O que é, afinal, um tirano? A definição moderna aponta para a figura de um governante ilegítimo que usurpou o poder pela força, de forma inconstitucional, mas, também, para alguém que abusa do seu poder (da sua autoridade), recorrendo à repressão para o manter.
Donald Trump e Jair Bolsonaro – ambos eleitos pelo voto popular, é preciso frisar –, nunca deixaram de estar enquadrados e limitados, no exercício do seu poder, por instituições democráticas. Ou seja, apesar das suas derivas autoritárias e populistas, dos constantes discursos em que desumanizavam o “outro” (fossem eles emigrantes, negros ou indígenas da Amazónia), acabaram sempre por ceder e foram obrigados a seguir as regras do estado de direito democrático e a constituição do seu país. Não se encaixam, portanto, na categoria de “tirano”. Até que ponto conseguiram corroer, por dentro, as instituições que garantem a democracia, assim como a confiança que os cidadãos têm nelas, essa é outra questão.
O caso de Vladimir Putin é diferente. Desde o ano de 2000 que é a figura maior da Federação Russa, um país que, no papel, é uma república com um sistema de governo semipresidencial, com o presidente a ser escolhido por via democrática, através do voto popular. Não obstante, e na prática, o governo, neste momento, assenta num autoritarismo autocrático, com alegações de irregularidade e fraude eleitoral, nomeadamente por parte da oposição: nas últimas presidenciais, em 2018, Putin recolheu, logo na primeira volta, 76,7% dos votos.
Já são 19 anos na presidência do país, a que se juntam, pelo meio, outros quatro enquanto primeiro-ministro, após ter cumprido o limite de dois mandatos presidenciais consecutivos que estavam consagrados na constituição. Em 2021, e após referendo, uma emenda constitucional abriu a porta à possibilidade de cumprir outros dois mandatos seguidos, caso seja eleito: quer dizer, pode ser presidente da Rússia até 2036. Acrescentemos que, desde 2012, os mandatos presidenciais passaram de quatro para seis anos.
Putin é líder de uma nação que, traumatizada pela desilusão que foi a transição para o neoliberalismo, procura reencontrar-se com a grandeza histórica de outros tempos, emular os tempos de Pedro, O Grande, o primeiro a intitular-se Imperador de Todas as Rússias (1721), assim como os da União Soviética (século XX), quando o país era uma das duas superpotências mundiais, rivalizando com os EUA. História antiga. Entretanto, a invasão de parte do território da Ucrânia e a guerra com este país, a que se junta a tentativa de rebelião – em pleno solo russo e a poucos quilómetros de Moscovo – protagonizada pelo líder do grupo mercenário Wagner, em junho de 2023, mostraram que o poder de Putin não é tão omnipotente e omnipresente como se julgava no Ocidente. Quanto mais, e usando uma linguagem corriqueira, Putin pode ser visto como um aspirante a tirano.
O mesmo não pode ser dito de Xi Jinping, presidente (quiçá vitalício) da China, uma nação com quase 2250 anos de existência, uma potência que os EUA já consideram como o seu grande rival. Neste momento, tudo indica que mais nenhum líder mundial tenha, sob tão apertado e centralizado controlo, um poder político, económico e militar tão grande. Quem é este homem e qual a sua história?
Xi Jinping usou uma populista campanha de anticorrupção para afastar adversários e centralizar em si todo um poder que recorda o dos antigos imperadores da China: mas há quem suspeite que o fez por sofrer de um complexo de inferioridade
O ursinho Winnie-the-Pooh, personagem infantil que se tornou famosa através dos filmes da Disney, conquistou os mais jovens pela sua personalidade atenciosa, amigável e poética em relação ao mundo que a rodeia, pese embora pareça ingénua e um pouco lenta de pensamentos, sendo que estes dois últimos traços talvez se devam mais à sua humildade e a uma proclividade para pensar de uma forma mais ponderada e profunda. Assim sendo, quem se lembraria de censurar esta carinhoso urso, desde imagens até filmes em que entre? O governo chinês! É o que sucede desde 2017, pois nas redes sociais do país circulavam vários memes virais que recorriam a Winnie-the-Pooh para circundar a censura e caricaturar o presidente Xi Jinping, pois a postura corporal e algumas das suas expressões faciais fazem lembrar o líder máximo da China.
Deixemos a personagem de ficção em paz e coloquemos os holofotes na figura de carne e osso que a censurou. Trata-se de um político discreto, paciente e meticuloso, mas terrivelmente célere e eficaz a agir quando se trata de anular os adversários políticos, tendo-se movido nos bastidores do poder de um modo que apanhou de surpresa as velhas raposas da política chinesa, inclusive aqueles que apadrinharam a sua ascensão a líder da segunda maior potência (económica e militar) do mundo. Decididamente, este humano nada tem a ver com Winnie-the-Pooh.
