Esta semana participei na 3ª Conferência anual dedicada ao "Public Value" realizada no novo edifício do ISCTE, situado no eixo de aterragem dos aviões no aeroporto da Portela que atravessam a cidade universitária. Curiosamente e durante todo o evento não se ouviu um único ruído…dos aviões nem de qualquer outra coisa. A engenharia civil produz estes milagres que, na realidade, já existem há décadas! No início deste século, vivi dez anos mesmo em frente aos mais de trinta carris ferroviários da estação central de Zurique, na Suíça. Ao alugar um apartamento naquela zona da cidade assumi o compromisso de viver com os possíveis ruídos dos caminhos-de-ferro, ainda que dentro de casa não se ouvisse absolutamente nada. Abrindo as janelas, tudo mudava: a cidade, com todos os seus sons, invadia o meu espaço, mas isso fazia parte do pacote que eu aceitei ao viver num local central, com transportes públicos para todo o lado e a toda a hora, com lojas, pessoas e um movimento frenético. E essa era a vida que eu queria. Com o crescimento da população, a estação central tornou-se um verdadeiro colosso e obviamente a cidade não se desfez da sua infraestrutura, nem ponderou a sua deslocalização, nem sequer projetou “enterrar” as vias-férreas como acontece em tantas outras cidades europeias para libertar o espaço à superfície. Acompanhei também a evolução das próprias locomotivas que são hoje mais silenciosas apesar de maiores.
Esta conferência sobre o "Public Value" fez-me refletir sobre as engenharias civil e aeronáutica e como a sua evolução nos permite estar hoje em edifícios onde o ruído externo não nos incomoda. Enquanto observamos as melhorias no aeroporto da Portela, enquanto testemunhamos o levantar do boicote organizado pelo anterior governo que impedia o seu aproveitamento eficaz, com abertura de novas rotas, de mais frequências e com novos “slots” distribuídos a mais companhias aéreas, o investimento de milhares de milhões de euros numa "nova" infraestrutura aeroportuária parece cada vez mais desnecessário. Perante esta evidência, cresce cada vez mais “barulho” sobre o ruído e sobre o perigo do atual aeroporto com o objetivo de apressar a construção do “novo”. Não tenho dúvida alguma que já terão morrido mais pessoas atropeladas em Lisboa do que em qualquer incidente ou acidente aéreo, apenas lamento não existir ninguém que defenda acabar com as estradas e com os carros na cidade, algo que obrigaria a repensar toda a nossa mobilidade para muito melhor. O barulho humano nos locais noturnos, que se multiplicam e que se transferem para novas zonas da cidade, é insuportável para o sono, mas também aí a solução não tem passado por “deslocalizar” os espaços de divertimento noturno para uma periferia vazia e isolada. Que tal fazer um “hub” de discotecas e bares em Alcochete e, já agora, levar para lá o barulhento e inútil elétrico 28? O que se faz nestas situações é conciliar, criar compromissos, regulamentar, cumprir e fiscalizar. E quem procura outra coisa para a sua vida, a porta é a serventia da casa.
A todos aqueles que compraram casa no bairro de Alvalade ou na Alta de Lisboa sonhando que um dia o aeroporto sairia dali, aceitem que isso não acontecerá. Exijam taxas mais altas para aviões mais ruidosos, de forma a encorajar as companhias a utilizarem os já existentes aviões mais modernos e silenciosos nos voos para Lisboa; apoiem firmemente o fecho noturno rigoroso do aeroporto, tal como existe em Zurique, Londres-Heathrow ou Frankfurt: entre as 23h00 e as 06h00, ninguém descola, ninguém aterra. Às organizações "ecologistas" que apoiam o desperdício de dinheiro público na construção de um mega-aeroporto sobre o maior lençol de água da Península Ibérica, que, no final, gerará ainda mais emissões de CO2 e que estimulará uma agenda de crescimento fóssil, por favor atualizem a vossa agenda “ambiental” parada nos anos 80! Aos decisores políticos: adotem o caminho da tecnologia. A aviação prosperou apenas por ser, há décadas, o meio de transporte mais rápido. Sempre que surge outro – como o TGV ou o Eurostar e outros que estão por surgir – a mudança é natural e veloz e, quando essa altura chegar, ninguém precisará de um aeroporto obsoleto, mas os milhares de milhões já estarão gastos.
Regresso à conferência. De facto, o “Public Value” é um conceito académico moderno muito praticado no norte da Europa que nos ajuda a defender e tomar decisões que equilibrem o desenvolvimento, o bem-estar da população e a sustentabilidade. O “Public Value” coloca a nossa visão focada no futuro, na tecnologia, nas prioridades de ação pública e no seu custo-oportunidade e obriga-nos a encontrar soluções que não comprometam o futuro. Nestas decisões a cem anos, temos o dever de escutar e agir com base no silêncio dos inocentes das gerações futuras.
Docente em Sistemas de Transporte e consultor em aviação, aeroportos e turismo