No século XX, as guerras foram sobretudo ideológicas. A batalha travava-se entre modelos políticos, económicos e sociais: liberalismo contra comunismo, democracia contra totalitarismo. Foram tempos de clivagens claras, definidas por fronteiras, tratados e bandeiras. Mas no século XXI, os contornos da guerra estão a mudar. A paisagem política global já não é tão dominada por ideologias claras rivais, mas cada vez mais por civilizações com identidades profundas e muitas vezes incompatíveis.
Em 1996, Samuel Huntington publicou o seu ensaio O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial, onde propunha que as próximas grandes linhas de conflito não seriam ideológicas, mas culturais. Segundo Huntington, o mundo estava a reorganizar-se em blocos civilizacionais: o ocidental (que inclui os EUA, o Canadá e a Europa), o latino-americano, o islâmico, o africano subsaariano, o russo, o hindu, o sínico (centrada na China e nalguns países vizinhos), o nipónico e outros. A sua tese foi, na altura, criticada por simplificar realidades complexas. Mas hoje, quase três décadas depois, o mundo parece estar perigosamente mais próximo daquilo que Huntington previu.
O conflito na Ucrânia é um exemplo: não é apenas uma guerra territorial, é também um choque entre a civilização russa, com o seu legado imperial e ortodoxo, mas também soviético e autoritário, e a civilização ocidental, com os seus valores democráticos e liberais. O mesmo se aplica ao aumento das tensões no Indo-Pacífico, onde a China, como potência sínica, desafia a hegemonia ocidental com um modelo civilizacional próprio, marcado por uma concepção distinta de autoridade, liberdade e desenvolvimento. O mundo islâmico continua a ser palco de convulsões que, em parte, resultam da dificuldade em compatibilizar sistemas culturais e religiosos com os padrões ocidentais.
Um dos exemplos mais visíveis deste embate civilizacional é o conflito persistente entre Israel e a Palestina, que envolve não apenas uma disputa territorial, mas um choque profundo entre duas identidades nacionais e religiosas distintas: o judaísmo e o islão. Este conflito, que já atravessa gerações, é muitas vezes ampliado por tensões com outros países islâmicos que não reconhecem a legitimidade do Estado israelita e que encaram a sua presença como uma afronta ao mundo muçulmano. Para além das guerras convencionais, trata-se de um embate simbólico e cultural, onde as narrativas históricas, as práticas religiosas e os sentimentos de pertença entram em colisão. Este é mais um exemplo de como, no século XXI, a religião e a cultura voltaram a ser motores centrais do conflito geopolítico.
O mais inquietante é que estes choques não se dão apenas entre territórios, mas dentro deles. Em muitos países europeus, como França, Alemanha, Suécia ou Bélgica, as migrações em massa estão a colocar em evidência as tensões entre valores civilizacionais distintos. Não se trata apenas de questões económicas ou de integração social. Está em causa uma incompatibilidade mais profunda, que envolve visões opostas sobre o papel da religião, os direitos das mulheres, o respeito pelas minorias, a liberdade de expressão ou a relação entre o indivíduo e a comunidade.
Quando, por exemplo, uma jovem francesa é assassinada por se recusar a usar o véu, ou quando bairros inteiros de cidades europeias se tornam "zonas de não-direito" onde a lei do Estado não entra, não estamos apenas perante falhas na integração. Estamos a assistir a um embate entre formas distintas de entender o mundo e a vida em sociedade. Huntington chamaria a isto um microchoque civilizacional, dentro do próprio espaço europeu.
A Europa, durante muito tempo, viveu da ilusão de um universalismo civilizacional. Acreditou que os seus valores iluministas seriam progressivamente adoptados por todos. Apostou na globalização como forma de espalhar o seu modelo. Mas o que estamos a ver é o inverso: civilizações inteiras a resistirem, a afirmarem-se e a devolverem o desafio ao Ocidente. A China propõe uma ordem internacional alternativa. A Rússia usa uma ideia de cultura russa e cristianismo ortodoxo como arma ideológica. O mundo islâmico exige respeito pela sharia e pelas suas tradições. A Índia recupera um nacionalismo hindu cada vez mais assertivo. Até em territórios outrora vistos como relativamente homogéneos, como os EUA, vemos hoje uma fragmentação interna que coloca em causa a sua unidade civilizacional.
O problema não é a existência de diferenças. O mundo sempre foi diverso. O problema é quando as diferenças se tornam irreconciliáveis e quando são mobilizadas politicamente para afirmar dominação ou resistência. O multiculturalismo, tal como foi pensado no final do século XX, não previa este grau de confrontação. Partia do princípio de que todas as culturas podiam coexistir pacificamente num mesmo espaço. Mas a História recente está a mostrar que há limites para essa convivência.
Isto coloca desafios imensos à Europa. Não apenas na gestão das migrações, mas na capacidade de definir o que quer ser enquanto civilização. Que valores está disposta a defender? Que concessões está disposta a fazer? Que fronteiras está disposta a impor? Sem respostas claras, a Europa arrisca-se a tornar-se um campo de batalha entre civilizações, onde os conflitos não se darão apenas nas periferias, mas no coração das suas cidades.
Huntington pode ter falhado em vários detalhes, mas o seu diagnóstico geral parece hoje mais atual do que nunca. Não estamos apenas perante crises pontuais. Estamos a entrar numa era em que as civilizações voltam a ser os grandes sujeitos da História. E quando isso acontece, a paz torna-se frágil, e o futuro imprevisível.
Talvez ainda possamos evitar o pior. Mas para isso, temos de voltar a pensar em grande. Não apenas em termos económicos ou políticos, mas civilizacionais. Porque, quer queiramos quer não, é esse o tabuleiro onde está a ser jogada a próxima grande partida da História mundial.
Escreve no SAPO quinzenalmente à quinta-feira // Tiago Matos Gomes escreve com o antigo acordo ortográfico