Desde que tomou posse como presidente da China, em 2013, Xi Jinping tornou-se, em apenas dez anos, e de acordo com vários analistas políticos, no líder mais poderoso do país desde o revolucionário Mao Zedong (ou Mao Tsé-Tung, como também é conhecido no Ocidente), fundador e senhor absoluto da República Popular da China até 1976, ano em que faleceu. Atenção: segundo as regras do Estado chinês – que é um regime de partido único, daí que, segundo os padrões das democracias ocidentais, a China é, de facto, uma ditadura – o cargo político mais importante da nação recai sobre o secretário-geral do Partido Comunista Chinês (o PCC), que também é presidente da Comissão Militar Central. Contudo, desde 1993 que essas duas posições são ocupadas pelo presidente do país. Quem escolhe a figura que centraliza todo este poder?
Antes de mais, uma mui breve e simples clarificação. Num país com mais de 1,4 mil milhões de habitantes, e em que o Estado está organizado numa complexa estrutura piramidal, o ápex é constituído pelo chamado Politburo do Partido Comunista da China, composto por apenas 24 quadros do partido, sendo que dentro deste grupo insere-se o Comité Permanente do Politburo, formado por sete membros sobre os quais recaem a maior parte e as principais decisões políticas e económicas do país: à frente deste comité está o secretário-geral do PCC. Basicamente – embora não de forma oficial –, foi esta minoria de sete personalidades que decidiu, entre si, quem seria o sucessor de Hu Jintao, o anterior presidente do país. Mais abaixo, na pirâmide, temos os quase três mil delegados do Congresso Nacional do Povo (um órgão legislativo), todos escolhidos pelo PCC, recaindo sobre eles a eleição, por voto em urna, do novo presidente, embora na prática se limitem a seguir a diretrizes e decisões já tomadas pelo politburo.
Tal como recorda a Associated Press, quando Xi Jinping foi nomeado pela primeira vez, em 2013, os delegados do Congresso Nacional do Povo receberam um boletim de voto em que só constava o seu nome. O resultado foi o esperado: 2952 membros votaram a favor da sua eleição, um votou contra e três abstiveram-se.
E o que fez Xi Jinping para convencer o Politburo a escolhê-lo? Eis que entra em cena a habilidade política de Jinping, que soube “ler” e perceber o enorme sentimento de insatisfação da população chinesa em relação à galopante corrupção que existia no país.
Na década de 1980, quando já estava a subir a escada do poder no seio do PCC, foi destacado para a província de Fujian (que atualmente conta com mais de 40 milhões de habitantes), tendo sido escolhido em 1995 para o lugar de secretário provincial adjunto do partido. Quatro anos mais tarde tornou-se no governador da província. Durante o período que esteve em Fujian, estalou aí um dos maiores escândalos de corrupção que o país assistiu nas últimas décadas, tal como explica o jornal britânico The Gurdian, envolvendo um conhecido e milionário homem de negócios que subornou vários oficiais locais ligados ao PCC, para que os seus projetos recebessem luz verde. O epicentro, ao que parece, era a chamada “mansão vermelha”, para onde os corrompidos eram convidados e usufruíam de toda a comida, bebida e favores sexuais que lhes eram oferecidos.
Xi Jinping, recorda o The Guardian, não foi beliscado pelo escândalo, mas, segundo a análise feita pelo jornal, este acontecimento ensinou-o a navegar nas águas turvas da política interna chinesa: “É possível que [após o caso] tenha tido uma noção mais profunda de como a corrupção estava a corroer a confiança pública no partido, e de como as ações anticorrupção podiam ser utilizadas para atingir os rivais políticos. As purgas foram um instrumento fundamental na sua consolidação do poder ao longo da última década, permitindo-lhe chegar até ao topo do partido.”
Em 2007, devido a um outro escândalo de corrupção, desta vez envolvendo as mais altas chefias da cidade de Xangai, a cúpula do PCC deu-lhe o cargo de secretário do partido desta cidade, com a vital missão de aí promover um clima de estabilidade social e económica. A imagem pública de Xi Jinping como um líder político com tolerância zero para a corrupção reforçava-se, além de que, dentro do PCC, surgia como um conservador que seguia fielmente as linhas orientadoras do partido, pese embora as suas origens familiares – e, sobre essa importante história, ainda iremos falar.
