Era uma questão de tempo.

É o jornalismo, a bolha que não sabe ver além da mesma, alguns comentadores, a terrível oligarquia e as supostas “elites” que têm andado nas últimas semanas pela boca e mão de muitos dos mesmos que estão nesse mesmo espaço público há décadas (!).

Entre estes, existem alguns padrões. O primeiro é o da descontextualização que deveria envergonhar qualquer jornalista, analista ou comentador. Pensar pela própria cabecinha, elogiar o desempenho de Pedro Nuno Santos nos debates em determinado contexto, para estas personagens, é fazer cair por terra toda e qualquer crítica analítica feita no último ano. Mesmo que uma das últimas até tenha sido ao facto de não ter travado a ida para eleições ao mínimo pretexto de Luis Montenegro que sempre as procurou e pelas piores razões.

Se se diz que André Ventura esteve manifestamente melhor num debate decisivo e relevante com Montenegro, mas não se legitima o discurso, o ódio gerado, os últimos anos na Assembleia da República e muito menos se previu o resultado impressionante do Chega, não se conhece o país real e a “rua”. Todas estas patetices ecoadas pelo Eduardo Cintra Torres, o Alberto Gonçalves que, fiquei a saber, era um eterno e convicto “negacionista” da covid, escondem outro padrão: o desconforto que sempre tiveram em caracterizar os últimos 51 anos de forma bastante mais positiva do que negativa.

Não estão isolados nisso e é uma das características de muitos que sempre revelaram a mesma avaliação do nosso passado recente. Quantas vezes é que um bom jornalista e comentador mediano como João Miguel Tavares disse aos seus leitores e ouvintes que o que hoje era corrupção no país político já não passava da mesma forma como há 20 ou 30 anos? Para não falar no escrutínio que é saudavelmente em crescendo, tirando o facto de se cair por vezes num certo justicialismo que já levou jornalistas a darem cabo da vida de políticos inocentes, retratando-se depois com pedidos de desculpa mais ou menos cínicos. Quantas vezes é que um autor de uma boa História de Portugal como Rui Ramos ficou e fica refém do seu azedume pessoal e sem qualquer critério nas avaliações que fazia ou faz do país?

É que eu ouvi atentamente pessoas que hoje votaram Chega e falei com outras. Entre uma minoria da oligarquia que financia esse partido – como estão enganados tantos em julgar que a extrema-direita não está já imbuída há um bom par de anos em muitos sectores do “terrível sistema” – e outra maioria de descontentes ou ressentidos, a causa principal era essa mesma corrupção e depois a imigração.

A terceira particularidade neste padrão de críticos de alguns comentadores é a contínua ignorância da guinada à direita no mundo. A bússola mudou e de forma impressionante. Sim, também no espaço público, ao contrário do que eles referem.

Claro que o centro-esquerda e a esquerda têm todas as culpas nesta realidade e perderam muita da ligação que tinham com os problemas das pessoas. Isso é inegável. Aqui, como em todo o lado. Mas considero sempre um exercício um pouco patético, ignorar a realidade global deste fenómeno. Tanto da perda de relevância, falência global da esquerda, centro-esquerda, como do crescimento de um novo fenómeno de direita radical e extremada.

Com ferramentas, financiamento, alicerces e uma base digital que acaba a manusear melhor do que ninguém. Essencialmente, baseada na amplificação de narrativas falsas ou noutras de manipular e substituir microrrealidades ou casos pelo macro. Vivemos hoje num mundo onde quem vive em Lisboa, no Baixo Alentejo ou Trás-os-Montes é mais afetado por o que lhe chega dos bots, daquilo que circula de forma manipulada nas redes sociais, do que pela realidade. Sim, é mesmo assim.

É por isso os políticos do espaço democrático que anunciam pôr fim ‘ao crescimento da direita radical ou da extrema-direita’ por via do resolver dos ‘problemas das pessoas’ estão apenas iludidos ou a iludir. Sem noção da real dimensão da manipulação que substituiu a realidade pelo que circula no digital.

Também considero um exercício bastante enganador e ao lado continuarem a olhar para a política nacional, para o crescimento do Chega, enquanto ignoram o efeito de toda a conjuntura internacional nisso mesmo. É sofredor ler sempre os mesmos com os mesmíssimos lugares-comuns, visando supostas ‘elites’, ‘oligarquias’, sem abrirem a janela de suas casas para lá de Portugal.

Saberão estas alminhas que, também na política, o dinheiro pesa e que o que circula hoje para financiar o Chega nessa manipulação e até na propaganda eficaz equivale a mais do que todos os outros partidos juntos? E que é assim agora com todos os seus congéneres europeus e a extrema-direita pelo mundo?

Portugal não é uma ilha. André Ventura não é e nunca foi um líder menor no contexto da extrema-direita europeia. Continuar a achar que todos os problemas começam e acabam ou se resolvem todos aqui e com as pessoas é discurso de político. Não é de comentador, analista e menos ainda de jornalista.

Sobretudo na era do trumpismo no centro. Olhem para os EUA e se não perceberem o que está a acontecer, mais vale entregarem a carteira de qualquer uma das três ou praticarem a atividade enquanto apoiantes do Chega.