São poucas as entrevistas que sobraram de José Afonso, um homem tímido, mas que, quando junto dos amigos, sabia soltar o seu bom sentido de humor, recorda quem com ele privou. Morreu aos 57 anos, em 1987, mas o que não faltam são relatos de quem partilhou, com ele, palcos (muitos deles improvisados e a troco de zero tostões), amizade e muita ‘fraternidade’, essa palavra que marca profundamente a música Grândola, Vila Morena. Curiosamente, José Afonso, inicialmente, não morria de amores pelo que se tornou depois o hino da Revolução dos Cravos.
Entremos na máquina do tempo e regressemos à noite de 29 de março de 1974. Grândola, Vila Morena é cantada no encerramento de um espetáculo no Coliseu de Lisboa, mas não era isso que estava previsto. Aquele era o I Encontro da Canção Portuguesa, organizado pela Casa da Imprensa, onde se cantaria e também se entregaria os prémios de imprensa de 1973. Em palco estava toda uma geração de músicos de intervenção que marcaram, profundamente, uma época que seria de transição política, social e cultural, desde o próprio José Afonso até Adriano Correia de Oliveira, passando por outros nomes como José Jorge Letria, José Barata Moura, Manuel Freire, Fernando Tordo, Fausto, Vitorino, Sérgio Godinho, José Mário Branco e até o virtuoso da guitarra portuguesa Carlos Paredes (membro do Partido Comunista), entre outros.
Pausa para um momento anedótico. Pouco depois do intervalo, momento de confusão com a entrada em cena do poeta Ary dos Santos, apupado por alguns membros da plateia devido às letras politicamente ‘subversivas’ que escrevia para tantos músicos, inclusive os que chegavam ao Festival RTP da Canção. Grande e imponente, até porque fisicamente também o era, não se deixa amedrontar e atira logo a matar: “Eu venho para dizer poesia. Se não gostam, manifestem-se no fim”. Segue-a a declamação do poema SIGLA, entre o qual se desfilam estrofes como: “Só salvamos a pele se formos cães de ricos. A palhota de mágoa; a casota de medo; mais o pão e a água; que nos dão em segredo. A gaveta arrumada; a miséria contida; mais a fome enfeitada; que há num dia de vida”. Estava a apontar a arma a um “poder que era bovino”, como disparou logo de início. No fim, o ruído ensurdecedor das palmas. Os velhos tempos, em Portugal, estavam mesmo a chegar ao fim. Faltavam as ‘trompetas de Jericó’ para derrubar a frágil muralha que rodeava a ditadura do Estado Novo – coisa que aconteceria pela força silenciosa das armas, menos de um mês depois.
Feito o parêntesis, voltemos a José Afonso e à sua música. Nessa noite, e tal como recorda o músico, escritor e jornalista (ele foi quase tudo) José Jorge Letria, durante uma entrevista, em 2013, ao Canal Cascais, surgiu a questão de qual a música com que se devia acabar o espetáculo no Coliseu. “O Zeca Afonso gostava muito de duas músicas para fechar, o Venham Mais Cinco e O Que Faz Falta, mas as duas estavam retalhadas, cortadas aos pedaços [pela censura]. A única que não tinha cortes era o Grândola, Vila Morena. O Zeca não percebia porque é que as pessoas gostavam tanto da canção. Achava que era uma canção lenta, que não tinha refrão. Mas como era uma canção que não tinha cortes, foi a que nós [os outros cantores que participaram no evento] colegialmente escolhemos para fechar. Portanto, cantámos todos aquela música, abraçados, sem instrumentos, fazendo daquele ruído dos pés no chão um coro alentejano”.
Quis o destino que, entre a plateia, estivessem vários militares que incorporariam o Movimento das Forças Armadas (o MFA), responsável pela insurreição que derrubaria o regime a 25 de abril. Foram precisamente eles que escolheram esta canção para ser a senha final que daria início a outros tempos. A música que, transmitida através do programa Limite da Rádio Renascença, quando passassem 20 minutos sobre a meia-noite, seria o último sinal para o arranque simultâneo de todas as operações organizadas pelo MFA. O resto faz parte da história de Portugal.
"José Afonso criou um hino à revolta e hoje – está-se mesmo a ver –, quando há qualquer coisa que o povo tem que fazer, aparece logo o Grândola, Vila Morena. De facto, é o hino da revolta das pessoas que têm razão e não têm outra maneira de o fazer, de o mostrar", frisa Arnaldo Trindade, em 2013, em entrevista ao Diário de Notícias. Ele, mais do que ninguém, sabe o que diz, pois trata-se do fundador da editora discográfica Orfeu, responsável, entre outros de José Afonso, pela gravação do álbum Cantigas de Maio, no qual se incluí Grândola, Vila Morena.