Face a tudo isto, no mesmo ano acaba por ser escolhido para integrar o poderoso e restrito grupo do Comité Permanente do Politburo. Quando em 2008 é eleito vice-presidente da China, torna-se evidente que este era o homem que viria a ser o futuro presidente do país.
Quando chega ao lugar, em 2013, não perdeu tempo a reforçar ainda mais o seu poder. Assume de imediato a chefia da Comissão Militar Central e, de acordo com vários especialistas entrevistados pela BBC, afastou rapidamente toda e qualquer oposição que poderia existir dentro das forças armadas – o Exército de Libertação Popular –, transmitindo a ideia de que quem desafiasse as suas decisões sofreria repercussões. Em 2015 reformula a estrutura do exército, dividindo-a em várias e mais pequenas agências que passam a obedecer diretamente à Comissão Militar Central, ou seja, ao próprio Xi Jinping. Com estas mudanças, o presidente chinês, refere o artigo da BBC, anulou qualquer tipo de lealdade que pudesse surgir no exército para com oficiais seniores que, de futuro, se opusessem a Jinping. Na prática, e de momento, é o Comissão Militar Central que controla com mão-de-ferro o segundo mais poderoso exército do mundo.
Até outubro de 2012, a campanha anticorrupção prometida por Xi Jinping (pautada por uma grande dose de populismo) levou a que, dizem observadores à BBC, mais de 4,7 milhões de pessoas tenham sido investigadas, com muitas e pesadas condenações pelo meio. Só que, em simultâneo, esta “caça ao corrupto” serviu para afastar os seus rivais. Grande foi a surpresa quando Bo Xilai, um político popular e considerado o principal adversário de Jinping, foi preso e condenado a prisão perpétua por corrupção e abuso de poder: Bo Xilai fazia parte do Comité Permanente do Politburo, e a regra informal que até então existia era a de que todos os membros desta elite dirigente eram intocáveis. A mensagem foi transmitida com toda a clareza.
Os que o ajudaram a abrir caminho até à liderança absoluta também acabaram por ser vítimas de purgas, nos últimos anos, com os cargos de liderança em cidades importantes e com dezenas de milhões de pessoas, como Pequim e Xangai, a serem entregues a políticos que lhe são leais.
"Os membros seniores do Partido Comunista que apoiaram a ascensão de Xi ficaram, provavelmente, surpreendidos com a velocidade e a escala da sua tomada de poder", frisa à BBC o analista Neil Thomas, da empresa de consultoria política Eurasia Group.
Ainda por cima, as decisões de foro económico, que tradicionalmente recaiam sobre o primeiro-ministro chinês, foram igualmente transferidas para o presidente.
O que se vê, com Jinping, é a descontinuação de uma prática que existia na China, nas últimas décadas, em que o poder era partilhado entre diferentes facões, diz Chen Gang, investigador do Instituto da Ásia Oriental da Universidade Nacional de Singapura, à CNN:
"Entrámos numa nova era, uma vez que Xi controla agora quase todos os aspetos relacionados com a elaboração de políticas e a tomada de decisões", continua. "Estamos a assistir a uma espécie de recentralização da burocracia na China, que terá definitivamente um impacto na futura trajetória da política económica e externa do país."
Relembremos: estamos a falar da segunda maior potência económica e militar do globo, ficando somente atrás dos EUA.
Não obstante, Xi Jinping parece querer ir ainda mais longe e chamar a si um poder que só se viu nos tempos de Mao Zedong, como se procurasse emular os velhos monarcas absolutistas (ou o dos antigos tiranos). Em 2018, foram introduzidas duas emendas na constituição do país com enorme impacto.
A primeira foi o fim do limite de mandatos presidenciais, regra instituída em 1982 e que se destinava a evitar os excessos ditatoriais cometidos durante a Revolução Cultural Chinesa (1966-1976), período que deixou o país quase à beira do colapso. Nas últimas décadas, a norma era cada presidente apenas cumprir dois mandatos, de cinco anos cada um. Com a nova alteração, Xi Jinping conseguiu, em março de 2023, ser eleito pelo Congresso Nacional do Povo para um terceiro mandado – todos os 2952 delegados votaram no seu nome, que, mais uma vez, era o único da lista. Na prática, Jinping pode eternizar-se na presidência do país.
