Cumprida a eleição, há duas verdades inabaláveis. A primeira é a vitória absoluta de Trump, que consegue a Presidência com um resultado inquestionável, ganha o Senado e vence o voto popular, não restando qualquer margem para ser posto em causa (o que ajuda a explicar o choque e o prolongado silêncio da adversária democrata). A segunda é que a América permanece irremediavelmente dividida: são 51% dos americanos literalmente contra 48% (os pozinhos que restam estão com independentes), no bolo dos que são adeptos (é mesmo assim, "adeptos") políticos ativos.
Ninguém arriscou antecipar um vencedor quando todas as sondagens pouco se desviavam do empate, mas o comentariado estava intrinsecamente convencido da vitória de Kamala e foi cavalgando essa convicção conforme a sala de espetáculo que sempre foi o palco político americano fazia desfilar artistas e trunfos políticos e despejava generosos donativos sobre a campanha, tornando cada vez mais histriónico o exército azul.
Acontece que barulho, luzes e brilhos não significam votos. Ainda menos quando a inflação tolhe a vida dos americanos. E por muito que a incredulidade vingue cá fora, a vitória de Trump — a esmagadora vitória de Trump, ainda que nuns Estados Unidos partidos ao meio — não é, de facto, surpreendente.
Surpresa, e talvez indício de uma governação muito mais virada para o futuro, foi o solo de Donald Trump virar palco partilhado por iniciativa própria, puxando o seu vice para a primeira linha do discurso de vitória. JD Vance, nascido no pior da América e que venceu a sua condição para se tornar advogado, rico, influente, best-seller. JD Vance, 40 anos acabados de fazer, casado com uma californiana filha de imigrantes indianos, pai de três filhos, símbolo. JD Vance, republicano dos tempos modernos, exemplo do vigor que continua a ter o sonho americano, e que tem caminho aberto para ganhar espaço nos próximos quatro anos e afirmar a hegemonia republicana nos Estados Unidos.
Será Donald Trump capaz de fazer a passagem de pasta? Veremos. A verdade é que já conseguiu o que queria — esta vitória é dele, conquistada à força da teimosia depois de ser corrido da Casa Branca, cancelado pelo seu partido e diariamente humilhado e atacado pelo seu país.
Não, não é porque Trump espalhou mentiras e ofensas pelas redes sociais. Kamala teve tanto ou mais acesso quer a redes sociais quer aos meios de comunicação tradicionais, beneficiando até de declarações de voto de alguns dos títulos mais reputados do mundo. Simplesmente, uma mensagem só surte efeito naqueles que a entendem e cujas premissas aceitam.
Kamala Harris entrou tarde, à força da urgência de substituir Biden a todo o custo, e mal na corrida, ao contrário do que as aparências faziam crer. Concentrando-se na vantagem que ser mulher e negra podia trazer-lhe, esqueceu-se de hispânicos, nativos-americanos, asiáticos, mas também trabalhadores do "operariado". Ao ensaiar um centralismo que não lhe é natural, perdeu árabes e judeus. Hostilizou boa parte dos homens, também negros (metade votou republicano), numa sociedade em que eles (homossexuais incluídos) veem no feminismo um ataque à sua condição. Ignorou as angústias dos jovens e ofendeu muitas mulheres (católicas, protestantes, hispânicas) para quem "direitos reprodutivos" se traduz por ataque à família e ao direito à vida. A "prioridade" anunciada para uma administração Kamala do "aborto legal para todos" chegou bem a muito poucos.
Mas mais importante, ainda com um pé na Casa Branca, onde quase ninguém a viu em quatro anos como vice-presidente, a candidata pregou a "mudança" mas mostrou-se disposta a prolongar ou intensificar medidas que têm ajudado a manter a economia enfraquecida e os americanos em perda de poder de compra. Com uma agravante: tentar vender um Estado omnipresente e paternalista ao país que tem na base do seu ADN a capacidade individual. No sonho americano não há espaço para o socialismo europeu. Nem há na América profunda espaço para a agenda woke a que os democratas foram cedendo, perdendo rumo.
O novo presidente, em contrapartida, com os chavões a que se insiste em chamar simplistas — "recuperar o sonho americano", "tornar a fazer uma América gloriosa", "enriquecer de novo os americanos" —, falou ao coração da América, à própria identidade de um país quase continente que cada vez tem menos pontos de união. Tudo o resto — insultos, ofensas e asneiras — faz parte da star quality que o projeta na popularidade e lhe dá o estatuto especial de teflon (nada cola, é imune a tudo quanto é mau). A maior prova da convicção de que é capaz de cumprir? O dólar teve a maior subida diária em mais de um ano. Os mercados financeiros dispararam — mesmo as bolsas europeias. A bitcoin bateu recordes. A banca valorizou-se.
Trump pode ser mau para a Europa — provavelmente, sê-lo-á, por razões que vão da incerteza sobre o apoio americano à Ucrânia ao protecionismo económico que redundará em taxas agressivas a importações que atravessem o Atlântico rumo aos EUA —, pode preocupar o mundo pela imprevisibilidade do seu caráter e por "amizades" pouco consensuais. Mas a sua última passagem pela Casa Branca resultou em pujança económica e foi uma das raras presidências em que os EUA não se envolveram em conflitos armados. Mais relevante: Donald Trump não governa para a Europa, será presidente dos Estados Unidos. E para a maioria dos americanos, o que defende faz sentido e é benéfico. América, primeiro. O regresso à Agenda americana.
Uma nota ainda para a sustentabilidade: mais de metade da energia gerada dos EUA tem origem fóssil (carvão, petróleo e gás natural), a que se somam o nuclear e as renováveis, numa contribuição de cerca de 20% cada. Num país que é energeticamente independente e até tem excedente de produção, sendo altamente industrializado, um discurso de descarbonização radical não colheria nem com Trump nem com Kamala, e certamente não resistiria à escalada de preços e perda de conforto na sociedade americana.
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