
Ainda que assumidamente tenha sido sempre acompanhado pela solidão, Adalberto Faria apenas provou o seu sabor mais amargo com a morte da mãe, que era "o centro" da sua vida. À boleia da dor surgiu 'Filho de Uma Mãe – A Solidão e a Perda no Século XXI', que se propõe a analisar nada mais, nada menos do que "o impacto da ausência, da saudade e da fragilidade humana".
Se numa primeira parte o autor se debruça sobre a sua própria vivência da solidão, do luto e da humanidade, – passando por reflexões sobre a pandemia da Covid-19 e até do sofrimento face à guerra na Ucrânia –, numa segunda parte dedica-se à expansão da conversa, com a ajuda de nomes como Bárbara Reis, Mário Dorminsky e António Barreto.
Isto porque, tal como vincou em conversa com o Notícias ao Minuto, "podemos ter tudo, e até sermos amados e, no entanto, sentirmo-nos tão perdidos e sós". Ainda assim, na ótica de Adalberto Faria, "temos de viver um dia de cada vez, e saber lidar com esse sentimento, de modo a não nos sentirmos atingidos pelo esplendor do seu embate cruel".
A solidão sempre me acompanhou, por motivos muito pessoais, privados. Mas jamais teve a dimensão gongórica que tem depois de a ter perdido. Não há significante nem signo, nem significado que descreva a natureza dessa solidão
O que é que o motivou a abordar não só o luto pela sua mãe, mas também a solidão latente na sociedade em que vivemos?
Acompanhei-a após o divórcio do grande e único amor da sua vida, o meu pai. Acompanhei-a na doença e após a tentativa de suicídio, quando foi traída. Acompanhei-a na recaída e dali até à sua morte. Fui educado e criado na sacralidade do significado da maternidade, e a juntar a tudo isso, porque a isso fui também obrigado moralmente… Como não tenho filhos, e vivemos sempre um com o outro, ou um por cima da casa do outro, é óbvio que a minha mãe era o centro da minha vida, o sol, a lua, a bússola. Que perdi! A solidão sempre me acompanhou, por motivos muito pessoais, privados. Mas jamais teve a dimensão gongórica que tem depois de a ter perdido. Não há significante nem signo, nem significado que descreva a natureza dessa solidão. Racionalmente assumo a perda. Emocionalmente, ainda não.
Mencionou, a dada altura, sentir uma certa culpa pela dor do luto que nutria, quando à sua volta havia pessoas com problemas que considerava serem mais gravosos, e até mesmo face à guerra da Ucrânia. Ainda assim, o luto tem tendência a colocar-nos ‘no centro do mundo’. Como é que lidou/lida com estes aspetos conflituosos?
Compreendo muito bem a sua questão. Muito pertinente e inteligente. A minha dor arrastou a culpa, porque só de imaginar que eu pude fazer o luto da minha mãe, decentemente, como quis, misticamente e com o contexto trágico-helénico hollywoodesco das flores, dos rituais, do mar, da tempestade, da participação religiosa e pública, enquanto outros eram atirados numa vala comum, indiferenciados, em pedaços, ou atualmente, com crianças esmagadas e perdidas nos escombros palestinianos, tudo isso traz-me uma espécie de culpa pelo facto de sentir que a minha dor é colossal.
Mas, ao reparar o que acontece com as vítimas da Covid-19 em contexto hospitalar, em 2020 e 2021, ou na guerra ucraniana, ou palestiniana, tenho aquela sensação de que me devia conter no meu lamentar… Contudo, a saudade e a dor da ausência não param só porque me sinto culpado de ter tido direito a um familiar com uma morte mais digna.
Não é compatível estarmos feridos de morte, e termos a nosso lado terceiros com palavras mansas, ou clichés. A dor e a espiritualidade do momento impedia-me de estar fosse com quem fosse. No máximo, com uma só pessoa
Confessou também que não foi ao funeral da sua mãe. Porquê? Encarou-o como um mecanismo para lidar com – e, de certa forma, ignorar – a dor? Questiono porque, geralmente, ver o corpo e passar por esses rituais ajuda a aceitar a morte do ente querido.
Talvez tenha razão. Talvez se a tivesse visto entrar nas entranhas da terra, hoje emocionalmente tivesse já aceitado que não a verei mais até à eternidade. No entanto, o momento da morte dela foi, porventura, o clímax de desespero e angústia, tristeza, medo, vazio e solidão que penso ter tido em toda a vida, e mesmo naquela que há de vir. Não nego que fui, inconscientemente, influenciado pela maior amiga de infância, a Joaquina Silveira Teixeira. Amou tanto o único marido que teve, lutou tanto por ele, no país e no estrangeiro, na luta contra o cancro de que ele padeceu. Dois cancros, aliás, no intervalo de sete anos. Foi por cada ano em que ele viveu com qualidade de vida a Fátima a pé, e dormiu a seu lado até ao momento em que ele expirou. No entanto, no dia do seu funeral, ela não o quis ver a ser enterrado.