Tudo mais do que expectável. Alguns meses antes, em outubro de 2022, o presidente chinês apresentou (logo após o fim do Congresso do Partido Comunista, que decorre a cada cinco anos) os 24 nomes que constituiriam o Politburo do Partido Comunista da China, sendo que, pela primeira vez em 25 anos, não consta no elenco uma única mulher. Em simultâneo, foram anunciados os sete membros que fazem parte do Comité Permanente do Politburo, juntamente com Jinping: o destaque recaiu nas quatro novas caras que passaram a formá-lo, todos eles aliados e protegidos, de longa data, do presidente.
A segunda emenda constitucional tem o extravagante nome de “Pensamento de Xi Jinping Sobre o Socialismo Com Características Chinesas Para Uma Nova Era”. Afinal, o que é isto? Basicamente, é um corpus ideológico, ou seja, um conjunto de visões e possíveis linhas políticas a seguir que passam a estar consagrados na constituição chinesa. Ao contrário do que vários órgãos de comunicação anunciaram, não se trata de algo inédito, pois os antecessores de Jinping também incorporaram os seus conceitos ideológicos na constituição, a diferença é que esta adenda tem o nome do atual presidente, algo que não sucedia desde os tempos de… Mao Zedong, o fundador da República Popular da China. Trata-se, acima de tudo, de mais uma forma de reforçar e legitimar o seu poder no seio do partido e junto da população, sendo que o próprio ministério da Educação já deu a entender que poderá vir a incorporar este “Pensamento de Xi Jinping” no currículo do ensino escolar.
Passemos da política dura e crua para a psicologia. De onde virá esta ânsia em concentrar em si quase todo o poder de decisão política, económica e militar da segunda maior potência do globo? Porque rompeu Jinping, de forma tão súbita e abrupta, com o costume de dividir o poder, internamente, com outros protagonistas e facões do PCC? A dissidente política Cai Xia, que ensinou na Escola Central do Partido Comunista da China e deu aulas a altos dignitários do partido, num artigo que escreveu em 2022 para a revista Foreign Affairs, avança com uma possível explicação:
"Porque é que, ao contrário dos seus antecessores, Xi é tão resistente aos conselhos dos outros? […] Suspeito que parte da razão se deva ao facto de sofrer de um complexo de inferioridade, pois sabe que tem pouca educação [política] em comparação com outros líderes de topo do PCC."
Cai Xia foi expulsa do PCC em 2020, após criticar a forma de governar do atual presidente, vivendo atualmente em exílio, nos EUA.
O líder da China é um excelente caso de estudo para a psicologia. O motivo?
Xi, que nasceu em 1953, tinha apenas nove anos quando viu o pai – que fazia parte da elite política do PCC – cair em desgraça dentro do partido: o pior veio durante Revolução Cultural (1966-1976), quando o progenitor foi preso, espancado e humilhado em público, e, por fim, exilado para outra região do país, embora no fim desta década de caos tenha acabado por ser reabilitado pelo partido. Aos 13 anos a sua mãe (sob forte coação e talvez para evitar males maiores para o filho) denunciou-o e acusou-o de ser um contrarrevolucionário, diante de uma multidão de adolescentes e jovens fanatizados pela ideia de Mao Zedong de que era imperativo afastar a “elite aburguesada” do PCC. Entretanto, a meia-irmã suicidou-se, presume-se, devido à perseguição de que era vítima toda a família. Em 1968 foi enviado para um “campo de reeducação” e obrigado a ajudar em árduos trabalhos rurais.
Mesmo assim, e após a Revolução Cultural, fez o contrário do pai (que tinha uma visão política mais liberal e apoiava a livre expressão de ideias políticas), mantendo-se fiel às diretrizes do PCC, procurando a todo o custo, e com sucesso, cair nas boas graças dos seus dirigentes.
"Ele foi influenciado pelo ambiente em que cresceu e pela doutrinação que absorveu durante a adolescência. […] "Na sua juventude, esteve sempre numa posição de insegurança. Estava psicologicamente vulnerável", opina o cientista político Chen Daoyin, para o The Guardian. Em suma, e de acordo com os analistas entrevistados por este mesmo jornal, “esses anos deixaram-lhe um sentimento de ameaça e insegurança que duraram toda a sua vida e se manifestaram nas suas políticas, quando atingiu o poder máximo”.
Com 69 anos, completados em março deste ano, e num ambiente global de crescentes tensões, parece que ainda há muito por escrever sobre o futuro de uma China moldada e sob o jugo incontestável de Xi Jinping. O futuro do planeta Terra depende, e muito, do que fizer este homem.