"Era um hino a um mundo novo, de revolta, mas uma revolta interessante, porque o José Afonso, apesar de ser um revolucionário, era um revolucionário idealista, utópico", volta a frisar ao jornal. No mesmo ano, mas para as câmaras de filmar do Canal Cascais, Arnaldo Trindade sorri com o facto de que a música “está cheia de subentendidos, mas foi autorizada pela censura”, aquando do espetáculo no Coliseu de Lisboa, a 29 de março.
“A mensagem do Grândola, Vila Morena não é uma de incitamento à luta ou à violência”, salienta o escritor e político José Manuel Tengarrinha, ao mesmo meio de comunicação. “É uma mensagem de fraternidade”.
Para José Jorge Letria, a música traz-lhe sempre à memória os tempos que passou com José Afonso, dos locais por onde passaram e cantaram, do sentimento de “fraternidade e desprendimento” que existia, “de um tempo que foi heroico” pela resistência à ditadura, conta na mesma reportagem. “O Grândola tem uma mensagem poética que é absolutamente intemporal, é de qualquer época: ‘o povo é quem mais ordena’, ‘terra de fraternidade’, ‘em cada esquina um amigo’. São frases que sintetizam muito, numa dinâmica social de mudança como a que estávamos a viver, o estado de espírito das pessoas quando querem estar juntas por uma causa, por um ideal”. Um fruto de um tempo em que “as bandeiras eram as canções”, resume.
Quem encontrar uma cópia do disco a vinil de Cantigas de Maio, encontrará a icónica canção no lugar da quinta faixa. O álbum foi gravado em Hérouville, em França, entre 11 de outubro e 4 de novembro de 1971, com arranjos e direção musical de José Mário Branco. É também no estrangeiro que a música é pela primeira vez cantada em público, na cidade espanhola de Santiago de Compostela, a 10 de maio de 1972. Um projeto difícil de parir, pois, por essa altura, o regime de Marcello Caetano já fazia pressões, inclusive junto de editoras, para tentar ‘cortar a voz’ ao cantor que nos daria um dos símbolos de abril.
E Depois do Adeus é a principal canção do 25 de abril para muitos militares da revolução
Antes da música de José Afonso, quando os ponteiros do relógio apontavam para as 22 horas e 55 minutos, na noite de 24 de abril, a rádio Emissores Associados de Lisboa dava o primeiro sinal (a senha), para as tropas começarem a preparar-se, com a canção E Depois do Adeus, de Paulo de Carvalho. Com letra de José Niza e composição do maestro de José Calvário, foi a grande vencedora da 12ª edição do Festival RTP da Canção, garantindo a sua presença, a 6 de abril, na cidade inglesa de Brighton, onde faria parte do Festival Eurovisão da Canção. Não obstante, Paulo de Carvalho mal imaginava que, passadas pouco mais de duas semanas, a música que tinha ficado em último lugar nessa competição da música ligeira seria a mais importante que as tropas do MFA alguma vez escutaram até àquele momento, ou que, quase meio-século depois, ainda se mantenha como um dos ícones da revolução.
Mas vamos aos factos. Nada de político existe ou se esconde na letra de E Depois do Adeus. A história que conta é mesmo sobre o amor e o desamor – esse velho e badalado tema – e centra-se em alguém que, em pleno sentimento de vazio interior, por ter perdido quem amava, reflete sobre o que é amar alguém e constata que as relações têm um início e um fim, cumprem um ciclo de felicidade e dor.
Contudo, para um soldado que desconhecesse o teor do que se cantava e ouvisse a música pela primeira vez, àquela hora da noite e sabendo o que ela iria desencadear, provavelmente pensaria que estava ali algo que colocava o dedo na ferida, a ferida causada pelo regime que mobilizou cerca de 150 mil soldados portugueses, entre 1961 e 1974, para combater nas colónias africanas. “Quis saber quem sou; o que faço aqui; quem me abandonou”, começa logo por cantar Paulo de Carvalho, pelo que é fácil traçar um paralelismo, induzido pelos sentimentos que o contexto político da época fazia aflorar. Já se sabe que todo e qualquer tipo de arte é sempre entendida de forma subjetiva, mesmo que a ideia do autor fosse outra.
