Nasceu como “caldeirada simples e pobre”, elaborada pelos pescadores, e evoluiu para uma receita que atrai romarias. Aveiro, especialmente junto à ria, é a “única região do país” onde se adiciona açafrão-das-índias ou “pó das enguias”.

HUGO RODRIGUES - CIRA Comunidade Intermunicipal Região de Aveiro

Outrora numerosa na ria de Aveiro, a enguia servia de alimento aos pescadores que percorriam a língua de água em moliceiros. A faina obrigava a que só viessem a casa ao fim de semana, “por isso cozinhavam no barco com o que tinham”, conta José Valente, presidente da Confraria Gastronómica O Moliceiro. A receita – “uma caldeirada simples e pobre”, elaborada com enguias que eram “outrora abundantes na ria” – não tem registos históricos que definam a origem. Um dos elementos distintivos da “Caldeirada de enguias” da região é a utilização da curcuma, ou açafrão-das-índias. É a “única região onde se adiciona este ingrediente”, assegura Valente, apontando a forte emigração para o Brasil, que ocorreu nas décadas de 50 e 60, como responsável pela integração do condimento. “Na Murtosa, é conhecido como ‘pó das enguias’”, refere.

Comum a Aveiro, Ílhavo e Murtosa, com algumas variações – “à moda de Aveiro leva tomate e muitas vezes vinho, além de usarem salsa, e na Murtosa hortelã”, da receita consta outro ingrediente singular, revelador da origem humilde: o “unto de pão”, ou “unto de sal” – banha de porco que se deixa ficar ligeiramente rançosa, antes utilizada em vez de azeite, que confere sabor característico. Diz-se localmente que as enguias capturadas na ria de Aveiro são as melhores, o que se justifica pela quantidade de sal presente na água, que valoriza sabor e consistência do peixe. Antes de chegarem à ria, as enguias encetam uma longa viagem: nascem no mar dos Sargaços, são “arrastadas pela Corrente do Golfo, através do Atlântico, até ao litoral europeu. Aqui, migram para rios e estuários, adaptando-se rapidamente à vida em água doce”, detalha “Uma biografia breve da enguia: do Mar dos Sargaços à Feira de São Mateus em Viseu, passando pela Ria de Aveiro”, de José Sobral. O percurso continua “até encontrarem um lar com suficiente alimento, onde permanecem até atingirem entre os 12 e os 24 anos”, altura em que “regressam ao lugar de origem para se reproduzirem”. Das enguias locais também se fazem conservas. Fritas e em molho de escabeche são apreciadas em Viseu: durante a secular Feira de São Mateus são consumidas desde o século XIX, com diversos restaurantes dedicados ao petisco.

Unto de pão
Com ligeiras variações, a receita dita que se comece dois dias antes, por salgar a banha – “unto de pão” ou “unto de sal” – com sal das marinhas de Aveiro. No dia da confeção, juntam-se todos os ingredientes: primeiro as batatas, cebola, alho, louro, salsa, unto de pão – gordura da barriga de porco que ficou rançosa – e as enguias cortadas às postas. Coloca-se o azeite e “pó de enguias” – nome pelo qual é conhecido localmente a curcuma ou açafrão-das-índias.

Restaurante Avenida Praia
Restaurante Avenida Praia Expresso

Saiba onde se come a melhor “Caldeirada de enguias”

Restaurante Avenida Praia
Três vezes por semana, há sete pescadores a percorrer a ria para capturar enguias para o Restaurante Avenida Praia, mas “andamos sempre aflitos: há muito poucas, às vezes trazem só 3 ou 4 kg”, garante o gerente, Pedro Fernandes, filho do fundador e cozinheiro que, aos 78 anos, “ainda trabalha 20 horas por dia” e continua aos comandos da cozinha. Manuel Fernandes foi chef da Pousada da Ria antes de abrir este espaço, há 33 anos. Sempre que há enguia fresca, o menu apresenta “Caldeirada de enguias” para duas pessoas (€42,50). Mas o ingrediente contempla ainda a entrada, nas “Enguias fritas com molho de escabeche” (€15, para dois) e, no final, a “Sopa de enguias”, feita com caldo da caldeirada, pão torrado e um pouco piripíri, é oferecida.
Largo da Varina, Torreira. Tel. 234838494