Aristóteles acreditava que as tiranias ascendiam ao poder quando as oligarquias, formadas por famílias ou grupos restritos que detinham grande poder, discordavam entre si
Falemos, agora, sobre quem eram os verdadeiros tiranos da Antiguidade. Os gregos chamavam-lhes de túranos, os romanos (em latim) de tyrannus. Na Grécia Antiga, um tirano era um governante que detinha um poder absoluto, exercendo-o sem restrições legais, uma característica que os distinguia dos monarcas de então, pois os reinados destes últimos, em maior ou menor grau, estavam adstritos a um conjunto de leis e costumes que tinham de seguir.
Há cerca de 2600 anos, um tirano não era imediatamente considerado um mau governante, daí que não tivesse a conotação negativa que hoje tem: alguns eram bastante populares e adorados. Houve tiranos que chegaram ao poder por via da usurpação, conseguindo-o pelos seus próprios meios, ou que herdaram essa forma de governar (o controlo absoluto do Estado passou do pai para o filho, por exemplo). Mas também existiram outros que foram eleitos; assim como déspotas que foram impostos à força a partir do exterior – foi o que o Império Aqueménida (os Persas) fez a muitas cidades-estado gregas no século V antes de Cristo (a.C.), após ter subjugado muitas delas durante as Guerras Greco-Persas.
Todavia, e ao fim de alguns séculos, a tirania acabaria mesmo por tornar-se num sinónimo de opressão para o mundo grego. Coube ao filósofo Aristóteles, responsável por escrever no século IV a.C. a obra Política – um tratado dividido em oito tomos onde faz várias reflexões e considerações sobre o papel que a política deve ter na sociedade –, tecer num dos seus capítulos aquela que que é considerada a melhor definição de "tirania":
“Qualquer governante que tem todo o poder e que não é obrigado a prestar contas sobre si mesmo, que governa súbditos que lhe são iguais ou superiores para atender aos seus próprios interesses e não aos deles, só pode estar a exercer uma tirania.”
Ou seja, Aristóteles dá uma conotação negativa a qualquer forma de governo assente no poder absoluto de um tirano, apresentando-a como uma degeneração do regime político assente na monarquia, sendo que, para este pensador da Grécia Antiga, todos os governos devem governar visando a justiça, o interesse geral e o bem-comum.
Todavia, se para ele a tirania não conseguia assegurar o bem-comum, também a oligarquia (em que o poder está concentrado numa minoria e para seu benefício próprio) e a democracia, tal como ela existia à época (no qual o poder está nas mãos de uma turba anárquica, refere o pensador), não o garantiam: a democracia, tal como Aristóteles a conhecia, tinha igualmente todos os condimentos para conduzir ao poder figuras tirânicas.
Aristóteles aponta o governo aristocrático como a melhor solução governativa, pois acreditava que uma minoria bem qualificada seria capaz de melhor governar. Todavia, e analisando o todo que é a obra Política, Aristóteles mostra preferência por algo que se assemelha muito ao que é hoje uma democracia constitucional e representativa, com os melhores cidadãos a governarem com o consentimento de todos.
O seu olhar arguto e clínico, para com a época em que viveu, levou o filósofo, nascido na antiga cidade de Estagira, a afirmar que as tiranias ascendiam ao poder quando as oligarquias discordavam entre si. Basicamente, definiu quase exemplarmente o modo como surgiu o primeiro tirano no mundo grego, de que há registo histórico fiável: falamos de Cípselo, que em 657 a.C. assumiu as rédeas da cidade-estado de Corinto, dando início a uma dinastia de tiranos que passou de pai para filho.
Cípselo tornou-se no tirano de Corinto porque a mãe… era coxa e casou-se com um homem que não pertencia à família mais poderosa da cidade
Se recuarmos até entre há 2900 e 2800 anos, a monarquia era a forma de governo predominante nas cidades-estado gregas, mas, à medida que determinadas famílias e dinastias foram ganhando grande influência económica e política, surgiram regimes aristocráticos que operavam ao serviço de oligarquias. Por volta do século VII a.C., a forma como estas oligarquias conduziam os assuntos das cidades-estados e os interesses dos cidadãos – estando mais interessados em governar para seu próprio benefício – tornou o regime aristocrático (que na prática era oligárquico) bastante impopular. Para quem se sentia oprimido, economicamente marginalizado e procurava uma mudança em relação ao velho regime aristocrático, estavam criadas as condições para acreditar nas palavras de figuras que, conduzidas pela ambição e com meios para tomar de assalto o poder, lhes prometia solução para os seus problemas.
Foi precisamente o que sucedeu em Corinto. Cípselo nasceu no século VII a.C., no seio da família oligárquica Baquíadas, que controlava a cidade-estado. Os membros dos Baquíadas apenas se casavam entre si, e foi precisamente essa tradição que levou os membros deste clã a tentar o infanticídio de Cípselo, o recém-nascido de Labda. O que sucedeu para tomarem essa decisão drástica e cruel?
