
A história da refundação do Belenenses, que preferiu começar de baixo para não perder os seus maiores ativos, uma história centenária e uma identidade forjada através do esforço e dedicação de inúmeras gerações, repete-se, sem ser exatamente igual, com o Boavista, que disputará, na época de 2025/26 o escalão mais baixo dos campeonatos da Associação de Futebol do Porto. Enquanto o Belenenses o fez por opção, para se afastar de uma SAD em que não se revia, o Boavista viu-se na presente situação por incapacidade absoluta da SAD de garantir os mínimos para a manutenção da equipa principal nas competições da Liga ou da Federação. No fim do dia, aos axadrezados será pedido um esforço e uma demonstração de resiliência semelhante à que se tem visto no Restelo. Determinação não falta no Bessa, como pode ser visto nas páginas seguintes pela voz do presidente Garrido Pereira, complementadas pela experiência de percorrer ‘o caminho das pedras’ de que Patrick Morais de Carvalho, presidente do Belenenses, dá testemunho.
Mas foquemo-nos no Boavista, sexto clube português com mais presenças europeias, um dos cinco a disputar a Liga dos Campeões, que tem no currículo uma centena de jogos da UEFA, com 38 vitórias, outras tantas derrotas e vinte e quatro empates.
Aliás, quis o destino que o Boavista, então campeão nacional em título, jogasse em Anfield, contra o Liverpool, a 11 de setembro de 2001, dia em que foram derrubadas as Torres Gémeas em Nova Iorque, numa jornada europeia que teve quase todos os jogos adiados pela UEFA. E para que se tenha noção da valia futebolística, no contexto internacional, dos axadrezados, valerá a pena referir que esse jogo contra os ‘reds’, onde pontificavam Steven Gerrard e Michael Owen, terminou empatado a uma bola, e nas contas finais do grupo, a turma orientada por Jaime Pacheco, foi apurada em segundo lugar, à frente de Borussia Dortmund e Dínamo de Kiev. A queda nas profundezas do Boavista, a que se está a assistir, é a queda de um gigante, com uma massa adepta que tornou o Bessa no sexto anfiteatro mais visitado na edição 2024/25 da I Liga, que é garante de um regresso rápido a outros níveis competitivos.
GERARD LÓPEZ
O Boavista, que nunca recuperou a saúde financeira desde que andou pelos escalões secundários na sequência do Apito Dourado – e nem mesmo a reintegração administrativa na I Liga ajudou ao equilíbrio do clube do Bessa – acabou por, em estado de necessidade, aprovar, em outubro de 2020, a entrada como acionista maioritário o grupo Mangrove Capital Partners, propriedade de Gerard López, nascido no Luxemburgo e filho de emigrantes galegos. López sempre foi prolífero em investimentos, aderindo ao mundo digital e projetando-se para várias atividades, entre as quais o desporto, a sua paixão. Mas uma coisa é o que se quer e deseja, outra o que se consegue. E não é possível dizer que o percurso de Gerard López nesta área de negócio, tenha sido positiva. Teve o controlo da equipa de Fórmula 1 da Lotus, que depois de pagamentos falhados ao fisco inglês teve de ‘devolver’ à Renault, que acabaria com a ‘scuderia’. No futebol, Gerard López envolveu-se com o clube belga Mouscron, que comprou, e acabou por ’ajudar’ à falência. López, que entretanto adquirira o Lille, tornou o Mouscron em filial, criando uma dependência que não resistiu à chegada de novos investidores ao clube do norte de França, do qual acabou por ter uma saída forçada. Melhor sorte não teve o histórico Bordéus, que López colocou no ‘portfolio’, que foi relegado à quarta divisão gaulesa na sequência de incumprimentos financeiros. O Boavista, que estava em estado de necessidade, acedeu a que, em outubro de 2020, a Mangrove Capital Partners, propriedade de Gerard López, entrasse como acionista maioritário da SAD axadrezada. Seguiram-se anos de luta, enfrentando inúmeras sanções da UEFA, inibidoras da contratação de novos jogadores, até ao desenlace final: em 2024/25 o Boavista desceu de divisão e não teve capacidade de se inscrever nas competições da Liga ou da Federação, sendo relegado aos distritais. Uma espécie de ‘déjà vu’ relativamente à Lotus, ao Mouscron ou ao Bordéus. Rezam as crónicas que Gerard Lopéz, que com uma bolsa como basquetebolista estudou gestão e tecnologia, além de arte asiática, na Universidade de Miami, constituiu em 2022 o Lydian Group, uma empresa tecnológica com sede em Londres.
O FUTURO
A grande questão, ao dia de hoje, é saber o que fará a SAD do Boavista, se fechará portas, se tentará a sua sorte no primeiro escalão distrital da AF Porto, que ainda não pode garantias aos clubes para participarem nas suas competições. Se tal suceder, e uma vez que o Boavista-clube já manifestou intenção de iniciar o seu percurso no quarto escalão da AF Porto, poderemos estar em presença de dois ‘Boavistas’, nas competições distritais, em divisões diferentes, o que remete imediatamente para o Belenenses e a B-SAD, um processo que deixou marcas no futebol nacional e que terminou com a sobrevivência do clube e a extinção da ficção que era o B-SAD. Em Belém, a questão foi resolvida pelos adeptos, que aderiram ao clube de forma maioritária e desligaram-se da SAD, mostrando a natureza do associativismo no tecido desportivo português. É esse o convencimento de Garrido Pereira, presidente do Boavista, quanto ao comportamento do povo boavisteiro, quando (e se) for chamado a escolher entre uma história que começou em 1903, e uma aventura iniciada em 2020.
OS EUROPEUS
Até hoje, 24 clubes representaram Portugal nas competições da UEFA (sendo que outros três andaram apenas pelos playoffs, Arouca, Santa Clara e Gil Vicente). Desses 24, nove disputam a I Divisão: Benfica, Sporting, FC Porto, SC Braga, V. Guimarães, Estoril, Rio Ave, Estrela da Amadora e Nacional; outros sete estão no II escalão: Marítimo, Paços de Ferreira, U. Leiria, Leixões, Portimonense, Chaves e Farense; dois estão na Liga 3, Belenenses e Académica; quatro militam no Campeonato de Portugal – Barreirense, Fabril (ex-CUF), Beira-Mar e Salgueiros; e dois caíram nos Distritais, curiosamente emblemas prestigiados, cuja história está indelevelmente ligada a José Maria Pedroto: V. Setúbal e Boavista.