No início de 2007, Barack Obama, que à época era apenas mais um dos candidatos nas eleições primárias do Partido Democrata às presidenciais de 2008, chega a uma conclusão que vai definir, a partir daí, o seu discurso político, não só durante os debates em que depois participará como na forma como passaria a transmitir as suas mensagens ao povo norte-americano. A explicação, em jeito de confissão, é detalhada pelo antigo presidente em Uma Terra Prometida, livro que recentemente publicou.
“Por natureza, sou um orador ponderado, o que, pelos padrões dos candidatos presidenciais, contribuiu para manter a minha quota de gafes relativamente baixa. No entanto, o meu cuidado com as palavras levantou outra questão na campanha: eu era simplesmente prolixo, e esse era um problema. Quando faziam uma pergunta, tendia a oferecer respostas tortuosas e entediantes, com a minha mente a decompor instintivamente cada questão numa pilha de componentes e subcomponentes. Cada discussão tem dois lados e, geralmente, eu apresentava quatro. Se houvesse uma exceção a alguma declaração que tivesse acabado de fazer, não me limitava a apontá-la: elaborava notas de rodapé.
“– Estás a abafar a ideia-chave! – quase gritava Axe [David Axelrod, principal consultor político da campanha de Obama às presidenciais de 2008], depois de me ouvir falar de forma contínua e monótona.
“Durante um dia ou dois, eu concentrava-me obedientemente na brevidade, para, de súbito, dar comigo incapaz de resistir a uma explicação de dez minutos sobre os cambiantes da política comercial ou a velocidade do degelo no Ártico.
“– O que é que achaste? – perguntava eu, satisfeito com a minha perfeição, ao sair do palco.
“– Tiveste nota máxima no questionário – respondia prontamente Axe. – Mas não ganhaste nenhum voto.”
Aristóteles, ao contrário de Platão, do qual foi discípulo – e que olhava para a retórica como uma mera estratégia e ardil para encobrir a verdade –, vê na ‘arte de persuadir e da eloquência' um valor intrínseco, argumentando que a retórica pode basear-se na razão e é importante para defender diferentes pontos de vista, pois a ‘verdade’ é sempre relativa. E foi assim que, na Grécia Antiga, a retórica deixou de ter a conotação negativa que até então tinha. Pensador incansável, Aristóteles analisa o discurso da retórica clássica e divide-o em partes, apontando duas delas como indispensáveis em qualquer discurso, incluindo o político. Uma delas é a capacidade do orador para expor a sua tese, aquilo que quer provar, a outra parte é a necessidade de defender aquilo que quer provar: em suma, temos aqui a ‘narração’ e a ‘argumentação’, com o filósofo nascido na antiga cidade de Estagira a incluir a ‘refutação’ dos argumentos adversários no campo da argumentação.
O discurso retórico muito evoluiu desde há mais de dois mil anos, especialmente com o contributo teórico de Chaïm Perelman, no século XX, no entanto, a imprensa dirigida às massas, a rádio, a televisão e, mais recentemente, a Internet, trouxeram novas formas de persuasão, quando se trata de transmitir mensagens políticas, tornando-as, para o bem e para o mal, mais simples e espetaculares.
“Um orador, ao escolher os seus argumentos, tem logo de ter em conta a forma como os irá apresentar visualmente ao seu auditório: no caso da televisão, de forma curta, agradável e incisiva; na Internet, de forma estética, colorida, animada [...]. Neste novo ambiente, os melhores argumentos não são necessariamente os mais lógicos ou os mais cogentes, mas os que se podem apresentar de forma mais simples e espetacular”, escreve Paulo Serra, professor catedrático e investigador em filosofia e política pela Universidade da Beira Interior, em A Credibilidade Política na Sociedade Mediatizada, artigo científico publicado na colectânea Retórica e Política, em 2015.
