
O melhor que se pode dizer sobre a ida do Vice-presidente americano, JD Vance, à Conferência de Segurança de Munique é que pelo menos não disse nada de grave ou disparatado sobre a Ucrânia. Disseram outros americanos. O pior, é tudo o resto.
O Vice-presidente dos Estados Unidos da América foi a Munique, ao principal encontro sobre segurança no Continente europeu, e no seu discurso não referiu uma única vez a Ucrânia ou a NATO. Nem sequer para falar de uma eventual paz, quanto mais para dizer a palavra aliados ou parceiros. Obviamente, isto nunca tinha acontecido. Daquele momento em diante, a confiança na Aliança Atlântica passou a ser uma ficção que só nos resta ter esperança que não seja posta à prova.
Depois veio o que disse, nem um pouco menos grave. Durante vinte minutos, JD Vance disse que a Europa tinha um problema interno de falta de liberdade de expressão mais grave do que as ameaças externas, que nem identificou. E passou o resto do tempo a criticar decisões de tribunais de Estados soberanos aliados, a defender o diálogo com a Extrema-direita, inclusive com a AfD, com quem reuniu, e que nem Le Pen nem Órban quiseram no seu grupo político europeu, e a associar refugiados a crimes terroristas. (O facto de na América se morrer mais em escolas quando adolescentes indígenas matam colegas não incomoda Vance nem lhe parece merecer reacção. Mas os imigrantes afligem-no muito. Imagina-se porquê.)
Ou seja, o Vice-presidente dos Estados Unidos da América acha que a ameaça russa (e chinesa, já agora) não é comparável à ameaça do wokismo. O facto de o “wokismo” ser um assunto que se pode, e deve, combater no livre mercado das ideias, como lhe podem explicar os democratas liberais, ao contrário de uma invasão russa, que é real, não o incomoda. Mas a nós, europeus, e aos liberais, aos conservadores, e aos democratas em geral devia impressionar. E muito. O mesmo homem que acha que as posições da extrema-direita devem ser livremente discutidas e consideradas, está mais preocupado com as opiniões woke do que com as armas de Putin.
O discurso de Vance, sobre a tragédia woke europeia, sobre decadência do continente, e sobre a ameaça das imigrações e dos refugiados podia ter sido dito, linha por linha, palavra por palavra, por Le Pen, Farage, Órban ou... Putin, claro. Que, de resto, se este ano tivesse ido a Munique teria aplaudido o Vice-presidente americano como muito poucos na sala aplaudiram. Esse facto, porém, não parece impressionar os amigos europeus de Vance.
Depois da tomada de posse de Trump, já não era possível aos líderes europeus – pense-se na primeira-ministra dinamarquesa, por exemplo – dizer aos cidadãos na Europa que os Estados Unidos são o nosso melhor amigo e aliado de confiança. Se é para ameaçarem ocupar-nos território, ao menos não lhes chamemos amigos. Depois de Munique, não podemos sequer fazer de conta que aquele discurso é para consumo interno. Não é. Vance veio à Europa apoiar os movimentos e partidos extremistas e atacar os governos legítimos dos países aliados.
Vance não estava num encontro partidário ou de debate de ideias políticas. Estava numa conferência de segurança na Europa, e escolheu ignorar Putin e Xi para se focar na ameaça dos transgénero e companhia, atacar os europeus e dizer que nem sequer têm uma democracia que mereça ser defendida. É preciso estar-se transtornadamente obcecado pelo tema do politicamente correcto, e não querer perceber nada de política internacional, da ideia de Ocidente, da Aliança Atlântica nem de História, para não reconhecer a inversão de prioridades que para aqui vai e as suas consequências. Ou ser-se assumidamente colaboracionista na desagregação do Ocidente. Eventualmente por fanatismo ideológico.
Perante tudo isto, esteve bem Emanuel Macron ao convocar imediatamente uma cimeira de alguns países europeus, incluindo o Reino Unido. Por muito que custe aos mais convictamente atlantistas e aos menos federalistas dos europeístas, é tempo de repensar os termos das alianças europeias. E fazê-lo com os britânicos à mesa, evidentemente. Isso é o lado bom da cimeira. Durante o Brexit, os europeus cometeram muitos erros, nomeadamente a obsessão com o erro que os britânicos estavam a cometer. Mas houve uma coisa muito acertada que fomos capazes de fazer (honra seja feita a Jean-Claude Juncker): negociar com os britânicos a uma só voz e impedir que o tema contaminasse a política diária da União. Perante o que se está a passar na relação transatlântica, vamos ter de conseguir fazer o mesmo. De resto, até os trumpistas europeus (fazem de conta que) acham que a Europa terá de ser mais autónoma. Pois que seja. Mas não basta querer ser geopolítico. Sem economia não seremos coisa nenhuma.
O mau é que não poderia ter sido uma cimeira dos 27 mais Reino Unido e NATO porque não resultaria. E, mesmo assim, também não resultou. Mas essa é outra conversa. Provavelmente mais importante que esta. Primeiro encerremos este período, depois tratemos da verdadeira prioridade: saber o que se quer e ser-se capaz de o fazer.