
Nelson de Matos começou na Arcádia, passou pela Moraes, esteve na Âmbar e, por fim, criou uma editora com o seu próprio nome. Mas o seu principal contributo foi a Dom Quixote, que dirigiu durante 23 anos e que transformou naquela que terá sido a principal editora portuguesa. Faleceu no passado domingo, com 79 anos, vítima de dificuldades respiratórias (o funeral realizou-se esta quarta-feira, no cemitério dos Prazeres, em Lisboa).
Comprou as Publicações Dom Quixote em 1980, a seguir à trágica morte da sua fundadora, Snu Abecassis. Um investimento no qual se fez acompanhar por dois sócios. Quem eram eles?
Um, era o proprietário de uma empresa gráfica, a Tipografia Guerra, de Viseu. O outro era o Francisco Vasques, o proprietário de uma distribuidora, chamada Diglivro. O objectivo inicial dessa sociedade foi o de repartir entre si o encargo da aquisição, mas também o de proporcionar à empresa dois apoios importantes - um, junto de uma gráfica, outro junto de uma distribuidora, com quem, aliás, sempre tinha trabalhado.
Depois, ficou sozinho.
Inicialmente saiu a Tipografia Guerra, e uns anos mais tarde a distribuidora. Eu fui adquirindo as suas quotas ao longo do percurso.
Saíram de uma forma…
…completamente amigável. E por vontade própria, em ambos os casos. Continuei a trabalhar com eles posteriormente à sua saída.
O Nelson de Matos transformou a Dom Quixote, que era uma pequena editora, numa das maiores editoras portuguesas.
Isso é verdade. Quando tomei contacto com a Dom Quixote, após o falecimento da Snu Abcassis (que tive o privilégio de conhecer, e que muito estimava, como pessoa e como editora - sempre a considerei, aliás, a fundadora da empresa), era realmente uma pequena empresa, embora muito prestigiada, com uma marca e uma imagem de trabalho de qualidade.
Quantos livros editava por ano?
Editava, sei lá!, uns 30 livros por ano.
E quando saiu?
Editei isso, ou mais do que isso, por mês.
Começou como autor na Dom Quixote
Curiosamente, o seu primeiro livro havia sido publicado pela mesma Dom Quixote, em 1966.
Nessa altura, eu era um jovem de 21 anos, com ideias de ser escritor. Apresentei esse livro, que se chamava Noite Recuperada, a sete ou oito editoras, que me recusaram o livro. Até que o apresentei à Dom Quixote e tive uma resposta positiva.
À própria Snu Abecassis?
Sim e também a um jovem editor que colaborava com ela, chamado Carlos Araújo, de quem, depois, fui amigo e companheiro de profissão durante muitos anos. Fui, provavelmente, o primeiro autor de ficção da Dom Quixote, ignorando que, uns anos depois, viria a ser o proprietário da empresa.
Seguiram-se mais três livros de ficção e um ensaio de crítica literária (A Leitura e a Crítica). Curiosamente, creio que todos eles estão esgotados.
Sim, não há exemplares e eu próprio não consigo comprá-los.
O editor da Dom Quixote considerou que o Nelson de Matos autor não valia a pena ser reeditado?
Sim, achou isso. Conscientemente. À excepção do livro de crítica.
Não é excesso de modéstia?
Não. É alguma objectividade. Alguma modéstia também, mas…
Não me diga que se envergonha do que escreveu?
Não me envergonho, mas são obras nitidamente juvenis, obras de quem começa… São escritas incipientes, ensaios de alguém que, se provavelmente tivesse continuado, acredito que melhoraria um pouco e hoje seria um autor legível, não mais nem menos do que muitos outros. Mas, de facto, interrompi esse trabalho.
Na Arcádia: o Portugal e o Futuro de Spínola…
Começou a sua atividade de editor em 1974, na Arcádia, que estava encostada a um grupo financeiro onde trabalhava - você era funcionário da companhia de seguros Império.