A canção, mesmo assim, foi escolhida pelo MFA por ser muito popular à época, logo, não era passível de gerar suspeitas. E foi assim que a voz de Paulo de Carvalho levou o capitão Salgueiro Maia, mal a escutou, a preparar a coluna de militares e veículos que pouco tempo depois, após a segunda senha (canção), arrancaria de Santarém em direção a Lisboa, para tomar a capital e depor o governo de Marcello Caetano.
Outro parêntesis, desta vez para resumir o que realmente estava planeado para a noite de 24 para 25 de abril. Ao contrário do que comumente se pensa, a força militar comandada por Salgueiro Maia não era a ‘cabeça’ da sublevação, pois a sua missão, inicialmente, era a de servir de isco às tropas leais ao Estado Novo, desviando estas de pontos estratégicos que seriam tomados por outras unidades. Todavia, quando conseguiu entrar pelo Terreiro do Paço adentro, símbolo do poder político e onde se situavam muitos dos ministérios, incluindo os do Exército e da Marinha, a coluna da Escola Prática de Cavalaria acabou por ser a grande protagonista da revolução e Salgueiro Maia uma das suas principais figuras.
Voltemos às ondas de rádio. Inicialmente, ainda foi proposto que Grândola, Vila Morena fosse a primeira senha a ser transmitida, mas as músicas de José Afonso estavam “proibidíssimas pela censura”, disse João Paulo Dinis, então radialista dos Emissores Associados de Lisboa, a Otelo de Saraiva de Carvalho, o principal estratega das operações militares que iriam decorrer – relembrou o militar em 2011, durante um colóquio celebrativo do 25 de abril. Face ao aviso, coube a João Paulo Dinis emitir a canção de Paulo de Carvalho à hora combinada. A música de José Afonso só foi emitida quando já não havia forma de voltar atrás com a sublevação.
Também em 2011, José Niza e Paulo de Carvalho, no mesmo evento em que marcou presença Otelo de Saraiva, confessaram que, nos dias seguintes ao da deposição da ditadura, não se deram conta do papel importante que E Depois do Adeus acabou por ter no desencadear de tudo.
“Só me apercebi que tinha sido a senha uns dias depois. Porque a canção emblemática era o Grândola, que foi uma excelente escolha em termos de simbolismo. E Depois do Adeus era uma canção romântica que nada tinha de revolucionário”, admitiu José Niza.
Apesar de tudo, e a crer em Correia Bernardo, um dos capitães de abril, para muitos dos militares que entraram em ação naquele dia a canção de Paulo de Carvalho é a que mais perdura no seu imaginário. “Para nós, a canção do 25 de abril foi E Depois do Adeus. Duvido que, depois [dela], o Salgueiro Maia tenha ouvido o Grândola, porque havia muita coisa para fazer e era impossível estar agarrado ao rádio”, afirmou.
Em entrevista que deu à revista Blitz, igualmente em 2011, Paulo de Carvalho não tem problemas em admitir que, e ao contrário do que sucedia com José Afonso (que era 18 anos mais velho do que ele), não tinha no início da década de 1970 (quando estava na casa dos 20 anos) um pensamento político formado, isto apesar de ter entrado, por convite, em diversos Festivais RTP da Canção, onde muito do que vinha a concurso escondia, entrelinhas, críticas à ditadura.
“Sabia que as coisas estavam mal à minha volta, sabia que algumas das cantigas a que eu dava voz tinham segundos sentidos, mas nunca fui um lutador antifascista, nunca estive preso nem nada disso”, atira.
Curiosamente, ambos os cantores tinham como editora, nesse período, a Orfeu, à frente da qual estava Arnaldo Trindade. A diferença é que Paulo de Carvalho não tinha a censura do regime colada a si e a tentar sabotar a carreira.
Em 1975 é fundada a cooperativa Toma Lá Disco, editora que cavalgou a efervescência política que então se vivia, com nomes como Carlos Mendes, Fernando Tordo ou Ary dos Santos, e aos quais se juntou Paulo de Carvalho. Um período importante para o cantor, explica ainda à Blitz, em que se acreditava que a música podia mudar o mundo.
“Ainda acredito, como dizia o Zé [José] Mário Branco, que a cantiga é uma arma. Pode fazer muita mossa ou pouca mossa, mas há sempre alguém que é afetado, a quem a mensagem chega. Nós, os cantores, temos uma responsabilidade enorme.”