Dizem-nos que Trump é a causa deste terrível despertar europeu, em que um continente complacente acorda para a realidade da História. Na verdade, os europeus foram avisados sucessivas vezes pelo seu aliado americano, e pelo resto do mundo, de que todo aquele plano com que seduziram os seus eleitorados durante anos estava prestes a esgotar o seu prazo de validade.
O plano era simples e politicamente sedutor. A Europa fingia que não tinha problemas de segurança que exigissem a existência de forças armadas eficazes, e muito menos a disposição cultural para defender pela força das armas a sua independência e a sua liberdade. Fingindo, a Europa podia dedicar-se não só a gastar os seus recursos financeiros em despesa social, como a dar prelecções ao resto do mundo belicoso e violento sobre quão doce era viver na vanguarda da História, onde todos esses problemas humanos como a soberania, as fronteiras, a defesa face a inimigos, tinham sido deixados para trás de uma vez por todas. Evidentemente, este fingimento pressupunha a protecção americana perpétua e infalível.
Com Obama, a política americana, ansiosa por se livrar do pesadelo das guerras de intervenção no Médio Oriente, passou a focar-se cada vez mais num novo inimigo e na sua rede tentacular: a China. E isso implicava uma transferência de encargos e responsabilidades para a Europa. O que Obama começou por fazer amigavelmente e sem pressas desmedidas, Trump resolveu fazer à bruta e sem grandes cortesias. No primeiro mandato os avisos foram ríspidos. Neste início de segundo mandato, e com uma gravíssima crise de segurança provinda da Rússia mas também do islamismo radical infiltrado nas comunidades muçulmanas europeias, os avisos são aparentemente definitivos e converteram-se em ameaças.
A reacção dos políticos europeus foi a de choque e de escândalo. Não lhes ocorreu que esta era a enésima oportunidade concedida à Europa para assumir responsabilidades que são inequivocamente suas e assumir custos que têm de ser seus. Macron, liderando o bando de inexistências políticas europeias, com a sua habitual e esgotada grandiloquência, não se lembrou de fazer um balanço honesto da iniciativa europeia de 2017 chamada “cooperação estruturada permanente” em matéria de defesa, anunciada então com todos os truques retóricos de mudanças histórico-universais. Ninguém reconheceu que ano após anos todos os Estados-membros da UE praticamente sem excepção se tornaram especialistas a vigarizar as contas exigíveis dos gastos em defesa – os famosos 2% do PIB em despesas globais com a defesa e os convenientemente esquecidos 20% dessa despesa em equipamento militar.
A Alemanha deu o exemplo da desistência e da má-fé, e nem a crise da Ucrânia, aproveitada por políticos alemães comprometidos com o pântano em que a Europa caíra para fazer declarações tão pomposas quanto vazias, a fez mudar de vida. Em Portugal, os sucessivos governos de António Costa distinguiram-se na única coisa que lhe importava: a arte de proclamar como feito o que não se tinha a mínima intenção de fazer. Um exemplo: em 2019 o governo português apresentava à NATO o número de 1,37% do PIB gastos em Defesa. Ficava-se aquém das metas, mas como não se ficava flagrantemente longe da média europeia parecia que tudo estava bem – no mundo que estava prestes a acabar. Porém, uma análise mais fina às contas desse e dos anos anteriores mostrava que, uma vez descontados todos truques e artimanhas contabilísticos, o nível efectivo era inferior a 1%. Mais exactamente, os gastos com a defesa nacional perfizeram 0,93%.
Foi esta farsa que acabou abruptamente nas últimas semanas. Ouvir os ministros das Finanças, o actual e o anterior, dizer, como de resto dizem muitos dos seus congéneres europeus, que na realidade aumentar o investimento em Defesa não comporta qualquer redução nas áreas sociais, como se os recursos fossem infinitos, como se os múltiplos PRR do futuro (isto é, mais dívida) fossem uma espécie de milagre da abundância, e sobretudo como se não houvesse escolhas políticas a fazer, mostra à saciedade que o problema da Europa é, desde logo, político antes de ser outra coisa qualquer.
Escreve no SAPO quinzenalmente à terça-feira//Miguel Morgado escreve com o antigo acordo ortográfico