Os bilionários gostam tipicamente de ostentar a sua riqueza – de que vale ser rico se não se tira partido dos frutos da riqueza exibindo-os abertamente à sociedade? Seja pelas constantes solicitações dos media ou de eventos sociais de tapete vermelho, é vulgar que nos passe debaixo dos olhos a imagem de empresários e famílias empresariais bilionárias, lado a lado com celebridades de casas reais, do desporto ou do mundo do espetáculo. Basta um olhar para as suas fotos nestas ocasiões para perceber que tiram prazer destes momentos – o que significa que a visibilidade do seu estatuto social acaba por ser um dos prémios mais valiosos das suas realizações empresariais e do seu estatuto financeiro.
Elon Musk, Jeff Bezos, Larry Ellison, Steve Ballmer ou mesmo Warren Buffet ficam radiantes com as aparições públicas certas, no sítio certo e na companhia certa. As famílias Walton, Koch, Hermès, Porsche ou Quandt também não se esquivam aos holofotes – e nenhuma família o faz mais do que os Ambani, a família mais rica da Índia, ao ponto de terem gasto 600 MUSD no casamento do herdeiro Anant, em julho deste ano.
Mas há famílias bilionárias que não são assim, que fogem dos holofotes e se refugiam na sua privacidade – acima de todas está uma família obcecada há gerações com a privacidade.
Não faltam famílias bilionárias que prezam a discrição – sobretudo apelidos old money como os Rothschild, os Wallenberg, os Cargill-McMillan ou os Wertheimer. Juntam-se famílias de riqueza mais recente como os herdeiros de Ingvar Kamprad (IKEA) ou de Karl e Theo Albrecht (Aldi).
E temos neste conjunto uma família especial, que sempre se destacou pela discrição e a privacidade a um extremo absoluto sem comparação com nenhuma outra, a uma dimensão só comparável ao seu gigantesco património financeiro. Em resultado, criou ao longo de gerações uma aura de mistério que trouxe consigo o respeito de outras famílias afluentes, mas também muitas histórias, que não se sabe se verdadeiras se especulativas, que foram alimentando a aura de mistério desta família.
É por isso que o convido a conhecer a história desta admirável família, sob o disclaimer de ter tido o privilégio de fazer parte dos Quadros do Grupo e ter convivido com vários membros da família ao longo da minha vida.
O império Mars Incorporated
Sentada há quatro gerações no topo do maior império mundial de bens de consumo alimentares, a família Mars detém o controlo total do Grupo Mars Inc., fabricantes de algumas das maiores marcas de chocolate do mundo, do famoso arroz Uncle Ben's e dum fortíssimo portefólio de nutrição para animais de estimação.
Hoje na quarta geração, a família Mars possui uma fortuna avaliada em mais de 117 biliões de USD, o que a torna na segunda dinastia familiar mais rica dos Estados Unidos (ranking de Dinastias dos EUA, Forbes 2024)
Reclusa e avessa aos media, a família sempre foi rodeada de mistério pela forma às vezes bem criativa como preservava a privacidade. Durante anos o grupo manteve em sigilo registos fotográficos de alguns dos membros mais proeminentes da sua História, já mortos ou ainda em vida. Até a morada da sede da empresa era um segredo – sabia-se que era em McLean, no Estado de Virgínia, mas nada mais; nem sequer se conheciam fotos do edifício. O Guardian dizia que “a sede do Grupo Mars é secreta, anónima e conhecida como 'O Kremlin'”.
Hoje a situação evoluiu – mas como vamos ver este ethos tão particular ainda marca profundamente os membros da família.
A origem da família: do talento do fundador aos três netos
O fundador Frank Mars nasce em 1883 e tem poliomielite ainda jovem. Como não consegue ir a pé para a escola, vai ficando em casa onde aprende com a sua mãe, Elva, a fabricar chocolates à mão. Em 1901, com 18 anos, começa a vender chocolates feitos na sua cozinha pelas redondezas de casa em Tacoma, Washington. Gradualmente, o negócio expande-se, torna-se um sucesso e faz de Frank Mars um homem rico.
Em 1902, Frank casa-se com a professora Ethel Kisack e durante a Grande Depressão tornam-se celebridades ricas e inspiradoras. Possuem duas casas de férias em Wisconsin e no Tennesse, abrindo esta última ao público para angariação de fundos e eventos de solidariedade social. O cavalo de Ethel venceu o Kentucky Derby em 1940, o que reforçou a posição e o poder do casal na sociedade local. A frugalidade e obsessão com a privacidade do nome Mars não começa com o seu fundador, mas mais tarde com o seu filho...
Frank e Ethel tiveram um único filho, Forrest (Senior), nascido em 1904. Já como jovem adulto, junta-se ao pai no negócio de chocolates. Desenvolvem o primeiro nougat de chocolate, a base para as barras Milky Way e Snickers. Com 28 anos, Forrest Sr desentende-se com o pai e parte para Inglaterra para iniciar o seu próprio negócio, levando consigo a receita de Milky Way.