Pode parecer paradoxal, mas eu compreendi-a, e ao seu amor sem limites pelo seu marido e companheiro de sempre. É o sentimento mais nobre que se pode ter: ficarmos sós, a carpir em todo o nosso corpo, alma, e sensações, uma perda destas dimensões. Não é compatível estarmos feridos de morte, e termos a nosso lado terceiros com palavras mansas, ou clichés. A dor e a espiritualidade do momento impedia-me de estar fosse com quem fosse. No máximo, com uma só pessoa. No entanto, só o fiz quando soube que o meu irmão trataria de tudo. Caso contrário, iria eu mesmo enterrar com as minhas próprias mãos a minha mãe, se não houvesse uma única pessoa para o fazer! Compreende? Não é evitar a dor, é torná-la algo sagrada, minha, e não a expor nesse dia, não vulgarizar ao meu sofrer, pois é sagrado.
Cada mês realizo uma missa na capelinha favorita dela e, em cada data anual do seu falecimento, acendo as luzes de sua casa toda a noite e todo o dia, e coloco flores e velas a toda a volta da casa, para que agora, sim, as pessoas a possam recordar. No dia da morte, e só nesse dia, não me interessa o espetáculo social. Geralmente, quando visito alguém a quem lhe morreu um ente querido, faço-o antes ou depois, nunca no dia do funeral. Detesto o teatro dos funerais. Nunca ninguém aparece antes, ou depois. Só naquele dia. Isso sim, é um “pecado mortal escandaloso”.
Perdemos o único momento histórico de atualizar o Cristianismo, a espiritualidade e bondade em cada um de nós. Não haverá tão cedo uma outra hipótese de silêncio para nos redimirmos, e construir um mundo mais idílico. É desolador que tenhamos atirado uma oportunidade histórica destas pela janela fora
Também argumentou que, ao contrário do que foi proclamado, a pandemia não nos tornou mais empáticos, mas sim mais egoístas e cínicos. De que forma? Não poderá também ser essa uma manifestação do luto coletivo pelo qual passámos e que, de certa forma, foi amenizado pelas redes sociais e pelas novas tecnologias?
Neste ponto não concordo nada consigo. De todo. A violência doméstica disparou. Os divórcios e as separações após a pandemia aumentaram. E o mundo em geral, piorou, em todos os parâmetros. Sociais, sociológicos, económicos e políticos. A guerra russo-ucraniana nem ‘deixou’ que a pandemia tivesse acabado; iniciou-se ainda usávamos máscara. A procura pelas vacinas era feroz, e em Portugal, bem como no estrangeiro, os escândalos de favorecimento e ultrapassagem das tomas e dos grupos prioritários eram constantes. Para não falar de políticos e gente com muita responsabilidade que não obedeciam aos confinamentos e organizavam grandes festas privadas. Havia uma sensação no ar de que as pessoas não sabiam viver no silêncio e na reclusão do momento. As cenas e as atitudes metafóricas do “papel higiénico” e de outros bens denunciavam quais eram as verdadeiras prioridades humanas (voltaria a comprovar-se que tudo estaria na mesma, no apagão de 28 de abril).
Como eu estava só, e digerindo não uma, mas duas tragédias que se tinham abatido sobre mim, com dois meses de intervalo, perda da mãe e pandemia, a meio de 2021 comecei a perceber que as pessoas desesperavam por ter a mesma vida de outrora, ou seja, de consumidores desenfreados. E o pior, como se tudo isso fosse o verdadeiro sentido da vida, o âmago da liberdade, da felicidade. E aí concluí, e pensei não vir a ter tanta razão, de que sairíamos da pandemia absolutamente piores e mais horríveis como seres humanos do que éramos antes.
As guerras dispararam, o lazer e a obsessão do lucro subiu, a crise da habitação, o consumo, a inflação, a indiferença pelo nosso semelhante. Os médicos foram de bestiais para bestas, segundo a população! Perdemos o único momento histórico de atualizar o Cristianismo, a espiritualidade e bondade em cada um de nós. Não haverá tão cedo uma outra hipótese de silêncio para nos redimirmos, e construir um mundo mais idílico. É desolador que tenhamos atirado uma oportunidade histórica destas pela janela fora.
'Filho de Uma Mãe - A Solidão e a Perda no Século XXI'© Guerra e Paz
Fiquei com a impressão de que é bastante crítico das redes sociais, na medida em que promovem o isolamento da sociedade. É essa, na sua ótica, a base da solidão no século XXI?