Marinhas
Neste restaurante de cozinha tradicional a “Caldeirada de enguias” (€38, para dois) “não tem segredo nenhum”, assegura o cozinheiro, Arménio Glória. “O mais importante são as enguias de boa qualidade, e as das marinhas, mais amarelinhas, são as melhores”, garante. As enguias são lavadas “10 ou 20 vezes”, para sair “o sangue e a areia” e, depois de cortadas, “lavadas novamente”. Enquanto isso, num tacho entram a cebola às rodelas, alho picadinho, azeite e batatas às rodelas fininhas e açafrão-das-índias. Quando a água levantar fervura, acrescentam-se as enguias, que cozem durante cerca de 15 minutos. O prato, que ainda leva alho e um pouco de vinagre, está sempre disponível no Marinhas, desde que haja “enguias boas”.
Rua Cavalaria 5, 4, Barrocas. Tel. 234197679

Traineira
Na Gafanha da Nazaré, “o Zézé das Caldeiradas era a casa mais famosa do país”, conta Paulo Costa. “Vinham pessoas de norte a sul para a ‘Caldeirada de enguias’.” O café dos pais era ao lado e a mãe, Emília, aprendeu a receita com a cozinheira, Elisa. Passou o segredo à nora, Ana Cláudia, que agora domina os tachos, preparando a “Caldeirada de enguias” para dois (€40) tal como “se fazia há 30 ou 40 anos”. Sempre na ementa da Traineira, mas “apenas quando as enguias são boas”, ressalva, “só usamos de peito amarelo, que é a da nossa ria”, leva os indispensáveis “sal de unto” – usado também noutras confeções da casa, pelo “sabor característico” – e açafrão-das-índias, e nunca tomate ou pimento.
Avenida Marginal José Estevão, 578-A, Gafanha da Nazaré. Tel. 234398421

Foto: Turismo Centro de Portugal

A Praia do Tubarão
Foi na década de 1990 que Adriano Ferreira abriu as portas desta casa típica de madeira colorida da Costa Nova. Na ementa d' A Praia do Tubarão, como especialidades, estão desde o primeiro dia pratos de tacho, com base nos sabores tradicionais, da memória e recorrendo aos frutos do mar, peixes e marisco, abundantes nesta zona e preparados ao momento. Entre eles destaca-se a “Caldeirada de enguias”. Aqui adiciona-se um ingrediente extra à receita original: tomate. Para começar, pergunte por um petisco singular: as larvas de lingueirão, de intenso sabor a mar, aqui conhecidas por “galeota”.
Avenida Marginal José Estêvão, 136, Gafanha da Encarnação. Tel. 234369602

Taberna Escondidinho
O facto de a “Caldeirada de enguias” elaborada para duas pessoas (€40) não estar na ementa da Taberna Escondidinho justifica-se pela escassez de matéria-prima e pela necessidade de reservar “pelo menos com dois dias de antecedência”, já que só trabalham com enguia fresca. Sandra Casalinho, a cozinheira, aprendeu a receita regional com a mãe, também profissional da restauração local, e continua a seguir a tradição: dispensa o pimento e o tomate. O que não pode mesmo faltar é o “pão de unto” nem o açafrão-das-índias.
Viela do Fontes, 6, Murtosa. Tel. 234867713

Guia Boa Cama Boa Mesa:
Guia Boa Cama Boa Mesa: Expresso

Um guia para provar tradições de Portugal
Do minhoto “Arroz de sarrabulho de Ponte de Lima”, ao transmontano “Butelo com casulas”, da outrora pobre “Feijoada de sames”, ao cosmopolita “Bacalhau à Brás”, dos raros “Molhinhos de Carneiro com grão”, à serrana “Galinha cerejada”, passando pela tradicional “Espetada regional com milho frito” ou pelas festivas “Sopas do Espírito Santo”, a cozinha tradicional está repleta de truques, segredos, histórias para descobrir no novo guia essencial “Restaurantes, Pratos e Produtos Regionais”.

Dividido pelas sete regiões de turismo – Porto e Norte, Centro, Lisboa, Alentejo e Ribatejo, Algarve, Açores e Madeira, o novo guia “Restaurantes, Pratos e Produtos Regionais”, com a chancela Boa Cama Boa Mesa e apoio do Recheio, está disponível desde de 8 de novembro (€15,90) em banca e/ou online AQUI (com desconto e oferta de portes para assinantes do Expresso).

Ao longo de 260 páginas, dedicadas aos mais típicos sabores locais, revelam-se histórias e curiosidades que dão forma a estas receitas. Cada prato, uma história, por vezes com várias versões, para descobrir pela voz de quem lhe conhece os segredos e pela mão dos guardiões da tradição: os melhores restaurantes tradicionais, que preservam um legado passado de geração em geração.

Sugerem-se cerca de 250 espaços para visitar, sentar-se à mesa e comprovar a autenticidade dos sabores regionais, partir à descoberta dos produtos locais ou “pôr a mão na massa”, em experiências que envolvem gastronomia e vinhos.

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