Labda, que pertencia à família Baquíadas, tinha uma deficiência num dos pés que a fazia coxear, o que levou a que nenhum familiar do sexo masculino estivesse interessado em casar com ela. Todavia, e em vez de permanecer solteira, a jovem decidiu casar-se com Eetion, oriundo de outra família de Corinto, e ambos tiveram um filho. Este nascimento não foi bem aceite pelos restantes membros do clã, pelo que procuraram assassinar o bebé logo à nascença, embora sem sucesso – reza a lenda que a mãe foi a tempo de o esconder dentro de um cesto antes de os assassinos entrarem na sua casa para levar a cabo o ato.
A enorme fortuna dos Baquíadas provinha das tarifas portuárias de Corinto, uma via rápida para obter a influência política que depois lhes permitiu governar sem oposição, após a morte do último rei da cidade, no século VIII. Contudo, outras famílias de Corinto começaram a sentir-se despeitadas e prejudicadas com esta enorme concentração de riqueza e poder.
A crer nos relatos que sobreviveram até aos dias de hoje, existia na cidade um clima generalizado de antipatia para com os Baquíadas, por monopolizarem para si quase todas as decisões relacionadas com o funcionamento da cidade e, consequentemente, garantirem que a sua fortuna não parava de crescer.
Quando Cípselo, que se alistou no exército, chegou à maioridade e se tornou num soldado sénior, procurou vingar-se e usurpar o poder à família materna, iniciando um percurso político pleno de demagogia, explorando habilmente o ambiente de ressentimento entre os cidadãos. Foi assim que reuniu o apoio popular para, em 657 a.C., usar a força militar e derrubar de vez os Baquíadas, tornando-se no primeiro tirano de Corinto.
Segundo o historiador Heródoto (viveu no século V a.C.), foi o famoso Oráculo de Delfos que fez a "previsão" de que Cípselo seria aquele que traria “justiça” a Corinto, após colocar termo à dominante oligarquia dos Baquíadas. Os historiadores modernos não têm grande dúvida de que esta lenda foi fabricada após o filho de Labda ascender ao poder, não antes. Não obstante, o fato de a lenda se ter popularizado parece atestar a ideia de que a queda dos Baquíadas foi lamentada por muitos poucos.
Cípselo governou como um tirano durante três décadas e, durante esse período, fundou colónias de Corinto ao longo do noroeste da Grécia, colocando os seus filhos a administrar cada uma delas. Existem fontes que dizem que ele se tornou tão popular (apesar de ser um demagogo) ao ponto de dispensar guarda-costas.
Quando morreu, em 627 a.C., o regime tirânico de Corinto prosseguiu com o seu filho Periandro. Para fazer crescer e proteger o comércio corintiano, este fundou mais colónias, incluindo uma (em conjunto com outras cidades-estado) no Antigo Egito, para fazer face às cada vez maiores trocas comerciais entre o mundo grego e as terras sob domínio dos faraós. Governando com mão firme, Periandro, ao longo dos seus 40 anos como tirano de Corinto, ordenou a construção de novas infraestruturas e trouxe prosperidade comercial e cultural a esta polis grega, tornando-a numa das grandes potências da região. Alegadamente, foi um patrono da literatura e de outras artes, além de autor de uma coleção de máximas (ditos sentenciosos) com dois mil versos.
Apesar de tudo, a imagem de Periandro, durante o período da Grécia Antiga, ficou associada à de um déspota cruel, embora se especule, atualmente, se essa representação negativa não terá sido germinada e disseminada pela nobreza corintiana – os tiranos gregos, tipicamente, confiscavam riquezas aos nobres e limitavam os seus privilégios, o que ajudava a transmitir a mensagem de que favoreciam mais os pobres do que os ricos.
A dinastia de tiranos de Corinto chegou ao fim em 581 a.C., seis anos após a morte de Periandro, quando o seu sobrinho e sucessor, Psamético, foi assassinado e um governo aristocrático, embora mais moderado que o dos Baquíadas, foi reinstalado.
Contudo, no período arcaico da Grécia Antiga (entre 900 a.C. e 500 a.C.) o que mais existiram foram tiranos. Um deles, Clístenes de Sicião, merece destaque por ter feito parte de uma longa dinastia de tiranos e explorado rivalidades e ressentimentos étnicos para manter-se no poder.