Face à complexidade do século XXI, onde, ainda por cima, tudo é global e está ligado em rede, sendo que todos os dias é gerada mais informação do que aquela que podemos ler no nosso tempo de vida, tornou-se difícil a obtenção de respostas simples para questões que exigem bem mais do que os tradicionais soundbites ou banais estereótipos. Será que não estamos a assistir a uma simplificação, em excesso, do discurso político, com consequências na forma como os cidadãos apreendem depois a realidade? Quer dizer, se tudo está mais difícil de perceber, simplificar em demasia a mensagem política não é envolver as pessoas numa falsa ideia de que há respostas fáceis e ações tangíveis que facilmente resolvem tudo? Tal como já avisava Eça de Queirós no século XIX, no clássico da literatura portuguesa que é A Relíquia, “sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia”.
O cientista político José Santana Pereira, do ISCTE- Instituto Universitário de Lisboa, dá-nos a sua resposta, questionado pelo Sapo:
“A complexificação da vida contemporânea, nas suas aceções políticas e económicas, entre outras, foi acompanhada, nas democracias ocidentais, por um incremento do acesso à informação, ao mesmo tempo que os partidos políticos e os candidatos a cargos políticos se iam tornando mais dependentes dos média, para comunicar com os eleitores”, começa por explicar. “Aparentemente, em vez de criar uma maior capacidade de processar essa complexidade, a progressiva universalização do acesso à informação terá provocado uma enorme fadiga cognitiva nas pessoas, que se sentem bombardeadas por informações, 24 horas sobre 24 horas, sobre os mais variados temas, e ao mesmo tempo são seduzidas por inúmeras alternativas em termos de conteúdos de entretenimento, também disponíveis de forma muito mais fácil e imediata do que há algumas décadas”.
E quais as consequências que daí resultaram? “Esse fenómeno, associado a uma tendência de desalinhamento partidário, de erosão das identidades partidárias, e de alguma desconfiança em relação aos partidos e elites políticas, criou uma menor disposição para estarmos atentos ou nos expormos ao que dizem os políticos, e levou alguns protagonistas políticos a optar por uma estratégia de simplificação da mensagem – muito influenciados, como vemos no excerto do livro de Obama, pelos conselheiros especializados em média e comunicação. O objetivo é combater a barreira do desinteresse, do cansaço e da desconfiança, bem como a concorrência das alternativas de entretenimento, e conseguir comunicar de forma eficiente, passando a mensagem de forma envolvente e interessante no pouco tempo que as pessoas desejam conceder aos políticos”.
Ignorar a complexidade das questões sociopolíticas não é sinal de competência para algum eleitorado
O tempo, tal como o sentimos no dia-a-dia, não é elástico – para tornar a explicação mais prática, vamos colocar de parte a Teoria Especial da Relatividade de Einstein, validada pela ciência, que nos diz que não é bem assim. O tempo, ou, melhor dizendo, a nossa capacidade e disponibilidade de atenção, como analisam alguns teóricos da comunicação, é um recurso finito dentro de um ecossistema em que várias partes competem entre si pelo tempo de cada um de nós, dos órgãos de comunicação social aos anunciantes de marcas, passando, pois claro, pelos políticos.
Procurar o soundbite mais sonante costuma ser uma das estratégias para captar a atenção (o tempo) da audiência, mas com tanta saturação a nível informativo, ainda para mais quando se usa as redes sociais digitais como ferramenta para (tentar) ‘viralizar’, quase todos os dias, diferentes mensagens políticas, há quem recorra a outro tipo de fórmulas, embora de novo estas nada tenham.
“Um aspeto a destacar é a diferenciação entre uma linguagem clara e uma linguagem brejeira e popularucha, que vários líderes políticos, de índole claramente populista, têm vindo a adotar. Tal fenómeno pode render soundbites interessantes e atenção pelos média [tradicionais] e pelos média sociais, mas só contribui para a degradação do debate na esfera política”, garante José Santana Pereira.
