O obreiro da geringonça pode ter memória fraca e por isso não se recordar que foi o PS que, com Sócrates, em 2010, começou a cobrar a passagem por todas as SCUT e que as manteve com custos para o utilizador durante os nove anos de governo de António Costa, de que o negociador da geringonça fez parte, rejeitando, sempre que o tema vinha a debate, a possibilidade de perder aquela receita, por muito que custasse a quem morava por ali ter de pagar sempre que se servia daquelas estradas.
Mas o artífice da geringonça descobriu uma vocação: montar estranhos engenhos que o ajudem a sobrevoar quaisquer obstáculos para conseguir chegar a intentos quando a ordem natural das coisas lhe veda o caminho.
Bruscamente arrancado ao sonho de voar quando a indemnização milionária que aceitou pagar a uma administradora da TAP fez borregar o percurso de ministro, encontrou-se nas nuvens quando um golpe de sorte o projetou prematuramente à liderança do partido. E depois de sobreviver a desastres como um plano de aeroporto implodido, uma revolução por cumprir na ferrovia ou um plano de habitação feito de casas de papel, não havia de ser uma mera derrota eleitoral que o havia de deixar em terra.
O primeiro sinal, devíamo-lo ter visto, chegou logo na noite eleitoral, quando o obreiro que tão acerrimamente defendera o cancelamento dos perigosos extremistas de direita veio admitir que talvez, afinal, aquilo fosse gente boa e que tudo faria por ajudar a cumprir-lhes os sonhos.
"Renovaremos o partido e procuraremos recuperar os portugueses descontentes" foi a frase que desbloqueou um novo rumo. A tradução só agora começa a ficar clara: seria tolice desprezar a vontade de mais de um milhão de votos expressos, quando podia aproveitá-los em seu favor. E se bem o pensou, não tardou a avançar com essa capitalização, montando uma passarola que nem nos mais loucos devaneios o próprio Bartolomeu de Gusmão podia imaginar concretizável.
"O PS não ganhou as eleições, não deixará a liderança da oposição para o Chega”, disse ainda, sem que quem o ouvisse imaginasse nessas palavras a intenção de uma aliança implícita, sem que se escutasse como os parafusos que teimavam em não encaixar eram martelados à força para dar forma à passarola que projetaria a sua sombra sobre o executivo em funções. E Ventura, abandonado em terra, não recusou a boleia. Primeiro foi o IRS que os juntou, agora o fim das portagens nas ex-SCUT, mas muito mais caminho há para desbravar a bordo do estranho engenho que vai fazendo caminho acima do programa escolhido pelo voto, encaixando-se pela força da oposição ao governo as vontades que nos convenceram ser inconciliáveis.
Pedro Nuno e André Ventura continuarão a negar andar de mãos dadas, mas estão cada vez mais próximos a pairar num plano em que as decisões se tomam sem arcar com as consequências. Essas serão pagas por quem sempre paga a fatura. A passarola não é uma vaca voadora, mas promete fazer tantos estragos como uma manada a correr desgovernada pela cidade.
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