Ursula von der Leyen já tinha mostrado não hesitar em usar a morte da sua velha pónei para caçar votos no mundo rural, piscando o olho, de uma assentada, aos criadores de gado, aos caçadores e aos populistas, ao autorizar há pouco mais de um ano a batida ao lobo que matou a (desprotegida) Dolly na sua quinta da Baixa Saxónia. Antes o presidente Macron abrira uma verdadeira caça ao lobo em França, promovendo a criação de “brigadas de intervenção” com luz verde para abater “com vigor” 19% dos cerca de 1100 animais existentes no país.
Não contente com o retrocesso civilizacional acenado perante 448 milhões de europeus, a Presidente da Comissão Europeia voltou a esquecer-se do tão, não há tanto tempo por si apregoado, Pacto Ecológico Europeu ao propôr em setembro a revisão formal – leia-se, o downgrade – do estatuto de proteção legal do lobo perante o secretariado da Convenção de Berna. Com a agravante de usar argumentos pouco rigorosos ou não validados do ponto de vista da ciência. De facto, dois terços das populações transfronteiriças de lobo na União encontram-se em estado vulnerável e alegar que se regista um aumento dos danos causados ao gado pelos lobos desde 2022 ou de riscos para a segurança pública é pura e simplesmente falso.
Na sequência da proposta da União Europeia, que vota em bloco, detendo portanto 27 votos em nome dos Estados membros, o Comité Permanente da Convenção decidiu ontem que os lobos passarão a poder ser capturados e vendidos, vivos ou mortos. Com a integração do Canis lupus no anexo III, a regulamentação da sua exploração, enquanto espécie da fauna selvagem, passará a garantir somente períodos de defeso ou a proibição temporária ou local dos abates.
Em 25 de setembro, a UE, na qualidade de Parte da Convenção, apresentou uma proposta para passar o lobo do anexo II para o anexo III da Convenção de Berna, ou seja, de “espécie de fauna estritamente protegida” para “espécie de fauna protegida”. Enquanto espécie estritamente protegida, ao abrigo do art.º 6.º da Convenção, é proibida a captura, detenção e abate bem como a destruição deliberada dos locais de reprodução ou de repouso; a perturbação deliberada da fauna selvagem, especialmente durante o período de reprodução, criação e hibernação, assim como a posse e o comércio interno destes animais, vivos ou mortos.
Aberta para assinatura dos Estados em setembro de 1979, a Convenção relativa à Conservação da Vida Selvagem e dos Habitats Naturais da Europa (Convenção de Berna), do Conselho da Europa, foi ratificada por Portugal em junho de 1981 e entrou em vigor no ano seguinte. Na reunião de ministros que aprovou a decisão de enfraquecer o estatuto de proteção do lobo, 43 anos depois, a Ministra do Ambiente, Maria da Graça Carvalho, que na véspera prometera votar contra, em apoio à posição mais progressista de Espanha ou da Irlanda, votou afinal a favor, mas dizendo que entre nós nada mudaria!
Em tempos em que tudo vale e estando a votação tremida, a ministra alemã do Ambiente, Steffi Lemke, mesmo sendo dos Verdes, não hesitou em dar uma ajuda a von der Leyen, chamando ao resultado “um sucesso para a conservação da natureza”. Já a federação europeia de caçadores FACE considerou a votação “uma tripla vitória para o lobo”. Mas como precisou o presidente da Liga para a Proteção das Aves (LPO), Allain Bougrain-Dubourg, “os lobos estão a ser sacrificados no altar da demagogia agrícola”.
Numa altura em que as populações europeias de lobo estão apenas a começar a recuperar da autêntica chacina que representou para a espécie os séculos XIX e XX, o Gabinete Europeu de Ambiente (EEB) apelidou este volte-face de “traição” à Convenção que agora celebra 45 anos e denunciou o abate como uma falsa solução para a predação de gado, contrária ao compromisso da Europa de salvaguardar e restaurar a biodiversidade. Mas infelizmente a voz dos cidadãos, representados em 300 organizações, e de milhares de cidadãos, inclusive no mundo rural, não foi ouvida uma vez mais. Tal como de resto as recomendações científicas na matéria.
Praticamente extinto na Alemanha no século XIX, foi somente no início deste século que as populações de lobo recuperaram. Na Áustria, os lobos foram exterminados em 1882e só em 2016 teve lugar uma nova reprodução. Em Portugal, o lobo é protegido desde 1988 e foi classificado como estando em perigo de extinção em 1990. Temos estimados entre 250 a 300 indivíduos, divididos por 60 alcateias. Com sub-populações a norte e a sul do rio Douro, apenas as populações a norte se encontram estáveis – em especial no alto Minho –, beneficiando da criação de um maior número de áreas protegidas: Parque nacional da Peneda-Gerês, Alvão e Montesinho.
No nosso país, as compensações aos agricultores vítimas de predação podem demorar anos a ser pagas pelo ICNF. Também os investigadores se queixam de entraves e de terem de pedir licenças até para retirar amostras de excremento de uma estrada ou para instalarem uma câmara. Quanto ao censo nacional do lobo, o último tem mais de 20 anos e está por explicar o adiamento da publicação dos dados atualizados.
Ao contrário do mito, o lobo não é perigoso para o homem. A sua convivência pacífica com as comunidades rurais é possível e cruza-se com o restauro do seu habitat, que garante a disponibilidade de ungulados silvestres (corços, veados, javalis). Existem na atualidade medidas eficazes de proteção do gado e rebanhos, como cercas elétricas (financiadas pela UE), cães de guarda de gado ou a disponibilização de formação aos pastores. Receia-se que flexibilizar o seu abate possa tornar-se contraproducente, dada a disrupção que representará na estrutura social do animal. De resto, as estatísticas demonstram que apenas 0,065% das ovelhas dos 60 milhões de ovinos na UE são atacados por lobos.
Hoje, além da caça autorizada, aumentaram tanto a caça furtiva como o envenenamento. Mais grave é porém o facto de que esta medida é uma caixa de Pandora para futuras cedências na desregulamentação e desproteção de espécies e habitats. Não por acaso, a caça ao urso é já uma exigência da extrema-direita na Eslováquia. Na Roménia, país que alberga quase metade da população europeia destes grandes carnívoros, o parlamento autorizou este Verão o abate de perto de 500 ursos, mais do dobro do ano anterior. Faltam contudo as medidas de conservação que contrariem a redução dos habitats naturais e das presas de que se alimentam, ou as soluções para prevenir conflitos com humanos, ou mesmo ataques, desde a gestão do lixo à proteção dos turistas.
Predador de topo e necrófago, o lobo presta inúmeros serviços do ecossistema, não somente equilibrando populações de outros mamíferos, como prevenindo a transmissão de zoonoses. Apesar de ser protegido tanto pela Convenção de Berna como pela Diretiva Habitats – onde sofrerá também uma redução de estatuto do anexo IV para o anexo V –, inspirada naquela, o destino do lobo na Europa é hoje incerto.
Em Yellowstone, onde os lobos foram reintroduzidos em 1995, a sua presença moldou de forma indelével a paisagem, reequilibrando os ecossistemas e restaurando habitats. Mas se os lobos mudaram riosnum dos mais antigos parques naturais do mundo conseguirão mudar as consciências e os interesses de ocasião?