Enquanto debatemos, em cimeiras e conferências, os caminhos da igualdade de género, do respeito pela diferença e da promoção de uma infância saudável, esquecemo-nos de olhar para o mais óbvio: o que ouvem, repetem e interiorizam as crianças nas traseiras dos automóveis, nos corredores das escolas e nas suas redes sociais.

O que antes passava despercebido pela barreira linguística — com letras em inglês cheias de ambiguidade moral — chega agora de forma crua, explícita e em português do Brasil, através de melodias virais oriundas de subgéneros como o funk carioca ou o trap de favela. Não falo de toda a música brasileira, que é imensa, brilhante e uma das expressões culturais mais ricas do mundo. Falo de um fenómeno particular: a exportação, sem crítica nem mediação, de conteúdos nascidos em realidades profundamente violentas e desigualitárias, que se tornaram banais no imaginário infantil português.

Frases como “as piranhas gostam assim”, “bate com o popozão no chão”, ou outras de igual teor, são hoje repetidas por crianças de 8 ou 9 anos em vídeos coreografados, partilhados entre colegas, tios e até professores nas plataformas digitais. A normalização deste discurso levanta uma questão que incomoda: que valores estamos, de facto, a transmitir?

Não se trata de moralismo nem de censura. Trata-se de responsabilidade cívica e ética. Trata-se de perceber que, quando falamos de liberdade de expressão, falamos também da liberdade de escolher o que amplificamos e o que silenciamos como sociedade. A liberdade artística não implica irresponsabilidade social — especialmente quando em jogo está a formação de crianças.

O mais perturbador é que esta transformação cultural ocorre sem debate público, sem escrutínio político e sem consciência institucional. Temos uma Secretaria de Estado para a Igualdade que, por mais iniciativas meritórias que tenha promovido, ainda não se pronunciou com clareza sobre este fenómeno. As escolas, já assoberbadas com tarefas que extravasam o ensino, tentam resistir como podem. E os media, seduzidos pelo número de “cliques” e pela repetição do refrão, contribuem para a banalização da violência simbólica.

Entretanto, educadores e famílias tentam, isoladamente, explicar às crianças que a palavra “quenga” não deve ser usada, que bater com o corpo no chão ao som de um comando sexualizado não é dança, que mulher não é sinónimo de objeto. Mas como competir com os milhões de visualizações, com a estética do vídeo e com o carisma do influencer digital?

O mais inquietante é que muitos destes conteúdos, hoje disponíveis a qualquer criança com acesso a um telemóvel, têm origem em contextos de exclusão radical: zonas onde o Estado falhou, onde a dignidade humana foi negociada em troca de sobrevivência. São, em grande parte, expressões legítimas de denúncia social — mas que, fora do seu contexto, se tornam instruções não-intencionais para a barbárie precoce.

Portugal precisa urgentemente de uma política cultural e educativa que reconheça este novo território de conflito: o da linguagem, do corpo e da representação simbólica no universo digital infantil. Ignorar este tema é abdicar da soberania educativa. E abdicar da soberania educativa é abrir mão da infância como espaço de crescimento livre, consciente e digno.

Se a igualdade de género é, como tantas vezes se afirma, um desígnio nacional, então deve começar pela coragem de discutir o que consumimos e permitimos que as nossas crianças repitam — até que essas palavras deixem de ser apenas brincadeiras e passem a ser convicções.

TEXTO:

Paulo Freitas do Amaral

Professor, Historiador e Autor