Tive a sorte de ter um administrador nessa companhia de seguros que gostava de música e literatura, chamado Luís Barbosa, que mais tarde apareceu na política através do CDS. Ligado às coisas da cultura, um dia disse-me, sabendo que eu escrevia: “Olhe, você que tem a mania das literaturas, tome lá uma editora e vá tomar conta dela”. Despejou-me dos seguros para uma empresa acessória, que era a Arcádia. Aí começou a minha actividade futura de editor.
Qual foi o seu maior sucesso na Arcádia?
Quando cheguei, a Arcádia acabava de ter o seu maior sucesso. Chamava-se Portugal e o Futuro, do general Spínola.
Foi um best-seller!
Fui ainda gerir os efeitos desse sucesso. Aliás, convivi ainda com o general Spínola nesse sentido, cheguei a ir a casa dele, em Massamá. Porque ele emendava e revia as provas das reedições, introduzia emendas, etc.
Nessa aventura do Portugal e o Futuro, você foi o braço direito do editor da Arcádia…
…Paralela de Abreu, já falecido. Mas convivi na Arcádia com uma pessoa muito interessante, que foi a Natália Correia, que era a directora literária. Eu estava acima dela, porque representava o accionista, mas não se pode estar acima da Natália Correia, no dia a dia. Só se podia olhar para ela com admiração.
Editaram quantos exemplares? Duzentos mil?
Já não me lembro bem, mas foi qualquer coisa parecida.
Há algum livro, desde então, em Portugal e de autor português, que tenha vendido tanto?
Creio que o Saramago pode atingir hoje esses números. Estamos a falar de anos muito distintos e de taxas de leitura felizmente bastante diferentes.
…e o Portugal Amordaçado de Mário Soares
Lê-se mais agora…
Sem dúvida, sem dúvida. Logo a seguir ao general Spínola, a Arcádia editou - e aí, já por meu intermédio -, pela primeira vez em Portugal, um livro de um jovem político chamado Mário Soares, intitulado…
Portugal Amordaçado!
Acompanhei desde o princípio a feitura do livro com Mário Soares, indo a sua casa, vendo as provas, etc.. Recordo-me de que ia a sua casa, no Campo Grande, ao fim da tarde. O Dr. Soares estava sentado numa poltrona, descontraidamente, e apontava-me, à sua frente, aquele pufo onde, quando estaria sozinho, ele estenderia os pés e descansava as pernas ao fim do dia… Eu sentava-me quase no meio das suas pernas, no pufo, e ficávamos ali, frente a frente… Nunca mais esqueci a primeira vez que lá fui e fiquei sentado aos seus pés.
Na altura, ele era ministro dos Negócios Estrangeiros.
Talvez.
Editou Spínola, Mário Soares… Mais algumas figuras cimeiras da política?
Não. Conheci pessoalmente Sá Carneiro e Álvaro Cunhal, mas nunca publiquei livros seus.
Seguiu-se a Moraes Editores, a convite…
…do Pedro Tamen, que entretanto tinha sido convidado para a administração da Fundação Gulbenkian e que quase me passou a editora como herança.
Como é que se conheciam?
Conhecíamo-nos das letras. Eu andava próximo das pessoas dos jornais, dos poetas, dos escritores, dos editores. Era o meu mundo desse tempo.
Frequentava o restaurante Monte Carlo…
Sim, sentava-me à mesa onde se sentavam o Carlos de Oliveira, o José Gomes Ferreira, o José Cardoso Pires, para os ouvir. Assim como faziam outros jovens da minha idade - recordo-me do Nuno Júdice, do Gastão Cruz… Sentávamo-nos ali para os ouvir. Eles discutiam política, literatura, falavam de livros - livros que a gente depois ia procurar ler. Admirávamos aqueles homens e respeitávamo-los de uma maneira muito vincada.
Você iria buscar muita gente dessa tertúlia para as suas editoras.
Claro, quando cheguei à idade e à situação de poder ser eu a convidá-los e desafiá-los, foi isso que fiz. Naquela altura, havia alguns editores respeitáveis, mas havia outros que o não eram. Quis dar aos autores que amava e respeitava um trabalho, do lado da edição dos seus livros, que correspondesse à admiração e ao respeito que lhes tinha.