Longe dos progenitores e excitado com a liberdade trazida pela emigração, Forrest Sr fortalece o legado do pai com a mesma força empreendedora e cria os fundamentos do Império Mars.
A aposta de Forrest Sr em Inglaterra é um sucesso. Mas o pai não fica parado e continua a desenvolver novos produtos, com destaque para os M&M's que vêm combater as Smarties da Rowntree. Lançado em 1937, o tubo de Smarties era um produto icónico em todo o mundo, apesar de derreter um pouco nas mãos. Frank Mars agarra neste defeito e elimina-o, lançando M&M's numa embalagem mais conveniente e com o famoso slogan “it melts in your mouth, not in your hands”. Hoje, são produzidos mais de 400 milhões de M&M's por dia nos EUA... As Smarties acabaram nas mãos da Nestlé, que produz um quarto do número de M&M's.
Embora o nome Mars seja mais associado a doces, Forrest Sr vê cedo o potencial do negócio de alimentação para animais de estimação – que hoje tem uma grande fatia da Mars Inc.
A posição de destaque da Mars em alimentos para animais de estimação começou em 1935 com a aquisição de uma empresa britânica de alimentos para cães, Chappel Bros. Segue-se a compra da Iams e duas outras marcas de alimentos para animais de estimação, em 2014, à Procter & Gamble, por cerca de 2,9 bi USD. Hoje, a Mars é uma força dominante em alimentos para animais de estimação, com marcas líderes, e também em medicina veterinária, como proprietária de algumas das maiores redes privadas americanas de hospitais veterinários, Banfield e VCA.
Ao contrário dos pais, Forrest Sr. era frugal e criou os filhos dessa forma – enquanto frequentavam internatos topo de gama, tratavam de tarefas domésticas para ter direito à mesada. Apesar dessa frugalidade e da escassez de informação, sabe-se que Forrest Sr. compra uma fazenda de 300 ha na Virgínia na década de 1940 para se isolar. De facto, vive separado da sua esposa, Audrey, durante grande parte do casamento e Audrey instala-se num apartamento de cobertura no Edifício Watergate. Apesar da separação, o casamento de Forrest e Audrey gera três filhos brilhantes: Forrest Jr, John e Jacqueline.
Tido como um homem de "temperamento extremo", o génio de Forrest Mars Sr nunca deixou de ser elogiado, com a revista Forbes a designá-lo em 1984 como "um dos empresários mais brilhantes e bem-sucedidos do século XX". A Business Insider cita um porta-voz do grupo Mars que refere que Forrest Sr. "era um líder icónico - dedicado e altamente respeitado".
A origem do ethos da fobia de privacidade da Família Mars
Muitos colocam esta questão, mas poucos sabem a resposta. Imaginam tratar-se de um processo progressivo, mas não foi – tem origem num episódio muito específico que marca Forrest Sr e o faz transmitir a obsessão pelo sigilo através das gerações. O episódio remonta ao processo desenvolvido por Forrest Sr para patentear o método de fabrico do Arroz Uncle Ben's.
Várias chefias militares americanas terão tentado derrubar a patente para tornar o arroz acessível à alimentação das suas tropas, mas Forrest recusou. Acabou por vencer, mas esta guerra deixou profundas marcas em Forrest Sr. Ao longo do processo e para sempre, passa a evitar fotógrafos e entrevistas – e acaba por levar o grupo e as gerações vindouras da sua família a transformar o sigilo e a privacidade num modo de vida.
Da segunda à terceira geração: a cogestão dos filhos de Forrest Mars Senior
Com a progressiva incapacitação de Forrest Mars Sr, os seus filhos John e Forrest Jr começaram a assumir uma posição de liderança conjunto do grupo. Com uma relação de cumplicidade extraordinária entre si, a morte do pai, em 1999, vai conduzi-los a assumirem a posição de copresidentes executivos, gerindo de forma extremamente ativa todos os recantos do negócio com dinamismo, arrojo e sentido humano.
Olham para o grupo de forma moderna e exigente. Fazem questão de ter os melhores recursos oferecendo, a todos os níveis, remunerações praticamente impossíveis de bater. Consta por exemplo que um alto quadro responsável pelo negócio num país europeu e com uma carreira de décadas no grupo teria comprado uma ilha no Mediterrâneo ainda bem no ativo.
A obsessão pela anonimidade e privacidade de Forrest Sr reforça-se com os filhos. Reflete-se bem no seu comportamento e há uma história curiosa que ilustra bem a intensidade com que o sigilo e a anonimidade marcavam a personalidade e o comportamento de John e Forrest Jr.
No final dos anos 80, os dois irmãos viajavam juntos por todo o mundo de visita aos escritórios e fábricas do grupo. Consta que usavam passaportes com pseudónimos, que se vestiam de uma forma ultradiscreta (quase pobre), que ficavam em hotéis de gama média-baixa e que alugavam nos aeroportos um Opel Corsa ou um Fiat Uno que um irmão guiava com o outro sentado ao lado.
