolhas, de acasos e de génio. A Allianz Arena, em Munique, acolheu uma dessas noites, e Portugal saiu dela com a alma em brasa e o peito cheio: venceu a Espanha na final da Liga das Nações, no desempate por grandes penalidades, depois de um empate a duas bolas nos 120 minutos de jogo. Foi a segunda conquista portuguesa nesta competição, cinco anos depois da primeira, no Porto. E fê-lo com sofrimento, com coragem e, acima de tudo, com uma fé cega nos seus jogadores — e num selecionador que, apesar das dúvidas, resistiu à corrente até ao fim.

Roberto Martínez, um homem tantas vezes escrutinado, tantas vezes colocado na fronteira da desconfiança, entrou na final fiel à sua ideia: manter o plano, preparar o jogo como se fosse uma equação racional, mas deixar espaço à magia individual. Apostou em João Neves e Francisco Conceição no onze inicial, mantendo Cristiano Ronaldo na frente como referência. Atrás, a solidez habitual: Diogo Costa na baliza, Rúben Dias a comandar a linha, e Nuno Mendes — o homem da noite — à esquerda. A Espanha, por sua vez, surgia com o habitual virtuosismo do meio-campo para a frente, e com Lamine Yamal e Nico Williams prontos para fustigar os flancos com velocidade e arrojo.

Quando o árbitro apitou para o início da final, a Allianz Arena pulsava com uma energia que transcendia o habitual fervor de uma decisão internacional. Os portugueses, em número e em alma, faziam-se ouvir entre os germânicos que, por despeito recente da eliminação às mãos da Espanha, assobiavam ruidosamente cada toque de Cucurella na bola — uma espécie de catarse que viria, curiosamente, a enredar-se na narrativa emocional do jogo. Portugal sentia-se em casa. E começou como tal.

Os primeiros minutos foram quase poéticos na sua simplicidade: uma bola parada bem ensaiada, João Neves a surgir ao segundo poste e a rematar enrolado para fora, aos 5 minutos. Um aviso, ainda tímido, de que Portugal vinha com ideias. Mas não bastam boas intenções contra uma equipa como esta Espanha, que trazia consigo a coreografia suave e letal de um futebol que parece escrito a preceito por mãos de relojoeiro. O jogo começava a escorregar dos pés portugueses.

A partir dos 10 minutos, a “Roja” pegou na bola com a naturalidade de quem se sente dono do tempo. Movimentava-se em posse como quem recita um poema conhecido: Pedri e Fabián Ruíz construíam com serenidade, chamando os centrais adversários à frente, libertando espaço nas costas para os sprints perigosos dos extremos. Era uma dança cínica e eficaz.

Aos 15 minutos, numa jogada em tudo semelhante à que destroçou a França, Pedri combinou com Nico Williams pela esquerda, e o médio espanhol apareceu a finalizar com perigo. Dois minutos depois, foi o próprio Nico, em slalom, a ganhar o duelo a João Neves e a rematar em arco por cima da trave, num lance que gelou as gargantas lusas.

Portugal começava a perder o norte. A equipa recuava demasiado, cortava mal e reagia pior. As linhas estavam demasiado afastadas, Vitinha não tinha bola e Cristiano, lá à frente, era uma ilha sem pontes. Quando Zubimendi fez o 1-0, aos 21 minutos, foi quase uma consequência lógica. Oyarzabal, de costas para a baliza, puxou os centrais, Lamine Yamal aproveitou o espaço para cruzar de forma venenosa, e entre um calcanhar improvisado de Rúben Dias e um corte incompleto de João Neves, surgiu Zubimendi, sozinho, letal, a empurrar para o fundo da baliza.

O golo foi um murro no estômago, mas não um nocaute. E talvez tenha sido nesse momento que algo mudou. Portugal, até aí algo desorganizado e vulnerável, encontrou na desvantagem a coragem para ser equipa. Começou a circular a bola com mais critério, mais paciência. E num lance de pura inteligência coletiva, Ronaldo desmarcou-se entre linhas, combinou com Pedro Neto e abriu espaço para a subida de Nuno Mendes. O lateral arrancou, recebeu orientado e rematou cruzado, com frieza, para o 1-1. Aos 26 minutos, Portugal igualava. Era o primeiro golo de Nuno Mendes pela Seleção — e logo na final.

O golo não mudou o rumo do jogo, mas mudou o espírito português. A ansiedade diluiu-se. Ainda houve um lance confuso na área com Nico Williams a desviar de Diogo Costa sem perigo, mas o ritmo abrandou. A Espanha tentava digerir o empate, perceber onde falhara. Portugal, mais pragmático, soube segurar e respirar. Até que, já perto do intervalo, a “Roja” voltou a ferir.