A Moraes, uma editora de autores portugueses
Houve algum editor que tivesse funcionado como uma espécie de modelo, que o inspirasse?
O Rogério de Moura, o Francisco Lyon de Castro de então, o Manuel Rodrigues de Oliveira, o Manuel Dias de Carvalho, entre outros, que tinham da sua profissão o lado da seriedade, da entrega ao trabalho do autor - porque o editor está ali para servir e dar a voz ao trabalho do autor.
Quando chegou à Moraes, em 1976, já essa editora estava em decadência.
Já, mas era uma editora extremamente simpática e que correspondia, na perfeição, àquilo que era o meu objectivo desde sempre: era uma editora de autores portugueses. Tinha uma colecção de poesia portuguesa que era assinalável: Sofia de Mello Breyner, Jorge de Sena, o próprio Pedro Tamen, António Ramos Rosa, Ruy Belo, tantos poetas importantes e que tive a felicidade de acompanhar. E depois teve, chamados por mim, um conjunto de outros escritores como o José Gomes Ferreira, o José Cardoso Pires, o José Saramago, e muitos outros. A Moraes foi o meu primeiro grande ensaio, valioso ensaio. É uma pena ter interrompido o seu percurso.
Tinha uma livraria simpatiquíssima…
Com um livreiro excecional, o Edmundo, que foi um excelente companheiro de trabalho. Era uma editora que correspondia inteiramente àquilo que eu pensava da edição e que eu queria fazer. Foi o meu primeiro ensaio para trabalhar com autores portugueses. Desde essa altura que há uma frase que eu repito em todo o meu percurso: não faz sentido ser editor em Portugal de costas voltadas para a produção cultural nacional. Foi aí que começou a minha relação com o José Cardoso Pires, o José Gomes Ferreira, o Nuno Bragança, a Maria Velho da Costa, o José Saramago, com que tive um acidente…
A recusa em publicar Saramago
Consta que o Nelson não publicou um livro do Saramago.
Nós não temos a mesma leitura dos acontecimentos, porque o Saramago conta isso de uma maneira e eu conto de outra. Peço desculpa ao Saramago por considerar que ele conta mal, porque ele acha que existiram influências sinistras por trás da minha decisão. E a verdade é que não existiram influências sinistras nenhumas, foi uma coisa bastante mais prosaica. Ou seja: eu publiquei dois livros do José Saramago...
A saber?
Um livro de contos, que se chamava Objecto Quase, e um romance, chamado Manual de Pintura e Caligrafia.
O terceiro é que não. Qual era esse terceiro?
Era o Levantados do Chão, que o Saramago me apresentou, que eu li, e gostei - nada a dizer sobre o livro.
E que eu, pessoalmente, acho que é dos seus melhores livros.
Exatamente, é verdade, é um excelente romance. Mas nessa altura a Moraes estava no fim.
Falida?
Exatamente. Os livros anteriores do Saramago não tinham vendido. Ele tinha estado no Diário de Notícias e estava a atravessar aquele período negativo posterior, muito marcado politicamente. Tive que lhe dizer: “José, fiz duas experiências, não resultaram, lamento não ter condições para poder fazer a terceira.” E não publiquei. Esse livro, por coincidência e por felicidade - e digo-o sem nenhum um rancor…
…foi a explosão…
…foi o início da explosão de Saramago e do seu sucesso futuro. Portanto, passei a ter no meu curriculum de editor o ter recusado publicar um futuro Prémio Nobel.
Foi o único editor que se recusou a publicar Saramago em Portugal?
Sim, porque ele mudou-se imediatamente para a Caminho, que passou a ser a sua editora. Não sei se teve outras recusas antes de mim, provavelmente teve.
Essa é uma nódoa inapagável!
E não é a única! Na vida dos editores, essas coisas acontecem com relativa frequência: o não se apostar num autor e ter uma grande surpresa.