Pelo meio, há que ter atenção ao perigo que são as narrativas em que as questões e os problemas complexos são apresentados de forma levianamente simples, prometendo-se soluções igualmente simples, salienta o cientista político. Entramos no campo das promessas irreais e quase impossíveis de se materializar. “Isso não costuma correr bem. As promessas não são cumpridas porque problemas complexos não têm soluções simples, o que contribui para a manutenção ou agravamento dos problemas e para reforçar a ideia de que os políticos não cumprem a palavra dada e não são competentes. Além do mais, a efetiva implementação de soluções simples pode ter efeitos colaterais graves”.
Quando chega o momento de argumentar, a nível político, entra igualmente em cena, tal como já tinha frisado Aristóteles, o processo de refutação das ideias dos adversários. É aqui que tudo se pode tornar ainda mais confuso e nada convidativo à clareza, isto se formos nós a audiência (ou os eleitores, do ponto de vista democrático).
Voltemos ao que nos diz Paulo Serra, em A Credibilidade Política na Sociedade Mediatizada“: Tal como na Grécia do tempo de Aristóteles, também nas sociedades contemporâneas a atividade política tem um caráter agonístico que é levado ao extremo, vendo-se cada intervenção ou cada debate como um verdadeiro combate em que a refutação dos argumentos do adversário acaba por ser mais importante do que a afirmação dos seus próprios argumentos”.
Numa época em que os órgãos de comunicação social tradicionais enfrentam umas das suas maiores crises, muito por culpa da falência do modelo de negócio, assente na publicidade, que os sustentava – um problema muito mais transversal e abrangente para se apontar a culpa, somente, ao online –, procurar o conflito ou o que escapa ao politicamente correto revelou-se um isco capaz de captar a atenção (o tempo) das pessoas: um isco ao qual estas não parecem resistir. Nesse sentido, as campanhas presidenciais de Donald Trump, especialmente a que lhe valeu, em 2016, a presidência dos EUA, foram exemplares na forma como, de tão disruptivas que eram as suas mensagens políticas em relação à dos adversários, conseguiram gerar uma audiência considerável. Um balão de oxigénio em tempos difíceis, para os velhos média, mas que teve um custo: o constante destaque a um discurso político tóxico e divisivo, com Trump a perceber que, independentemente de falarem bem ou mal, o que interessa é que falem dele nos média.
Outro exemplo. Os debates televisivos entre os principais candidatos que concorrem às eleições presidenciais de 2021, em Portugal, tiveram audiências muito reveladoras. Os três debates mais vistos pelos portugueses envolveram o mesmo candidato, André Ventura, cujo discurso assentou numa retórica musculada, de claro confronto (incluindo vários ataques pessoais aos outros candidatos), com uma linguagem, incluindo a corporal, bastante agressiva e sempre assente nos mesmos soundbites e em argumentos políticos muito simplificados. Esta estratégia, de palavras e ideias fáceis, funciona e traz resultados, pelo menos a nível eleitoral?
“Vale a pena sublinhar que a investigação científica tem demonstrado que aquilo que os eleitores pensam dos líderes partidários e candidatos políticos tem impacto, na sua decisão de voto. E se as avaliações em termos de afetuosidade contam muito, as avaliações sobre as suas competências são também importantes, especialmente para um certo tipo de eleitorado. Não convém aos protagonistas políticos, por isso, optar por simplificar ou tornar mais claro o seu discurso, jogar fora o menino com a água do banho, ignorando a complexidade dos processos e problemas sociopolíticos, porque prejudica a perceção de competência que as pessoas têm deles”, defende José Santana Pereira.
Todavia, e como escreve o investigador em filosofia e política Paulo Serra, não se pode fugir a uma premissa essencial, em política: “A tarefa do político é tornar simples o complexo, permitir que todos percebam o que está em jogo. Um cidadão pode nada perceber de economia e finanças, mas perceberá certamente os efeitos básicos de um aumento dos impostos que paga ao Estado. Daí que o recurso à frase curta, à fórmula estereotipada e ao soundbite se torne praticamente um imperativo – e um imperativo a que não só é concedido cada vez menos tempo, mas que é também cada vez mais mediado pelos jornalistas”.