
Um professor que está a classificar as provas de aferição do 6.º ano confidenciou-me a sua preocupação com algumas respostas que está a encontrar nos textos de alguns alunos. Corrigidos os erros ortográficos e pontuação, eis dois exemplos de excertos de resposta a um item que convidava as crianças a fazerem um texto em que relatassem o que fariam se encontrassem uma cria de um animal. Um apelo à elaboração de um texto narrativo e à criatividade dos alunos.
Primeiro exemplo:
“Encontrei um gato preto, nojento. Peguei nele e atirei-o para o rio.
A seguir, apareceu o André Ventura e disse-me:
- És o homem com mais espírito do chega que eu já vi!
Eu fiquei logo todo contente.”
Segundo exemplo:
“Em um mundo em que todos têm afinidade com os animais, quem não tem afinidade é tratado igual a lixo. Mas não me importo. Os animais são coisas que nos fazem ganhar dinheiro no circo e nas touradas. Querem acabar com isto. Mas vamos limpar Portugal. Viva o André Ventura.”
Quem escreve isto são crianças de 11 anos, que encontram esta insensibilidade e violência legitimada pelo discurso de André Ventura e do seu partido. Parece mentira, mas não é. O mesmo professor relata-me que estes são apenas dois exemplos, que ilustram também o que tem sido o seu trabalho, em sala de aula, a desmontar as mentiras e ódio com que estas crianças têm sido bombardeadas nos últimos tempos.
Dá-se a coincidência de este relato me ter chegado no mesmo dia em que, nas redes sociais, que são o principal combustível destes processos de radicalização promovidos pela extrema-direita, André Ventura e os seus habituais mimetizadores (Rita Matias e afins) terem publicado o seu desagrado face às marchas do pride, por ocasião das celebrações dos direitos da comunidade LGBT e do mês em que se apela ao direito a viver sem discriminação e ódio. Diz André Ventura que estas marchas e estes movimentos “querem impor, sobretudo às crianças e aos jovens, modelos e ideias que não representam a sociedade portuguesa”. A inefável Rita Matias, campeã da desinformação, escreve que “As crianças não podem participar em paradas LGBT. Isso não é ensino para a tolerância é interferência no seu desenvolvimento saudável.” (assim, sem pontuação).
Temos, portanto, um partido que, na sua presidência e na liderança da sua juventude, se indigna com os que celebram direitos humanos, ao mesmo tempo que semeia o ódio e a desumanização em crianças de 10 e 11 anos.
Têm imenso orgulho (em inglês “pride”) no que designam de valores, vociferam há anos contra o fomento da cidadania nas escolas, foram os primeiros a defender que o guia “Direito a ser”, que servia de instrumento para os profissionais de educação para o combate ao bullying e à violência, fosse retirado de circulação (com a vergonhosa anuência do Governo, que ainda está a tempo de reverter esse disparate), espalharam mentiras num fanatismo escatológico sobre casas de banho, usam as redes sociais de forma eficientíssima para alarmar, dividir e odiar. São os promotores de retrocessos em valores fundamentais. Preocupam-se mais em saber quem dorme com quem do que em deixar a população dormir sossegada, sem medo da nova vaga de ódio que vão fomentar.
Muito se tem discutido sobre o perfil do eleitorado do Chega. Custa-me aceitar que eleitores adultos, esclarecidos, não saibam no que estão a votar. Mas percebo a vulnerabilidade da opinião de quem todos os dias é bombardeado com vídeos alarmistas e com informações desmentidas diariamente nos vários fact checks. Imperará um inexplicável benefício da dúvida e a velha máxima da intriga desconfiada de que “não há fumo sem fogo.”
E dizem que fazem isto tudo em nome das gerações futuras e da defesa das crianças. Pois, está aqui exposta a sua verdadeira intenção. Não querem cidadania nas escolas, porque temem que se discutam direitos humanos, assusta-os a ciência e a literacia dos media, que dará aos mais jovens a capacidade de avaliar criticamente os chorrilhos de mentiras e ódio que cultivam, amedronta-os o confronto da rapidez dos seus tweets de poucos caracteres e dos seus tik-toks de 20 segundos com a complexidade do conhecimento debatido e refletido.
Querem formatar a cabeça dos mais novos com a simplicidade, para que o divisionismo que mata as comunidades impere. É isto que querem da escola, é isto que querem para a educação. Alienar para odiar.
Os dirigentes do Chega estarão a viver neste momento um conflito afetivo-cognitivo delicado. O seu Musk, que financia as redes sociais onde a extrema-direita domina, reina e influencia, zangou-se com o seu Trump, que promove, em políticas públicas, o combate à diversidade e o ataque aos direitos de todos. Defenderão o líder da desinformação ou o que, com eles, teme que as escolas e as universidades sejam focos de conhecimento e liberdade? Estarão os líderes do Chega do lado do financiador ou do executor? Esperamos para ver.
Volto às provas MoDA e aos exemplos de respostas dos alunos. Recordo que o que se lhes pede é um texto sobre o que fariam se encontrassem uma cria de um animal. Uma cria é o animal mais pequeno e vulnerável, nem de um ser humano se trata. O modelo Ventura/Chega é mesmo sobre isso no que concerne aos seres humanos: como desprezar os mais vulneráveis da sociedade, tornando-os o inimigo a descartar e a abater.
Estas são as amarras ideológicas a que querem submeter as crianças. A presença de líderes e apoiantes do Chega em movimentos contra a cidadania nas escolas é muito expressiva. Um dos movimentos mais vocais chama-se “Deixem as Crianças em Paz.” É mesmo isso que pedimos ao Chega. Deixem as crianças em paz, não lhes encham a cabeça com ódio, não fomentem o bullying e a violência, não lhes mintam, não as enganem. Deixem as crianças em paz para viverem com ciência e sem fanatismo, com liberdade e sem medo, com espírito crítico e sem repentismos bacocos.
Este é o “pride” de André Ventura. O orgulho em manipular e odiar. O orgulho em combater a diversidade e a equidade.
É o Diretor Nacional da Polícia Judiciária quem afirma que os meios digitais estão a ser instrumento para o radicalismo e para a promoção da violência dos rapazes sobre as mulheres. Não se trata de uma brincadeira. Estes incels, que crescem todos os dias, têm patronos políticos.
Acredito e sei que são muitos, a quase totalidade, os professores como este que partilhou esta informação comigo. Que não se demitem da sua função de educadores e que sabem que um debate sério e aprofundado sobre a mentira e o preconceito é a aula mais importante de cada dia.
Este caso é um alerta para os restantes partidos, sobretudo para o PSD e o PS, que, pela sua expressão maior, devem preservar-se como guardiões da democracia. Que não caiam na tentação de, para ir buscar eleitorado perdido, trocarem valores por votos, pisando as maiores conquistas do nosso país. É que o original é sempre melhor dos que as cópias.