Ficou surpreendido quando Saramago ganhou o Nobel?
Fiquei surpreendido, claro, porque um Nobel nunca se espera. Quando me disseram, eu estava em Frankfurt, no meio de uma reunião. Claro que fiquei contente. Mas foi mais um contentamento do que uma surpresa.
Voltou a chamar-se a si próprio: “Que grande estúpido que eu fui!”
Sim… Lembro-me que, depois, estive com o Saramago, sentado, no stand da Dom Quixote, num momento de descanso, já depois de ser Nobel. Estivemos a falar e divertimo-nos um pouco com essa situação.
Controleiro da “célula dos editores” do PCP
Não ficaram sequelas entre os dois?
Da minha parte, nunca. Da parte do José Saramago, creio que ele teve desgosto com essa situação e suponho que nunca me perdoou ou entendeu esse gesto. Sempre o relatou como se eu tivesse tido pressões para não o editar. E isso não é verdade.
Que tipo de pressões?
Políticas, empresariais, eu sei lá.
Mas pertenceram ao mesmo partido, ainda por cima.
Sim, sim, sim.
Nessa altura, ainda estava no PCP?
Ainda estava, o que mostra o absurdo da situação.
Mais uma razão para ele ficar magoado!
Exatamente. Saramago vivia um momento muito difícil, em que estava acossado, perseguido. Ele esqueceu-se que eu o apoiei nesses momentos difíceis, até do ponto de vista financeiro, com trabalho de tradução que nunca lhe faltou e que sempre lhe dei através da Moraes, onde há imensos livros traduzidos por Saramago. Ele estava muito magoado e tudo o que lhe acontecia de mau, para ele, vinha de pressões, de ajustes de contas - mas nesse caso nada disso se passou.
O Nelson aderiu ao PCP quando?
A seguir ao 25 de Abril. Cheguei a ser responsável por uma coisa chamada “célula dos editores”, imagine. Existia uma grande atividade cultural em torno do PCP.
Quem era o seu controleiro?
Não, eu é que era o controleiro da célula; acima, prestava contas, digamos assim, a um jovem que não era escritor, mas que veio a ser, chamado Mário de Carvalho. Nessa altura, o PCP tinha os intelectuais todos do seu lado. Depois, todos nós começámos a confrontarmo-nos com dificuldades. E cada um, por razões diversas, foi-se afastando.
Quando é que se afastou?
Nem eu lhe sei dizer, mas não muitos anos depois. Não foi um convívio muito largo. Mas é uma parte da minha vida que eu continuo a respeitar.
Não houve, portanto, uma rutura.
Foi o deixar de ir, o deixar de aparecer, o deixar diluir, sem nenhum conflito, espetáculo ou cena.
Ainda se sente situado na esquerda?
Evidentemente. Continuo a ser um homem de esquerda, mas já numa outra área da esquerda.
Mas o que é que distingue um editor de esquerda de um editor de direita?
Não sei, não sei. Eu procuro dar voz a valores culturais que têm a ver com o pensamento e a reflexão, sem os classificar como de direita ou de esquerda. Não pergunto a ninguém se é de direita ou de esquerda para publicar um livro – publico-lhe o livro se ele tem importância enquanto tal, independentemente de o autor ser de direita ou de esquerda.
A pistola do administrador do MRPP
Voltemos à Moraes. Sei que tinha reuniões com um administrador que andava armado…
Essa é uma história engraçada, ocorrida durante o “Verão Quente”. A Moraes pertencia ao jornal O Século e foi apanhada pela agitação que se verificou dentro desse jornal. Como acionista da Moraes, O Século tinha direito a nomear um administrador: o sr. Pinto. Não me lembro do seu nome, era o sr. Pinto, que chegava às quintas-feiras para a reunião da administração. Trazia uma pasta de mão e, dentro, uma arma. Chegava, punha a pistola em cima da mesa e dizia: “Ora vamos lá ver o que é que você tem aí para publicar!”
A reunião era a dois?
