"Os números sobre criminalidade desmentem em toda a linha o governo e até o presidente da Câmara Municipal de Lisboa." A frase foi amplamente repetida por todo o tipo de intervenientes, partidos políticos incluídos, e colheu — até hoje. A agressão bruta a um ator, levada a cabo por um indivíduo com ligações a um grupo criminoso, dominou as atenções e provocou uma inversão de 180 graus no discurso generalizado. E bem. O problema é que continua a olhar-se a violência não como sintoma de um problema maior e crescentemente generalizado mas como tumor localizado no seio do extremismo de direita, nas suas matizes de discurso de ódio, discriminação, nacionalismo radical.
Não se compreende como é que se continua a descartar a gravidade dos episódios de violência e agressão como meras "perceções" que contradizem os números oficiais quando ela se revela noutros grupos. Porque desta vez as vítimas não foram adeptos anónimos ou polícias a zelar pela segurança pública e os "selvagens" não eram membros de claques de futebol ou supostos traficantes, mas extremistas de direita, relançou-se todo o debate — infelizmente, inquinado à partida, perdendo-se o comentário já entre discussões sobre racismo, imigração e a insistente vontade de alguns de proibir na secretaria o que não lhes agrada na sociedade.
O tema aqui é o crime de violência. E a verdade é que os mesmos que hoje se chocam, e bem, com a agressão ao ator d'A Barraca, a começar pelos líderes políticos, são os que não levantaram a voz para comentar o duplo atropelo a um agente da PSP há uma semana, tão pouco reagiram às agressões de claques que ainda há um dia deixaram quatro adeptos do FC Porto feridos com gravidade. Tudo isto aconteceu em Lisboa, onde "a criminalidade até diminuiu" e "não há razão para alarmismos". Os exemplos são incontáveis, cada um deles ignorado ou desvalorizado com o argumento de que "Portugal é um país seguro", como mostram os números do Relatório de Segurança Interna (RASI).
O caso que fez o dia devia merecer resposta rápida e exemplar. Da mesma forma que os outros. Parece, porém, que hoje só alguns crimes são merecedores de indignação. As agressões diárias de extremistas climáticos são vistas com uma certa bonomia e a leveza das condenações, quando as há, comprovam essa brandura com que se olha pessoas que agridem outras, quando a causa é o ambiente. Os ataques selvagens motivados pelo futebol só merecem a reação devida quando alguém morre. E se as vítimas dos crimes são figuras de autoridade, nem isso.
Não é que uns crimes justifiquem os outros. É exatamente o contrário. Não há nisto graduação possível: um criminoso, alguém que viola a lei e ataca ou põe em risco a integridade física de outra pessoa, tem de ser julgado e punido com celeridade e inflexibilidade. Não há que alterar leis, não há que proibir certos discursos ou limitar a expressão com a criminalização de certos discursos (alguém já prestou atenção às letras das músicas que passam na rádio em língua portuguesa?) — esse caminho que alguns se apressam a apontar é o primeiro passo para alimentar fogueiras extremistas e queimas de livros e de bruxas, como bem pode atestar o humorista brasileiro que acabou de ser condenado a oito anos de prisão.
Há que fazer cumprir a lei. Ponto. E parar de desvalorizar a barbárie, qualquer que seja a sua forma ou as causas com que se identifica quem a pratica, sob pena de se ratificar crimes apenas porque alguns lhes encontram uma certa justiça mais ou menos poética. Lembremo-nos que as opiniões cuja expressão hoje se quer limitar podem estar em minoria já amanhã.
Acontece que hoje parece que há apenas uma origem para todo o mal: os grupos de extrema-direita. Faz-se julgamentos públicos seletivos em que a maioria dos criminosos, tendências e grupos são esquecidos em nome de um "inimigo maior", o radicalismo de direita, matizado em racismo, nacionalismo, nazismo e outros ismos.
Enquanto se discute o "capítulo apagado" do RASI sobre uma fação específica da extrema-direita, omite-se deliberadamente que o crescimento de ideais extremistas de direita continua a estar expresso no relatório, uma preocupação que é referida pelo "acentuado dinamismo" espalhado por via digital sobretudo entre os jovens e com "apelo explícito à violência". E faz-se orelhas moucas aos episódios de "vandalismo (...), tensão e violência no espaço público" provocados por "diversos setores da extrema esquerda". Enquanto se alimenta a indignação sobre os crimes alimentados a ódio, faz-se por ignorar que a criminalidade grupal e a delinquência juvenil (15-24 anos) vêm subindo a pique, tendo estes praticamente duplicado os registos em cinco anos e atuando os criminosos sobretudo na Área Metropolitana de Lisboa, com "dinâmicas associadas a rivalidades entre grupos oriundos de diferentes zonas ou bairros", espalhadas maioritariamente pelas redes sociais. Enquanto se discute as virtudes e pecados de uma mais profunda caracterização de criminosos e vítimas, nomeadamente identificando nacionalidade, género e idade (uma tipificação a que a esquerda se opôs ferozmente, apesar de só não existir em seis outros países da UE), não se dá importância à expressão que um dos maiores grupo criminosos internacionais (o PCC) tem já em Portugal ou ao facto de, num só ano, o peso dos homicídios sem qualquer relação entre vítima e criminoso ter subido de 43% para 63%.
A verdade é que os números dão para todos os gostos e muitas vezes não traduzem a experiência de quem vive a realidade. O facto de ter havido menos um homicídio em 2024 do que no ano anterior (90) vale muito pouco para aqueles que veem o crime de violação subir 10%, para o valor mais alto da última década, para as vítimas e para quem as conhece. Da mesma forma que o ator agredido e os seus colegas não se consolarão pelo facto de ter havido mais de 14 mil crimes graves e violentos mas a criminalidade geral até ter descido 4,6%.
Quando é de crime que se fala, não se pode ter palas ideológicas. Há que fazer prevalecer a justiça, com eficácia e rapidez — as leis existem e são mais do que adequadas, assim sejam exemplarmente aplicadas. Embarcar em delírios proibicionistas ao sabor das indignações do dia é dar combustível ao totalitarismo e à violência.