Era mesmo para rir -- só podia ser. E o Parlamento respondeu à medida ao mui eficaz momento de comic relief que foi a intervenção de Pedro Nuno Santos no debate do Programa do Governo, enquanto rasgava as vestes pelos portugueses, aplaudido de pé pela sua bancada como se não tivesse sido precisamente o PS a governar este país durante quase uma década (com colinho da extrema-esquerda em boa parte desse tempo) e até há uma semana.
Quem ouvisse Pedro Nuno, carregando no peito a vontade de fazer coisas que nele despertou desde que o seu governo caiu de podre e de falta de vergonha, não desconfiaria que o próprio foi determinante na criação e suporte da geringonça que projetou António Costa e o PS ao poder. Ou sequer que ele mesmo teve em mãos pastas como o novo aeroporto, que os últimos nove anos de socialismo empurraram na estrada da indecisão e do empate mas que agora quer ver solucionado "em semanas"; ou a TAP, que o antigo ministro ajudou a nacionalizar -- endossando cortes de salários, de operação e despedimentos -- e cuja privatização passou a defender há um par de anos, ainda que há quatro dias tenha assumido que provavelmente não a deixará passar.
Ninguém desconfiaria sequer, escutando como lhe dói a dificuldade dos jovens para terem uma casa sua, que andou oito anos a repetir os mesmos anúncios de criação de novas moradas que nunca viram a luz do dia, com o reforço do pilar da habitação a não ir além da criação de uma pasta da Habitação no governo -- mais despesa, zero resultados que mostrar.
Caso clínico de perda de memória ou mesmo múltipla personalidade, ouvimos agora a Pedro Nuno que tudo fará para manter os "serviços públicos universais, de qualidade e tendencialmente gratuitos". Isto vindo do líder do partido que destruiu o SNS e levou à maior subida nos gastos dos portugueses com a saúde (até endividando-se para contratarem seguros) -- sem resposta pública e com a despesa e a suposta reorganização do SNS a produzir apenas caos e ineficiência, a trazer insatisfação e fuga de profissionais de um setor público que os desprezava, as famílias viram-se sem remédio que não fosse virarem-se para o privado para garantir o serviço que o Estado social deste socialismo apoiado pela extrema-esquerda deixou de lhes garantir. (Esperemos bem que, como disse Pedro Nuno Santos, os planos para a saúde sejam mesmo "uma área que separa bem a direita e o PS".)
O momento de humor continuou. Depois de se queixar que não estava para continuar a aprovar as medidazinhas e salvar a pele daqueles que venceram as eleições, o líder socialista veio pedir que lhe aprovassem as suas, nomeadamente cinco em que faz mesmo muita questão. Nelas se inclui o IVA reduzido ao mínimo na luz e o fim das portagens nas SCUT. E aí é que ninguém pôde mais conter o riso.
Desde logo, claro, pela defesa da redução do IVA para a eletricidade, que os socialistas sempre defendem quando são oposição, mas que nunca implementam quando governo -- Costa, que apenas o admitiu e com grandes limitações durante a megainflação de 2022, afirmou mesmo ser uma ideia "irresponsável", até do ponto de vista ambiental ("não podemos definir o combate às alterações climáticas como prioridade e depois dizer que reduzir o IVA sem critério é uma grande medida", disse).
Mas o que fez mesmo rebentar um coro de gargalhadas foi a insistência no fim das portagens que o PS criou com Guterres, em 1997, manteve durante 20 anos de governos dele, de Sócrates e de Costa, e que os socialistas só se lembraram que era "uma grande maldade feita a grande parte do território" mais ou menos pela mesma altura em que desistiram da inamovível vontade de subir o IUC para carros antigos.
Comédia à parte, a primeira prova de Luís Montenegro revelou bons ventos a soprar de São Bento. Uma semana após a tomada de posse e tendo sobrevivido a duas moções de censura promovidas pela extrema-esquerda -- com uma triste dúzia de votos a favor, reveladores de que aqueles partidos ainda não entenderam que o país rejeitou a sua proposta a 10 de março, que deixou de acreditar e confiar em quem contribuiu, com o apoio expresso aos governos de António Costa, para a perda de qualidade de vida dos portugueses, para o caos a que chegaram os serviços públicos e para a destruição da economia --, o líder social-democrata revela a confiança de um primeiro-ministro experimentado.
Não apenas manteve a fibra e a civilidade em dois dias de debate como se mostrou aberto ao diálogo, incluindo no seu Programa 60 medidas propostas pelos partidos da oposição -- por todos eles, beneficiando a validade das medidas em detrimento da partidarite e da arrogância que marcaram as governações mais recentes. E fê-lo sem ceder naquilo que marca o mandato que lhe foi confiado pela vitória eleitoral, sinalizando já ao que vem, fosse com a reversão de palermices como o logótipo que omitia da imagem do Estado português os símbolos nacionais fosse ao não perder tempo a anular o absurdo sovietizante que marcava todo o pacote Mais Habitação (desde a ocupação de propriedade privada à penalização de uma área de atividade como o AL, que recuperou e revitalizou as nossas cidades e pôs algum dinheiro extra no bolso de muitas famílias).
Diretora Editorial do SAPO