Éramos os dois da administração - talvez ele fosse o presidente, já não sei. Discutíamos então a programação e os problemas da editora com uma pistola em cima da mesa. Estas histórias existiram por todo o lado.
O que é feito do sr. Pinto?
Não faço ideia. Sei que pertencia ao MRPP, que era um partido que muito influenciava a vida de O Século nessa altura.
Estamos, portanto, perante um quadro "proletário" que achava que você, que na altura pertencia ao PCP, era um “social-fascista”
Exactamente. Apesar da pistola e da consideração de que eu era um “social-fascista”, não me lembro de termos tido nenhum grande desacordo. Fomos sempre educados.
Não foi devido à pistola que não editou o Saramago?
Não, não. A história do Saramago é posterior. Mas houve outra história na Moraes muito engraçada, quando me apareceu alguém dizendo que era um comandante do ELP.
O comandante do ELP e as cartas de Eça
O Exército de Libertação de Portugal, de extrema- direita…
…pura e dura, envolvido no bombismo, etc.. Apareceu-me com um pacote de cartas do Eça de Queirós. Isto, após eu ter publicado o romance inédito do Eça, A Tragédia na Rua das Flores, que foi um acontecimento editorial naquela altura. Era o primeiro livro do Eça inédito que se publicava ao fim de muitos anos.
O que queria esse fulano do ELP?
Aproveitando essa situação sobre o Eça, queria vender-me aquelas cartas.
Alegadamente inéditas.
Inéditas e verdadeiras. Tive o cuidado de chamar um especialista em Eça de Queirós, o arquitecto Campos Matos, que me explicou que as cartas eram verdadeiras, dirigidas ao conde de Arnoso e pertencentes, portanto, à família e sucessores do Conde de Arnoso - ou seja, à família Espírito Santo. A posse das cartas, portanto, era indevida.
Eram roubadas?
Posse indevida - não vou acrescentar mais. Contactei a família Espírito Santo e consegui estabelecer um acordo, em que pus o senhor do ELP numa sala ao lado do meu gabinete, e o representante da família Espírito Santo noutra sala. O meu gabinete tinha duas portas e eu servi de pombo-correio. Consegui que a família Espírito Santo reavesse esse conjunto valiosíssimo de correspondência inédita do Eça de Queirós.
A troco de?
Seria indelicado ir até esses pormenores. Digo apenas que, como prémio deste esforço negocial (em que eu me senti como ministro dos Negócios Estrangeiros…), obtive uma carta do patriarca da família, o Ricardo Espírito Santo Silva, dizendo que, se alguma vez pensassem publicar aquele material inédito do Eça, o fariam comigo.
Quem era esse fulano do ELP?
Não lhe sei dizer o nome. Sei apenas que me ofereceu uma pequena estatueta, também em retribuição, esculpida em pedra, que eu suponho roubada de uma sepultura - tem todo o ar disso. Ainda hoje a conservo.
Uma grande aposta em autores portugueses
Quando tomou conta da Dom Quixote, levou consigo grande parte do catálogo da Moraes?
Sim. Quando a Moraes acabou, muitos escritores ficaram desprotegidos e vieram comigo para a Dom Quixote.
Li algures que, quando pegou na Dom Quixote, os seus únicos autores portugueses de nomeada eram a Natália e o David Mourão-Ferreira.
É verdade.
Hoje em dia, alguém disse que os únicos grandes autores portugueses que não estão na Dom Quixote são o Saramago e a Agustina. Concorda?
Concordo, mas se calhar estamos a esquecer alguns autores.
Que autores foi conquistando para a sua editora?
João de Melo (da Assírio & Alvim), Lídia Jorge (Europa-América), Cardoso Pires (O Jornal), António Lobo Antunes (Vega), Pepetela (Edições 70)… E depois os novos que foram aparecendo, como a Inês Pedrosa, a Mafalda Ivo Cruz, o Pedro Rosa Mendes, a Ana Zanatti - e esquecerei muitos outros, que se calhar se vão zangar comigo…
Uma autora que você recusou foi a Margarida Rebelo Pinto.