A primeira vez que tive uma rede social foi em maio de 2010, em casa da minha amiga e colega da faculdade, Cláudia Jacques, na Foz, Porto, que, como eu, vivia muito bem e mais feliz sem Facebook ou Instagram. Fora um amigo e visita do jantar semanal que nos sugeriu e explicou como funcionava o então começo maciço do Facebook. A partir dali, estive presente sempre nas redes sociais, e a Cláudia nem se fala!
Sou crítico no sentido do seu mau uso, da sua substituição nos afetos e no afogamento das novas gerações nessas mesmas redes sociais. São muito úteis, mas têm dizimado muitas facetas humanas da nossa vida quotidiana. As crianças têm direito a ter uma infância e as redes sociais bloqueiam a inocência bela e única desse momento temporal nas nossas vidas, a infância. Só após duas décadas é que podemos começar a observar e a concluir o quão negativo as redes sociais podem ser. Todos sabemos disso. Valorizar a vida pelos likes, e a amizade no número de 'facefriends' é não só pouco, triste, mas perigoso. Os mais maduros podem saber distinguir a realidade da verosimilhança, mas a maioria dos adolescentes não o consegue.
A segunda parte do livro é dedicada a conversas com várias pessoas sobre o luto, a solidão e o impacto das redes sociais na sociedade. O que é que surpreendeu mais? E o que é que o surpreendeu menos?
Que é um sentimento transversal a todas as classes sociopolíticas e culturais, e mesmo as pessoas com menos trajeto escolar ou académico sabem destrinçar o sabor de “estar consigo própria” e a infelicidade de estar só, involuntariamente. Surpreendeu-me que um dos entrevistados, cuja privacidade pretendo manter, me tivesse dito que não sabia o que era a solidão, que desconhecia esse sentimento, mesmo que a sua própria mãe se tivesse suicidado de uma forma brutal. Não me surpreendeu nem pela negativa, nem pela positiva, mas simplesmente porque… me surpreendeu totalmente pela resposta pronta e sincera.
A solidão 'light' é como os iogurtes; não causa dano e ajuda a manter a linha. As solidões volumosas aumentam o tamanho da dor e da dimensão de desespero no coração. O abandono amoroso pode ser dos mais cruéis
Outro momento foi o da Dália, a pastora que lê, e tem uma dicção linda, e se exprime como uma mulher urbana culta, uma sensibilidade e contacto com os animais e com a natureza que me deliciou. A interpretação dela, dos seus silêncios e contacto com a verdadeira natureza selvagem da Serra da Estrela, comoveu-me.
Agora, atiro-lhe uma questão que colocou a todos os entrevistados: solidão ou solidões? E porquê?
Já vi que gosta de fazer perguntas difíceis! Isso é fazer batota! Sim, a solidão não é um aspeto/ocorrência singular da vida, é pluralíssima. Há uma solidão que impele uma pessoa a avançar na vida, o terror de uma solidão dolorosa e doentia que nos impele ou à medicação, ou a fugas para a frente, ou a arranjar e sublimar situações para que a deixemos de sentir, ou a procurarmos o(s) outro(s).
Atravessei um período brutal, sério, entre os 13 e os 18 anos. Hoje, olho para trás e não sei como sobrevivi. Não sei mesmo! Duas vizinhas da mesma idade não sobreviveram. Duas meninas puras e lindas suicidaram-se. Jamais me esquecerei do rosto de ambas e da poesia que li a uma no seu enterro. A solidão ‘light’ é como os iogurtes; não causa dano e ajuda a manter a linha. As solidões volumosas aumentam o tamanho da dor e da dimensão de desespero no coração. O abandono amoroso pode ser dos mais cruéis. Já abandonei e já fui abandonado e trocado. Não é fácil. E só aí compreendi quer o meu pai, quer sobretudo a minha mãe. Aprendi a saber perder. Nesse ponto penso que venci a solidão.
Quantas celebridades morreram com 27 anos; Janis Joplin, Amy Winehouse, Jim Morrison... Cada um transportava uma certa carga de solidão no corpo e na alma. Podemos ter tudo, e até sermos amados e, no entanto, sentirmo-nos tão perdidos e sós. Pessoalmente, penso ter batido os recordes de todos os tipos de solidão. Atravessei-as todas, e sentindo-me ainda hoje frágil, não posso ter sido tão forte. Mesmo assim, não me sinto ainda vacinado. Mais resistente, mais astuto e inteligente em lidar com a solidão, isso sim, mas é como um cancro… Temos de viver um dia de cada vez, e saber lidar com esse sentimento, de modo a não nos sentirmos atingidos pelo esplendor do seu embate cruel. Sou um adepto da medicação psicotrópica, de ioga, de meditação, de exercício físico, de viajar, de atividade sexual variada. Vale tudo para eliminar esse nosso inimigo interno – a solidão no século XXI!