Nuno Mendes terá um carinho especial pelos ares de Munique.

Quando veraneante, a cidade fica um mimo com os seus pulmões verdes em cada rua, pessoas a conviverem nas beiças do rio e afluentes, muitas a mergulharem, cerveja à pressão a aguardá-los na tradição bávara de refrescar assim as gargantas. Não será, contudo, por aí que se explica o gosto do lateral esquerdo pelo lugar que nem duas semanas demorou a remover as espinhas à dúvida de o podermos apresentar como o melhor lateral esquerdo do mundo. O chamariz para Nuno Mendes, em concreto, será a relva do Allianz Arena e os místicos poderes que emanará.

Estava Portugal sôfrego, desnorteado na perseguição de sombras dos corpos espanhóis, sem tatear exatamente como poderia emendar várias confusões no seu jogo, quando o canhoto quis demonstrar a sua afinidade pelo sítio. Foi a seleção ao ataque, por raridade chegou à frente, por um fio de cabelo Ronaldo recolheu um passe em jogo. E por fim a bola acabou em Nuno Mendes, o tipo que domou a final da Liga dos Campeões à sua vontade e também esquartejou por entre alemães, dias antes, para no mesmo estádio decidir a jogada que fez a seleção ganhar. Desta vez seria início e fim, faria a jogada e o golo, sem contemplações a espingardar um remate na esquerda da área.

Havia 26 minutos no relógio e da seleção, até ao golo, uma pífia amostra. Repetiu Roberto Martínez o plano de encostar João Neves à lateral direita, querendo as benfeitorias desse risco e levando só com os males. Improvisado a defesa, o intuito era não o ser, na prática, se confirmada a esperança de Portugal em impor-se, com a bola, no meio-campo espanhol. Isso foi uma miragem. O pequeno médio teve uma primeira parte a ser lateral e a penar, os jogadores espanhóis podiam ter estado vidrados nos telemóveis a assistir à final de Roland-Garros, torcendo por Alcaraz, mas tinham a lição estudada.

Mandando a La Roja no miolo, usurpando a bola logo na origem por ter em Hjusen, lá atrás, um central que aspira a Beckenbauer na forma limpa como sai a jogar, não davam a Portugal o que necessitava para o deslocamento de Neves funcionar. Nunca ele serviu como mais um médio, sempre concentrou nele a referência para os espanhóis saírem rápido para o ataque, lançando Nico Williams nas suas costas. Ameaçaram por aí, uma, duas e três vezes. O golo já o tinham vindo da lâmina para gretar a seleção nacional, representada por Mikel Ozarzabal.

A esperteza do avançado a afastar-se de Rúben Dias e Gonçalo Inácio, fugir dos centrais e fomentar-lhes a dúvida criou momentos de aflição. Se iam atrás, era fatal para Fabián Ruiz furar nesse espaço. Se não o perseguiam, criava a superioridade no pulmão do campo onde Bernardo, Bruno e Vitinha eram iludidos pelos movimentos dos médios contrários. Nem uma coisa, nem outra quando o basco fez de parede a um passe de Zubimendi, o conterrâneo de região pôde correr com a bola, libertar Lamine Yamal, ele cruzar e nem o corte de Dias ou de Neves afastar a confusão. Seria o mesmo Zubimendi a marcar.

E se Yamal serviu quase como singela nota de rodapé da primeira parte, um figurante da final, constatá-lo não é afronta por culpa de Nuno Mendes e da bocarra do seu nível atual, responsável por encurralar o majestoso talento agitador do adolescente a quase nada. Nem no segundo golo dos espanhóis ele se viu, na verdade, dele não necessitaram: Portugal saiu a jogar sem grande pressão, um passe foi a Ronaldo, a bola perdeu-se, Pedri ficou com demasiado campo para correr até lançar Oyarzabal na passiva vigilância de Inácio.

Era a Espanha que jogava, ora devagar para cortejar a pressão, ora muito acelerada, apressada até, na fome que lhe deu o último Campeonato da Europa. A seleção nacional limitava-se a sofrer.

Maja Hitij - UEFA

Dada a segunda lição a Roberto Martínez, quis o selecionador como dias antes, frente à Alemanha, emendar a mão. Nélson Semedo entrou para a equipa ficar com um lateral direito, acompanhou-o Rúben Neves para tirar Bernardo do meio-campo e Francisco Conceição do jogo. Com demora a seleção estabilizou, a melhoria foi essa, a de estancar um pouco o jorrar ofensivo com que o adversário inundava a metade portuguesa em qualquer posse de bola. Redistribuídas as peças, o jogo equilibrou, podendo sair da maior igualdade de operações uma divergência.

Que é como quem diz um rasgo, um feixe de luz que ilumine os restantes. E quem haveria de o dizer se não Nuno Mendes, fonte maior de bemdicência de que Portugal dispõe se tal palavra estivesse no dicionário. Tão-pouco o nível exibido pelo lateral existia, nestes píncaros, até Munique: num raro ataque estendido na metade espanhola, o canhoto adiantou a bola com o pé direito no mesmo gesto em que arrancou em corrida, fez-se trovão, Mingueza nem o viu a ultrapassá-lo, depois cruzou e a bola desviada acabou no pé de Cristiano.