Bernardo Silva caiu numa disputa com Le Normand. Muitos protestaram. Nada foi assinalado. Pedri recolheu a bola e conduziu com frieza. Oyarzabal fez a diagonal nas costas dos centrais lusos e rematou cruzado para o 2-1. Era o minuto 45+1’. Portugal regressava ao balneário em desvantagem, e não havia protesto que revertesse o resultado.

Roberto Martínez, fiel ao seu pragmatismo camaleónico, não cedeu à tentação da revolução emocional no balneário. Preferiu adaptar-se, redesenhar o xadrez com inteligência. Tirou João Neves e Francisco Conceição, lançando Rúben Neves para dar corpo ao meio-campo, recuou Bernardo para falso ala e entregou a direita defensiva a Nélson Semedo. Portugal entrou mais estável, mais ponderado. E com essa serenidade voltou a ameaçar.

Logo aos 48 minutos, Bruno Fernandes marcou num lance invalidado por fora de jogo de Bernardo Silva no início da jogada. Um golo que ficou nos livros apenas como hipótese. A Espanha acusava alguma quebra física, e Portugal tomava o pulso ao jogo, mais maduro, mais seguro. Fabián Ruíz ainda testou Diogo Costa de longe, aos 55 minutos, mas o guardião respondeu com firmeza. Era Portugal quem queria agora controlar, quem respirava com bola. Faltava o último toque.

E foi Nuno Mendes, outra vez ele, quem rompeu. Aos 61 minutos, numa arrancada fulgurante, aproveitou o espaço criado por Pedro Neto, ganhou a linha e cruzou com precisão para Ronaldo, que apareceu nas costas de Cucurella a empurrar com categoria. Era o 2-2. Era também o último fôlego de Cristiano. O capitão, exausto, já com limitações físicas, aguentava até onde podia.

Seguiram-se mexidas. Martínez tirou Gonçalo Inácio e lançou Renato Veiga, procurando pernas novas para segurar o meio. Rafael Leão entrou, Pedro Neto trocou de flanco. Do lado espanhol, De la Fuente respondeu com Mikel Merino e Isco, que quase marcou aos 83 minutos num remate forte travado por Diogo Costa com uma defesa monumental. Depois, Ronaldo caiu. Literalmente. Ficou no chão, exaurido, até sair para dar lugar a Gonçalo Ramos. A partir daí, o jogo caminhou para o prolongamento.

Com o empate, o jogo entrou numa fase mais tática. Os minutos finais do tempo regulamentar foram de contenção mútua. Cada erro podia ser fatal.

Esse tal empate era justo. A entrega, a coragem, o talento — tudo estava repartido em campo. Mas Portugal parecia ter recuperado algo mais: a crença. E levava-a consigo para os 30 minutos finais.

Os 30 minutos extra foram marcados pelo cansaço e pela gestão do risco. As equipas trocavam peças, mas as ideias pareciam esgotadas. Cucurella ainda tentou a sorte, Nuno Mendes voltou a acelerar pelo corredor e Rafael Leão ameaçou com um par de arrancadas, mas o golo não surgiu. Já nos descontos, Diogo Jota teve a melhor ocasião de cabeça, mas a bola saiu por cima. Era inevitável: tudo se decidiria nos penáltis.

E aí, voltou a aparecer a muralha. Diogo Costa, herói da primeira parte frente à Alemanha, defendeu a grande penalidade de Álvaro Morata, depois de Gonçalo Ramos, Bruno Fernandes, Vitinha e Nuno Mendes terem convertido com classe. Coube a Rúben Neves o remate decisivo. Bola para um lado, guarda-redes para o outro. 5-3. Portugal campeão. De novo.

A imagem final é a de um grupo unido, exausto, mas orgulhoso. Cristiano Ronaldo, tocado, foi o primeiro a levantar-se do banco e a correr para os colegas. Nuno Mendes, eleito o melhor jogador da final e, provavelmente, da competição, fez uma exibição irrepreensível: anulou Lamine Yamal, marcou um golo e fez uma assistência. Rúben Dias foi o pilar defensivo, Bruno Fernandes o motor do meio-campo, e Diogo Costa, simplesmente decisivo.

Portugal é, de novo, campeão da Liga das Nações. E fá-lo à sua maneira: com drama, com suor, com lágrimas. Mas com um talento que já ninguém pode negar.