“Homens-Suíno”, “Homens-Porco” e “Homens-Rabo”: Clístenes ordenou que dessem estes nomes às três tribos estrangeiras que em tempos controlaram a sua cidade, uma humilhação destinada a explorar o sentimento de ressentimento da tribo a que pertencia
A civilização da Grécia Antiga estava dividida em quatro grandes grupos étnicos, cada um com a sua própria identidades cultural: os dóricos, os aqueus, os jónicos e os eólios. O aparecimento desta civilização, juntamente com as várias cidades-estado que a caracterizam, deu-se a partir do século XII a.C., no período de estertor da Idade do Bronze.
Antes dessa era, a antiga cidade-estado de Sicião, situada no Peloponeso (uma enorme península que fica no sul da Grécia) fazia parte da civilização micénica, a primeira civilização avançada e marcadamente grega que surgiu no Mar Mediterrâneo: há provas de que os povos jónicos, já nesta altura, estavam integrados no mundo micénico. No entanto, e por motivos que ainda não foram totalmente esclarecidos por historiadores e arqueólogos, várias e florescentes civilizações da Idade do Bronze que habitavam a orla do Mediterrâneo, incluindo os micénicos, começaram a colapsar no século XII a.C. – a do Antigo Egito foi uma das poucas que sobreviveu. (A título de curiosidade, sobre este enorme colapso civilizacional o historiador e autor Eric H. Cline, em entrevista ao SAPO, avança com possíveis causas.)
Foi durante essa altura que os dóricos, vindos do norte, começaram a migrar para o Peloponeso em sucessivas vagas, acabando por ocupar o território. Em contraste com povos que aí viviam, os dóricos falavam uma língua bastante diferente e tinham uma cultura menos sofisticada, mas tinham uma vantagem tecnológica decisiva: sabiam fabricar e empunhar espadas de ferro, mais fortes e resistentes que as de bronze.
Uma das cidades que invadiram foi a de Sicião, tendo ela ficado, nos séculos seguintes, sob jugo da cidade dórica de Argo. Basicamente, a população passou a ser constituída por membros de três tribos dóricas e uma tribo jónica (cultura que fez parte da civilização micénica), e apesar destes últimos terem privilégios iguais aos primeiros, eram os dóricos que controlavam a pólis.
No século VII a.C., após várias centenas de anos sob domínio dórico, coube a Artágoras, oriundo de uma família não-dórica, estabelecer um governo de tirania em Sicião com o apoio dos habitantes jónicos, tornando-a independente de Argo. Assim nasceu uma das mais conhecidas dinastias de tiranos. Todavia, sobre o surgimento deste governo tirânico há pouca informação que confirme o que se passou à época, ao contrário do que existe para Cípselo de Corinto
Mesmo assim, sabe-se que o neto de Artágoras, Clístenes, assumiu o poder como novo tirano em 600 a.C., tendo reformado o sistema tribal da cidade de forma a destruir a predominância dos dóricos. O historiador Heródoto refere, por exemplo, que ordenou que a sua tribo jónica passasse a ser chamada de “Governantes do Povo”, enquanto as restantes três tribos dóricas receberam os insultuosos nomes de “Homens-Suíno”, “Homens-Porco” e “Homens-Rabo”.
Existiu, claramente, uma exploração do ressentimento sentido pelos não-dóricos e pelas camadas desprivilegiadas em relação aos que se diziam de origem dórica – vistos como os invasores. No entanto, Heródoto nunca chegou a especificar que tipo de reformas tribais, além das desdenhosas mudanças de nome, foram mesmo efetuadas. Um contexto importante que é importante frisar: à época, este sentimento anti-dórico existia tanto em Sicião como na mentalidade de muitos gregos da época.
Pelo meio, Clístenes, considerado o tirano de maior sucesso da dinastia dos Artágoras (esteve no poder durante 30 anos), atacou a cidade dórica de Argos e proibiu em Sicião todas as canções homéricas que exaltavam os feitos dos heróis dóricos.
Em 556 a.C., contudo, o seu sucessor tornou-se no último da dinastia dos Artágoras, após ser expulso pelas tropas da cidade-estado de Esparta. Apesar desta pólis grega ter ficado na história pela cultura militarista da sua sociedade, a verdade é que à luz das leis de Esparta todos os seus cidadãos eram soldados, pelo que, em teoria, todos eram iguais, daí que fossem abertamente adversos a formas de governo assentes na tirania. A partir desta data, e nos quase cem anos seguintes, Sicião foi uma aliada de Esparta.
