Plano? Que plano? Na mensagem de despedida que a Provedora da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) agora exonerada enviou aos trabalhadores, lamentando a forma "rude, sobranceira e caluniosa" como foi afastada de funções, Ana Jorge mencionava um "sólido plano de reestruturação" que fora constituído e estava em vias de ser implementado. Mas fontes conhecedoras da instituição, contactadas pelo SAPO, garantem que não havia qualquer plano de recuperação traçado para a Santa Casa, confirmando o principal motivo invocado pelo governo de Montenegro para a saída de Ana Jorge.
Talvez por isso, a Provedora que assumiu funções a 2 de maio de 2023, nunca tenha respondido aos pedidos de informação da ministra Maria do Rosário Palma Ramalho, que quis conhecer o trabalho que estava planeado. No despacho de exoneração de Ana Jorge, o governo invoca "atuações gravemente negligentes" na gestão e a inexistência de "um plano de reestruturação financeira" para fazer face ao "desequilíbrio de contas" que se verificara já há um ano, aquando da saída do anterior provedor. E refere a escusa da Provedora em prestar contas e dar informações pedidas pela ministra.
"Considerando a não prestação de informações essenciais ao exercício da tutela, nomeadamente, a falta de informação à tutela sobre o relatório e contas de 2023, mesmo que em versão provisória, sobre a execução orçamental do primeiro trimestre de 2024, bem como a ausência de resposta de os pedidos de informação até agora solicitados", lê-se no despacho publicado ontem em Diário da República, é exonerada a Provedora e toda a sua administração. Excetua-se a vice-provedora, Ana Azevedo, que já pedira para sair — pedido aceite também pelo governo.
Os pedidos de informação, relatam ao SAPO fontes conhecedoras, fazia sentido uma vez que, na pasta de transição, não existia qualquer menção ao tema ou informação sobre o dossier SCML.
Notícias publicadas nesta semana, na sequência da exoneração de Ana Jorge, davam conta de que o atual governo teria exigido à Provedora da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, em reunião com o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social de 12 de abril, um projeto a ser entregue em duas semanas. No entanto, garantem fontes próximas do processo, o que o governo quis saber foi simplesmente qual era o estado de execução do trabalho que estaria em aplicação.
A ministra do Trabalho, Segurança Social e Solidariedade, que tutela a instituição, "nunca exigiu um plano de reestruturação urgente". Mas um ano decorrido sobre a nomeação da Provedora não existia qualquer plano de reestruturação em execução, asseguram fontes conhecedoras, apesar da situação financeira preocupante e do estado de iminente rutura de tesouraria detetada em junho de 2023, no Relatório Financeiro Preliminar. "Tendo entrado em funções a 2 de maio de 2023, seria natural que nesta altura o plano já estivesse desenhado e até estivesse a ser aplicado, pondo-se em prática medidas de urgência para melhorar a situação financeira da instituição", consideram as mesmas fontes, que dizem que, um ano após o afastamento de Edmundo Martinho e sua substituição por Ana Jorge, apenas haviam sido tomadas algumas medidas avulsas, sem grande efeito.
Apesar do silêncio da Provedora, o governo terá deixado na mão de Ana Jorge a decisão de continuar. "Nem havia vontade política de fazer alterações executivas neste contexto, a urgência era resolver os problemas que estavam a afetar a capacidade assistencialista da instituição junto dos mais necessitados", garante ao SAPO outra fonte, que assegura que a exoneração foi precipitada pela própria Provedora após ter sido questionada pela ministra quanto ao trabalho desenvolvido. Num ano, "nada foi feito pela administração de Ana Jorge para inverter a dramática situação financeira" da instituição e a única coisa que se alterou "foi a ação social em Lisboa, para pior, pondo cada vez mais em risco o auxílio aos mais vulneráveis".
"Esta instituição estava a ser gerida consoante as vontades do dia-a-dia, não obedecendo a um plano estratégico e não existindo qualquer visão de futuro", relata ao SAPO fonte conhecedora da instituição, garantindo que não só não existia qualquer plano de recuperação financeira como também não fora desenhado qualquer plano de sustentabilidade para os mais de 6 mil funcionários da instituição, tão pouco fora ainda desenhada uma estratégia para rentabilizar os imóveis devolutos da SCML.
De acordo com a mesma fonte, do gabinete de Ana Jorge na Santa Casa não saíra ainda sequer uma ideia sobre fontes de financiamento alternativas aos Jogos Sociais nem se sentira necessidade de adequar este setor aos desafios decorrentes do crescimento do jogo online. "Ao optar por cancelar a operação de internacionalização, seria também normal que a Provedora tivesse pensando num caminho alternativo para diversificar as fontes de receita, mas não o fez", diz ainda, acusando a responsável de não tomar decisões e atirar responsabilidades pela sua inércia para a administração anterior.
A denúncia é feita por quem conhece bem a instituição e que lamenta um ano perdido que deixou a Santa Casa em ainda piores lençóis, depois de a pandemia e um processo de internacionalização dos jogos sociais conduzido por Edmundo Martinho ter deixado a SCML em graves dificuldades, podendo os prejuízos chegar aos 50 milhões de euros. E recorda que as contas de 2023 só foram positivas graças a uma "transferência-relâmpago de 34 milhões de euros, do Instituto da Segurança Social", que deu entrada numa altura em que os ordenados estariam já comprometidos. Esta transferência extraordinária, de acordo com a mesma fonte, "foi aprovada e processada em três dias e homologada pela ex-ministra" com a tutela da SCML, Ana Mendes Godinho.
"Ana Jorge conseguiu passar a imagem externa de que estava a pôr ordem na casa e que 'isso leva tempo', mas internamente o descontentamento era crescente e os funcionários encontravam-se cada vez mais desmotivados", adianta, apontando como exemplo o emagrecimento das estruturas de direção: em lugar dos 50 lugares a menos que a Provedora anunciou, foram subtraídos apenas 17 cargos dirigentes. De um total que se mantinha, em novembro, nos 540, passou-se, em março de 2024, a contar 523 cargos de chefia.