“Já nenhuma ideologia política é capaz de inflamar as multidões […]
doravante o vazio é que nos governa, um vazio sem trágico nem apocalipse.”

Lipovetsky , G., A Era do Vazio

Há mais de 40 anos, o filósofo francês Gilles Lipovetsky falava-nos d’A Era do Vazio, um tempo em que os grandes ideais davam lugar ao conforto pessoal, à imagem e ao prazer imediato. Na altura, poucos poderiam imaginar que esse “vazio” viria a instalar-se com tanta força no coração das nossas vidas — nas cidades e nas aldeias, nas escolas e nas redes sociais, nos grandes centros urbanos e também nas Beiras.

Recordo com nitidez um momento dos meus anos de estudante na Universidade de Coimbra, nos idos anos 80 do século XX. Entrei na livraria Bertrand, no Largo da Portagem, e comprei um livro com um título que, à época, soava quase futurista: A Era do Vazio, de Gilles Lipovetsky. A edição portuguesa, da Relógio D’Água, datada de abril de 1989, abriu-me os olhos para o que o autor identificava como o nascimento de uma nova protossociedade — centrada no indivíduo, na estética da vida quotidiana e na sedução como forma de organização social.

Hoje, basta olhar para o modo como vivemos ligados — aos ecrãs, às notificações, às redes — para perceber que aquele diagnóstico se tornou realidade. Somos empurrados para uma cultura de aparências, onde o que conta é mostrar e ser visto, mais do que pensar ou construir com profundidade. As redes sociais, o consumo acelerado de informação e agora a inteligência artificial parecem facilitar tudo. Mas a que custo?

Um dos sintomas mais visíveis deste fenómeno — e talvez um dos mais inquietantes — é o paradoxo dos filtros: pessoas que moldam, com rigor e obsessão, a imagem que desejariam ter  — silhuetas afinadas, pele perfeita, expressões ideais —, mas que, na vida real, não mobilizam esforço algum para se aproximarem dessa projeção. É como se a imagem digital bastasse, como se o “parecer” tivesse substituído por completo o “ser”. O resultado é uma cultura de simulação, onde se abandona o corpo real, o tempo real e a disciplina real, em favor de um espelho mentiroso, rápido e anestesiante.

Nas escolas da nossa região, vejo alunos cada vez mais ansiosos, desconcentrados e dependentes da tecnologia para tudo. Sabem lidar com o digital como ninguém, mas têm dificuldade em manter uma conversa profunda, escutar o silêncio ou escrever com clareza sem ajuda. Não por preguiça, mas porque o mundo à sua volta os formata para a rapidez e não para a reflexão. Como disse Lipovetsky, “o poder já não reprime, seduz”. E nunca foi tão sedutor estar distraído.

O vazio de que o filósofo falava não é um buraco negro — é um excesso de estímulos que nos esvazia por dentro. É a leveza das redes sociais, do entretenimento constante, do “tudo ao mesmo tempo”, que cansa em vez de libertar. E esse fenómeno não é exclusivo das grandes cidades ocidentais: chegou aos nossos concelhos, às nossas famílias, às nossas salas de aula.

É por isso que a escola — e a comunidade que a envolve — tem hoje uma missão ainda mais nobre: resistir à superficialidade e ajudar a reconstruir sentido. Ensinar não é apenas passar conteúdos em modo Google; é cultivar a atenção, o pensamento crítico e a ligação entre pessoas. Precisamos de educar para além da técnica: com tempo, exigência e humanidade.

Lipovetsky não era um pessimista. Apenas via com clareza aquilo que hoje já não podemos ignorar. O vazio pode ser combatido — não com ruído, mas com presença. E talvez seja nas regiões como a nossa, onde ainda se valoriza o tempo, a conversa, a terra e a memória, que esse combate pode começar com mais força.

Sugestão de leitura para o verão
Para quem quiser aprofundar estas questões durante os meses de descanso, deixo como sugestão o livro que inspirou esta reflexão: Gilles Lipovetsky, A Era do Vazio, Edição portuguesa: Relógio D’Água, abril de 1989
Um ensaio breve e brilhante sobre o individualismo contemporâneo, o culto da imagem e o declínio dos grandes ideais. Perfeito para quem gosta de pensar o mundo — mesmo deitado ao sol.

Carlos M.B. Geraldes, PhD