Quarentão e com a idade a notar-se na sua influência no jogo, mas ainda decisivo nos golos, nos 138 que já leva, sintomas de estar lá quando importa, era segunda vez seguida que o capitão lhe devia um agradecimento sentido na Alemanha.

A pegada Mendes, não de Cristiano, seguiria na rota do progresso. Feito o empate, o lateral evitaria o refundar de uma preocupação quando só ele barrou Pedri, na área, no preciso momento em que o condutor da orquestra espanhola rematou após deslizar os seus truques de deceção no relvado. Nenhum português se aproximava dos seus acordes, nem a melhorada música de Vitinha, libertado na segunda parte por Rúben Neves montar a saída a três com os centrais e os laterais abrirem (alargando o espaço). Mais tarde, Diogo Costa deu uma palmada no remate de Isco, outro artista que substituiu Pedri.

A final teve que se prolongar face à sucessão de ameaças infrutíferas, também as de Portugal, num remate de Bruno Fernandes e um ou outro ziguezague isolado de Rafael Leão. Parecia estar neles a fonte de inspiração para mais meia hora de futebol, tempo demasiado para Ronaldo - antes dos 90’ abandonou a ação agarrado à virilha, lesionado, o corpo a dar de si.

Engordou a partida, cresceu a barriga da seleção nacional, pela primeira vez com corpo de sobra para pegar no jogo, finalmente mandar nas operações, fazer das suas as intenções a ditarem o rumo da bola. Vitinha assumiu o comando numa área, perto dos centrais para atrair os espanhóis, abanar-lhes calmamente com o engodo. Era o truque de Portugal. Queria forçar os espaços para acionar as suas gazelas de corrida, confiar no cansaço geral, crer que pela esquerda encontraria alegrias. Era uma esperança bastante mais realista.

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Pelo lado do prodigioso Yamal, pouco dado a correr atrás, Portugal lançou-se sem dó e virou a agulha, fez a Espanha sofrer durante 15 minutos de insistência na fisga para lançar Nuno Mendes e Rafael Leão. O incansável lateral rasgou toda uma equipa para cair na área. O extremo ganhou por duas vezes a frente ao adversário direito e cruzou bolas perigosas. A seleção já mordia, tinha a ameaça, faltava-lhe o golpe fatal, o último gesto para adormecer um adversário ao qual custava puxar para jogo Álex Baena e Isco, os dois amigos da bola lançados para a meia hora final.

Os vizinhos ibéricos colocariam uma rolha nesse plano, foram Pedro Porro e Yeremi Pino a direita que era a esquerda portuguesa e o centro desta questão foi que a seleção, sem a única escapatória idealizada por Martínez, preencheu os 15 minutos restantes quase sem atacar. Teve então que aguentar, sofrer mais uma vez, absorver a investida espanhola juntando corpos perto da área. Também a partida acusava o esforço de os jogadores serem submetidos a mais futebol em junho, no que seria o puxar do estore para baixo da época e agora virou um interlúdio para o Mundial de Clubes. O ritmo pachorrento culminou nos penáltis.

Sem esmifrar corpos com mais cansaço, mas sendo um salsifré de bichos, tormentas e quezílias mentais para quem vai rematar, a sina a 11 metros da baliza podia acrescentar à arrelia o fantasma de 2012, quando Portugal perdeu, nessa distância, com Espanha nas meias-finais do Europeu. Nada quiseram com isso Gonçalo Ramos, Vitinha, Bruno, nem Nuno Mendes, o que seria ser o homem do jogo, o homem desta Liga das Nações, hoje seguramente o jogador mais decisivo da seleção, a privar Portugal do que desencadeou o único pontapé falhado. Diogo Costa negou Álvaro Morata, pondo na bota de Rúben Neves a explosão de alegria e Ronaldo, poço de nervos, escondido nas costas de Dalot, sem querer ver o desenlace.

A seleção terá sempre Paris, daqui em diante também Munique, duas cidades lá fora a que se junta o Porto para um triângulo de conquistas sublimes para o futebol português. Ao Europeu acrescentou-se esta Liga das Nações, mais uma, é o primeiro país a colecionar a segunda e algo a roçar o umbilical Portugal nutrirá com prolongamentos. Este imitou o de há nove anos. Igualmente o físico de Cristiano, encharcado em lágrimas, um pranto em pessoa, carece de uma ida à bruxa em finais. Secou-as rápido no calor da festa, bem no centro da farra dos jogadores no relvado, envolvendo o capitão e também Roberto Martínez, o selecionador de quem, de repente, já ninguém falava. A bola quando entra faz magia.

Portugal é campeão, volta a sentir as curvas à Liga das Nações, vamos em meia dúzia de anos a conviver com a prova e ainda está por aferir, ao certo, a estima que temos à competição na escala da importância. Seja qual for, a seleção bateu Alemanha, a anfitriã, depois a Espanha, campeã europeia há um ano, na fase final. Bastante relevância terá. Como devia ter os portugueses jogarem com o talento que têm, da melhor forma que os deixar a jeito de o exibirem, sem invenções nem receios, montados para ferir mais do que moldados numa estratégia que lhes limita a explosão do talento no campo.

Mas isso são quinhentos para depois. Ganhou a seleção que por estes dias joga o que Mendes quiser.