Nesta altura, ainda estava fresco o sequestro do bilionário Alfred Heineken. Comentava-se que os irmãos tinham ficado impressionados com o que se passara e faziam tudo para evitar que isso lhes pudesse acontecer.
Por todas as razões, John e Forrest Jr. herdaram do pai a obsessão do secretismo e levaram-na a um patamar ainda mais alto. E naturalmente os caminhos frugais do pai ficaram com eles: viviam ambos em condomínios de classe média por exemplo. “Quando eu estava a crescer, parecia muito normal", diz a filha de Forrest Jr., Pamela Mars. "Não me senti diferente de ninguém. Fazíamos tarefas domésticas, íamos à escola. Não vivíamos um estilo de vida diferente de nenhum dos meus amigos." O ethos de frugalidade e privacidade que marcava toda a família subiu claramente de nível com os dois irmãos e atingiu provavelmente a fasquia mais elevada da história da família à data.
O advento da quarta geração e de uma política mais aberta do grupo
Forrest Mars Jr. morre em 2016, com 84 anos, deixando o seu património dividido entre as suas quatro filhas. Hoje, Jacqueline, de 84 anos, e John, de 88, são os acionistas de referência do grupo e dividem entre si a maior parte da fortuna da família, com um património líquido estimado em 46,5 biliões de USD cada um. A quarta geração conta com apenas dez elementos, muitos deles envolvidos em carreiras no grupo, ocupando cargos de relevo – curiosamente, Marijke, filha de Forrest Jr, liderou o grupo em Portugal durante vários anos.
Já depois da morte de Forrest Jr e com John nos seus 90 anos, a irmã Jacqueline assume um maior protagonismo e o seu filho Stephen M. Badger, de grande valor, assume a presidência do grupo em dois mandatos não consecutivos. Sob a influência particular de Stephen e o apoio do resto da família, o grupo começa a considerar que a sua imagem de secretismo não é um atributo positivo. Nos últimos anos, a família Mars e os executivos da empresa permitem alguma abertura aos olhos do público e o próprio grupo divulga aspetos da história da família até aí... secretos. A publicação recente de uma inédita foto de Jacqueline Mars, da terceira geração, na companhia de duas netas é um bom exemplo.
Atualmente, a imagem da família é marcada por Jacqueline, pelo ex-marido David Badger e pelo seu filho – a privacidade é mantida mas há maior abertura e exposição social.
Em 1961, Jacqueline Mars casa com Stephen Badger. Divorciam-se em 1984 e Jacqueline passa depois por um breve segundo matrimónio, entre 1986 e 1994. Jacqueline e Stephen têm duas filhas e um filho, Stephen M. Badger, que ocupou duas vezes a presidência do grupo e contribui muito para a evolução da imagem do grupo e da própria família. Numa rara entrevista advogava a importância de uma nova imagem para o grupo:
"A abertura do grupo está a ser importante para acelerar a captura de novos consumidores e talentos. Durante a maior parte da nossa história, na verdade... durante 99% da nossa história, optámos como grupo por não evitar o olhar do público e queríamos mesmo que as nossas marcas envolvessem os consumidores. Mas queríamos manter a privacidade total da família. E, no entanto, os tempos mudaram", disse Badger. "Os consumidores querem saber mais - não apenas sobre as marcas que compram, mas sobre a empresa que está por trás e sobre os seus acionistas."
De toda a história da família e do grupo, conclui-se que é inevitável que, no futuro, as próximas gerações se foquem em preservar dois valores fundamentais que não parece que algum dia venham a mudar...
Os valores de trabalho, de privacidade e de não ostentação de riqueza são hoje tão vivos como no tempo do fundador e do seu filho e a sua força vai seguramente preservá-los bem para além da quarta e da quinta gerações. Com uma diferença – evoluem para uma atitude saudável e digna de respeito e admiração.
O grupo sempre manteve a propriedade total, graças a uma rentabilidade estruturalmente elevada, que gera os fundos necessários para os plano de desenvolvimento, dividendos aos acionistas e financiamento a uma plêiade de iniciativas de caráter social. É evidente que, mantendo o capital privado, a família evita escrutínios financeiros públicos e as habituais obrigações burocráticas caras que acompanham a cotação no mercado de capitais.
Não há muitos grupos desta dimensão que possam estar descansados em manter o capital fechado - provavelmente nenhum. E face ao ethos de gestão do grupo, não é de todo concebível que esta situação se altere nas próximas gerações. Como diz Pamela Mars, "A filosofia da família e a filosofia do negócio é que cuidamos de um grupo familiar e, mais importante ainda, um grupo privado - e é assim que gostaríamos de o manter."
Por isso concluo que há dois valores fundamentais da família que é inevitável que no futuro sejam religiosamente preservados pelas próximas gerações:
- um ethos de privacidade que já não é obsessivo, mas sim saudável;
- e a detenção da totalidade do capital do grupo nas mãos da família.