Isso é conhecido. Ela gaba-se de ter sido recusada tal e qual como o Saramago. Costuma dizer isso por graça (eu também acho graça) e corresponde a uma meia-verdade. À Margarida Rebelo Pinto não recusei nos mesmos termos do Saramago. Eu li o seu primeiro livro, Sei Lá, achei que tinha algumas qualidades, mas uma escrita descuidada e dei-lhe alguns conselhos sobre correcções a fazer; pedi-lhe que fosse para casa, que trabalhasse e reescrevesse o livro. Ela, com a sua força de juventude, achou que os meus comentários não tinham grande importância e publicou o livro tal e qual estava.
Já a Mafalda Ivo Cruz aceitou as suas sugestões.
Sim, com a Mafalda foi muito interessante. E isso é uma das coisas muito compensadoras da vida de um editor, esse trabalho que se faz com os autores.
Cardoso Pires aceitava conselhos, Lobo Antunes nem tanto
Os seus conselhos e sugestões são tidos habitualmente em conta pelos seus autores, mesmo pelos mais consagrados?
Nunca contabilizei muito essa situação. Para mim, é um facto natural atrever-me a discutir com um autor. Desde o José Cardoso Pires, com quem discuti um título ou algo semelhante. Muitas vezes o autor não aceita - tem todo o direito de não aceitar, a última palavra é dele.
Cardoso Pires aceitava?
Aceitava falar e discutir. Às vezes explicava porque é que insistia em manter aquela solução; outras vezes dizia, com naturalidade, “bom, vou tomar nota e vou ver”. O que importa é esse trabalho de repartição, do escritor sentir-se apoiado no seu editor, enquanto um leitor treinado, experiente e até com certa autoridade.
Lobo Antunes aceitava?
Fiz-lhe alguns comentários relativamente a alguns livros. Aceitava muito pouco esses comentários, mas isso por razões que têm a ver com uma grande precisão que ele põe nas palavras que utiliza e ser-lhe-ia difícil a alteração.
O Nelson foi o editor que lançou o Lobo Antunes.
António Lobo Antunes é um dos nossos grandes escritores, ninguém terá dúvidas a esse respeito - eu não tenho. Mas, como todos os grandes escritores, é uma personalidade complexa. “Um livro escreve-se com a mão, não com a cabeça” – disse ele em entrevistas recentes. O que implica evidentemente um treino apurado para a mão. Distinto do da cabeça - e certamente também do coração… Passámos 23 anos lado a lado, estreitamente, cruzando muitos aspetos decisivos das nossas vidas – pessoais e profissionais. Um longo casamento… como ele próprio dizia e escreveu. Recordo todos esses anos com saudade e muita amizade. Foram 23 anos de trabalho duro. Muitas coisas importantes ficaram a ligar-nos. Vinte e três anos, são vinte e três anos, não se apagam facilmente. Leia-se o livro de Maria Luísa Blanco, Conversas com António Lobo Antunes, e o que lá está escrito. Pelo menos até que, em próximas edições, seja branqueado o que lá está - como acontece na Fotobiografia recentemente publicada…
Onde o seu editor é simplesmente ignorado.
Nem o editor, nem o amigo de 23 anos...
Magoado com Lobo Antunes?
A vida de um editor também é feita destas coisas… Passemos adiante, voltemos a página…
Quase todos os grandes nomes da poesia portuguesa estão também na Dom Quixote.
Nós somos um país de poetas! Eu já tinha convivido de muito perto com os poetas. Fui grande amigo do Ruy Belo, cheguei a conhecer o Jorge de Sena, na Moraes conheci de perto muitos dos poetas portugueses que publiquei. Foi aí que publiquei, pela primeira vez, o Manuel Alegre, depois do 25 de Abril. Sou um leitor regular de poesia e um poeta frustrado, ou seja, gostava muito de saber escrever poesia.
O prestígio e a qualidade da Dom Quixote avalia-se também pelos prémios ganhos pelos seus autores.
