Estamos a meio de maio e os números são avassaladores: de acordo com as agências da ONU há mais de 53 mil mortos, na maioria civis, incluindo mais de 18 mil crianças, mais de 100 mil feridos, cerca de 12 mil desaparecidos e provavelmente soterrados nos escombros deixados pelos bombardeamentos e toneladas de bombas e mísseis que desde outubro de 2023 não dão tréguas a partir dos céus de Gaza.

Milhares mortos pela fome, doença e outros tantos à espera de destino semelhante. Um cenário que reflete e reforça o que se tornou óbvio: haverá poucas tragédias contemporâneas que exponham de forma tão clara a apatia, mas também a hipocrisia do discurso internacional sobre direitos humanos e responsabilidade de proteger como aquela que vai dizimando Gaza a cada dia.

Ao longo dos últimos 19 meses, vimos o horror a escalar a níveis que pareceriam impossíveis: bairros inteiros, escolas e universidades arrasados, hospitais bombardeados, civis soterrados, jornalistas e trabalhadores humanitários deliberadamente dizimados, crianças mortas, amputadas, traumatizadas, mães de luto, cidades reduzidas a pó. Tudo em nome de um suposto direito de defesa cujo único fim é o uso de uma força militar devastadora e desproporcional contra uma população maioritariamente civil e indefesa.

O cerco que dura há quase 70 dias impede, de forma intencional, o acesso a alimentos, a água potável, a medicamentos, a eletricidade e ao próprio direito de ir e vir, mantendo milhões cercados pelo medo e pela fome. A ilegalidade do que aqui se descreve é clara, a sua imoralidade ainda mais evidente. O bloqueio sufocante e a violência diária e sistemática da população palestiniana na Faixa de Gaza não é uma medida temporária ou pontual, nem tão pouco cabe na ‘legítima defesa’ por mais elástica que esta seja e que tem enchido ad nauseum a boca de tantos. O que Gaza nos mostra diariamente é uma estratégia de punição coletiva que priva uma população inteira de liberdade, de recursos básicos à sua sobrevivência e, sobretudo, da sua dignidade.

O agudizar da tragédia humana em Gaza é também reflexo dessa ideia dominante de que as relações internacionais não são o lugar para a defesa de princípios e valores morais, mas apenas da realpolitik, da defesa da soberania e da busca de poder. Uma ideia perigosa que deve ser seriamente contestada, sob pena de se abrir, como vemos acontecer em Gaza, caminho fácil à legitimação do genocídio e da limpeza étnica em nome de objetivos políticos, estratégicos ou económicos.

O plano proposto por Donald Trump – e tão prontamente apoiada por Netanyahu - de transformar Gaza na ‘Riviera do Médio Oriente’, em total negação do direito à existência e autodeterminação de um povo inteiro, é disso um claro exemplo. Absolutamente nada pode justificar a matança indiscriminada de civis, a sua deslocação forçada ou o desrespeito total pelo direito internacional humanitário. Por isso mesmo, Gaza não é apenas e só mais uma crise humanitária. É a expressão de uma falência moral coletiva, promovida por aqueles que se movem no plano internacional alimentados pelo poder, e sustentada pelo silêncio cúmplice de tantos outros, desde logo os Governos europeus que, por falta de coragem ou por mero oportunismo, se recusam a agir e a colocar a defesa da legalidade, da justiça e da dignidade humana acima dos seus próprios interesses.

Gaza hoje não é apenas e só mais um território cercado e totalmente destruído. É cada vez mais o lugar onde a defesa da Humanidade parece ter sido enterrada de vez sob os escombros juntamente com os milhares de vidas perdidas. É o espelho da cumplicidade internacional. A cada criança morta à fome, deixada sob os escombros ou amputada para a vida, talvez tenhamos de, para sempre, ser lembrados do sofrimento indizível que foi ignorado em nome de um qualquer status quo, de interesses considerados maiores ou simplesmente da total falta de decência.

Depois de vários dias com todas as atenções viradas para Roma e para a eleição do sucessor do Papa Francisco, continuemos a inspirar-nos no seu exemplo de liderança moral em tempos em que a moralidade é descartável ou acessória, sendo voz incansável na condenação da guerra em Gaza, reiterando o seu apoio a uma Palestina livre e declarando que ‘fazer a paz exige coragem, muito mais do que a guerra”.

É tempo de exigirmos a todos nós e a quem nos governa essa mesma coragem, confirmando que as relações internacionais não só podem como devem ser lugar para um compromisso sério, incondicional e sem reservas com a defesa dos direitos humanos, da justiça e da autodeterminação.