Os senadores da República de Roma mataram Júlio César à facada quando se declarou ditador vitalício, mas após a caótica guerra civil que se seguiu deixaram que o seu herdeiro se tornasse no primeiro imperador de Roma, um líder supremo e incontestável
Na Península Itálica, Roma começou como uma monarquia, mas o caminho até se tornar na maior potência da Antiguidade teve início em 509 a.C., quando se tornou numa república. Para os romanos, a monarquia podia facilmente degenerar numa tirania, sendo que os últimos reis de Roma foram bastante impopulares. A nova República de Roma definiu limites bastante claros quando à quantidade de poder que uma só pessoa poderia ter: a única exceção, e que servia como medida de emergência, era quando um dictator (termo em latim de que deriva a palavra ditadura) era escolhido e ficava com o poder absoluto durante o tempo máximo de seis meses. Um dictator era escolhido, por exemplo, quando Roma estava sob ameaça militar de um inimigo e era preciso fazer-lhe face de forma célere e eficaz.
O problema é que Roma expandiu-se continuamente e, em poucos séculos, controlava todos os territórios da orla mediterrânica, tendo chegado, inclusive, às ilhas britânicas e ao leste europeu – onde se tornaram famosas as campanhas contra as tribos germânicas.
No século I a.C., Roma era a maior potência do mundo conhecido, com um vasto território para gerir e um enorme exército para o defender e fazer crescer. Estavam criadas as condições para que generais fizessem fortuna através de guerras de conquista, ao mesmo tempo que podiam contar com a lealdade dos seus soldados: profissionais que eram pagos para combater. Conquistar o poder através da força militar tornou-se uma possibilidade para alguns generais.
O general Sulla – que fez carreira após lutar contra (e capturar) o rei da Numídia, no norte de África, sucesso a que juntou vitórias militares contra as tribos germânicas e, até, tribos itálicas que se tinham revoltado – acabou por entrar em Roma, com o seu exército, em 82 a.C., quando a república romana estava em estado de guerra civil. Os membros do Senado, intimidados pela exibição de força, elegeram-no dictator por tempo indefinido. Apesar de se ter demitido do cargo três anos depois, retirando-se do jogo político, o mote estava dado.
Em 46 a.C., Júlio César seguiu o exemplo de Sulla e entrou em Roma após vencer outra guerra civil que tinha eclodido, fazendo-se nomear dictator por um período de dez anos. O pior foi quando decidiu, passados dois anos, que afinal deveria ocupar o lugar vitaliciamente. Na prática, o poder que detinha fazia dele um monarca absoluto, fora de qualquer tipo de controlo por parte dos senadores e magistrados de Roma.
Historiadores e filósofos romanos, como Cícero, recorreram à definição grega de túranos para colocar em xeque a legitimidade de César para chamar a si o poder absoluto de Roma, chegando a defender que o tiranicídio (o assassinato de um tirano) tinha justificação moral, face a estes acontecimentos. Aliás, quando um grupo de senadores rodeou Júlio César e o matou com punhais, em 44 a.C., estes afirmaram que estavam a derrubar um tirano.
Seguiu-se uma nova e longa guerra civil que só acabou 13 anos depois, quando Caio Otávio, filho adotivo e herdeiro do assassinado Júlio César, derrotou todos os seus rivais. Apesar de estar numa posição que lhe permitia tomar só para si a ainda república romana, devido ao estado de caos em que estava Roma, sabia que a população e o Senado não aceitariam um novo pretendente a déspota.
Cautelosamente e ao longo dos anos seguintes, agindo como se não quisesse o poder absoluto, conquistou o apoio do Senado e dos responsáveis pelas tradições republicanas, criando a fachada de que Roma ainda era uma república. A realidade é que ele detinha o poder de dictator, mas manteve as instituições republicanas. O seu poder tornou-se virtualmente ilimitado, quase como um túranos, garantindo o apoio popular devido a medidas que criaram o desejado ambiente de paz e estabilidade, após anos de guerra e incerteza.
Ao mesmo tempo, promulgou um conjunto de leis que reformaram constitucionalmente Roma, transformando a República em Império, e Caio Otávio em Augusto, o primeiro imperador romano, consolidando para si um poder cada vez maior, incluindo a direção dos cultos religiosos.
Contudo, enveredar pela autocracia ou pela tirania parece ser uma via rápida para uma morte prematura. A crer num estudo científico publicado em 2019, na revista Nature, entre o governo de Augusto e o de Teodósio (morreu no ano de 395), 62% dos imperadores romanos foram vítimas de mortes violentas, sendo que, dentro deste mal-afortunado grupo, 79% foram… assassinados. Tal como escreveu o autor desta pesquisa, ser imperador romano era uma “ocupação bastante perigosa”.