Sim. Quase todos os grandes prémios literários importantes em Portugal têm sido atribuídos, nos últimos anos, aos autores da Dom Quixote.
O Prémio da APE…
… da APE, do Pen Club, o prémio Vida Literária, o prémio Camões, o prémio Máxima de Literatura, o prémio Fernando Namora, eu sei lá!
Para além dos prémios, há também as traduções no estrangeiro.
Isso é outro trabalho importante que os editores fazem, que é o de promover os seus autores junto de agentes literários, aliciar e seduzir esses agentes e as editoras estrangeiras a pegarem nos nossos autores e a publicá-los.
Tem tido muito sucesso?
Neste momento, pode dizer-se que não há autor da Dom Quixote que não esteja publicado em vários países. Na maior parte dos casos, isso deve-se a um trabalho meu.
Livros que deram especial orgulho
Nos últimos anos, a Dom Quixote passou a publicar também livros da chamada literatura light. Foi uma opção de carácter empresarial e financeira?
Deveu-se ao que é hoje inevitável no mundo editorial. Surgiram novas faixas de leitores, que também há que abastecer.
Não foi uma cedência da sua parte?
É claro que é uma cedência, não escondo isso. Que, em teoria, eu justifico dizendo que é muito importante que as pessoas leiam seja o que for que leiam. E que, através da leitura, vão conquistando a capacidade de selecionar.
O que é importante é ler?
Exacto, mesmo coisas de menor qualidade.
Mesmo lixo?
Mesmo lixo.
Publicou alguma coisa verdadeiramente lixo de que se tenha arrependido?
(Silêncio) A minha memória não me acusa de nada de que eu tenha assim uma grande vergonha.
E agora pergunto-lhe o contrário: quais os trabalhos de que mais orgulho tem, como editor?
Se lhe disser que foram tantos, estou a ser vaidoso.
Mas diga-me alguns.
A decisão de, no início da Dom Quixote, ter feito uma aposta numa tiragem de 30 mil exemplares num romance de José Cardoso Pires, chamado Alexandra Alfa, contra a vontade do próprio autor, que me chamou louco por dezenas de vezes, mas que depois se surpreendeu quando, um ou dois meses depois, estávamos a reeditar o livro. Ou de ter dito ao Manuel Alegre, quando ele me entregou o original do Senhora das Tempestades, que ia fazer quinze mil exemplares. Também ele se surpreendeu – e reeditámos a obra. Quinze mil exemplares como tiragem inicial de um livro de poesia era qualquer coisa impensável em Portugal.
Qual foi o livro de poesia que vendeu mais?
Talvez o Senhora das Tempestades, talvez a obra completa de Manuel Alegre, que já teve várias edições. Ou talvez, lá para trás, o Poeta Militante, do José Gomes Ferreira, no tempo em que ele estava vivo e os seus livros eram um sucesso. Mas nem são os projectos que vendem muito ou têm grandes tiragens que são importantes na vida de um editor. Fico contente se um livro for discutido pela sociedade, mesmo que essa discussão seja negativa relativamente ao livro.
O livro que provocou maior polémica
Qual foi o livro que editou que provocou maior polémica?
(Silêncio)
O do Rui Mateus, Contos Proibidos. Memórias de um PS Desconhecido?
Ah, sim, certamente. Foi o mais atrevido. Vendeu trinta mil exemplares no dia do lançamento. Teve todas as coberturas - não houve nem jornal, nem rádio, nem canal de televisão que não ocupasse uma grande parte do seu tempo com este livro. Foi um livro que me causou bastantes dificuldades pessoais.
Pressões? Ameaças?
Não digo pressões nem ameaças, mas mal-estares, comentários negativos. Algumas pessoas manifestaram o seu desgosto por eu ter tomado a decisão de o publicar. A todos expliquei que o livro existia, tratava uma questão importante, tinha revelações importantes e procurava ser sério ao ponto de as provar. Desse ponto de vista, achei que o livro merecia ser discutido na sociedade - e a sociedade que o recuse, o queime, ou faça o que entender. Ou seja: eu não sou um censor!