O livro ‘Fome’, de Roxane Gay, foi traduzido para português no início deste ano, sendo que foi publicado pela primeira vez em 2017. A autora, conhecida também por ‘Bad Fiminist’, falou com a Forbes poucos meses depois. Os seus livros, o feminismo e o momento atual nos Estados Unidos, país onde nasceu, foram alguns dos temas que marcaram esta conversa.

Há cerca de uma década, descreveu-se como uma “má feminista”. Ainda pensa assim?
Ainda me considero e sempre me considerarei uma má feminista, mas também acredito que sou uma feminista melhor do que era.

Como é que conseguiu tornar-se uma feminista melhor?
Quando escrevi o Bad Feminist, queria criar espaço no discurso feminista para que as mulheres fossem humanas, com falhas, inconsistentes, mas ainda assim verdadeiramente empenhadas nos ideais feministas. Continuo a acreditar nisso, mas também passei muito tempo nos últimos dez anos a pensar na responsabilidade pelas nossas ações e escolhas. Sim, somos imperfeitos, mas isso não tem de ser uma condição permanente. Por exemplo, podemos gostar de hip hop, mas há consequências em consumir cultura misógina de forma acrítica. Os criadores não têm qualquer incentivo para fazer melhor, por isso estou a tentar fazer melhores escolhas que estejam mais alinhadas com os meus ideais.

Que mulheres a inspiram?
A minha mãe sempre me inspirou. Ela era uma mulher muito poderosa, que se mantinha firme nas suas convicções e defendia sempre aquilo em que acreditava. Admiro todas as mulheres da minha vida que têm princípios, são ferozmente inteligentes, divertidas e sempre interessantes. Sei que é suposto escolher entre pessoas famosas, mas não me vem nenhuma à cabeça. Tento não admirar estranhos.

“A minha definição favorita de ‘feminista’ é a que foi dada por Su, uma mulher australiana que disse que as feministas são ‘apenas mulheres que não querem ser tratadas como m****'”. Esta continua a ser a sua definição favorita ou tem outra?
A definição de feminista da Su continua a ser a minha. É universalmente aplicável a todas as questões pelas quais lutamos enquanto feministas.

Qual é o pior conselho que as mulheres recebem?
O pior conselho que as mulheres recebem é sobre como podemos ter tudo, por assim dizer, se trabalharmos o suficiente. Não sei até que ponto a maioria das mulheres poderia trabalhar mais. Nós e os nossos esforços nas frentes profissional e doméstica não são o problema. Qualquer conselho para as mulheres que sugira que têm de fazer algo mais ou diferente para viverem uma vida melhor e mais livre, não é um conselho que valha a pena seguir.

Sobre Fome: Para quem escreveu este livro?
Escrevi para pessoas que vivem em corpos gordos como o meu. Foi uma grande surpresa ver quantos outros tipos de pessoas se relacionaram com o livro.

Recebe muitos testemunhos de pessoas que leram este livro? Quais foram os que mais a marcaram?
Fome foi publicado há sete anos e continuo a receber testemunhos de pessoas que sentem que o livro de memórias reflete a sua experiência de vida ou articula algo que não conseguiram compreender anteriormente. Ajudou os profissionais de saúde a desenvolver melhores práticas de cuidados para os doentes gordos. Criou mais espaço no mundo para conversas sobre a gordura e o direito das pessoas gordas a viverem livremente, enquanto são tratadas com humanidade. Sinto-me orgulhosa por isso. Faz-me lembrar que o trabalho que faço chegou a pelo menos algumas pessoas e ajudou-as.

O quão especial é cada vez que um dos seus livros é traduzido para uma nova língua?
Adoro quando o meu trabalho é traduzido porque é apresentado a novos públicos em todo o tipo de sítios interessantes. Como adoro viajar e conhecer outros países, é ainda melhor quando sou convidada a ir a sítios onde o meu trabalho é publicado em tradução para falar sobre ele.

Como é que a escrita a ajudou a ultrapassar ou a compreender muitas das coisas por que passou?
Não tenho a certeza de que a escrita me tenha ajudado a ultrapassar alguma coisa, mas ajudou-me a compreender melhor a mim própria e algumas das decisões que tomei. Ajudou-me a compreender melhor as outras pessoas. Mas também me ajudou a tornar-me uma escritora e pensadora melhor em virtude da persistência.

O que pensa sobre como conseguirmos um futuro feminista verdadeiramente inclusivo?
Nesta altura, não sei bem. Perdemos muito terreno, especialmente nos Estados Unidos, nos últimos anos. A administração Trump está a criar uma mudança catastrófica que mina todo o progresso do século passado. Não podemos começar a considerar o futuro enquanto não abordarmos o presente. Sei que a única forma de avançarmos é através da rejeição das políticas draconianas que estão a ser promulgadas, mas ainda não se sabe como o faremos de forma eficaz.

Consegue visualizar este futuro feminista na realidade atual do seu país?
Não, não consigo.

O que acha que levou a esta realidade atual, a todo este retrocesso?
Estamos a lidar com uma resposta violenta a um presidente negro e as mulheres terem obtido ganhos sem precedentes. As pessoas no poder odeiam o progresso. Odeiam quando alguém se aproxima de ameaçar o poder que têm. É grotesco e vergonhoso.

No mercado literário, a igualdade de género é uma realidade?
É de esperar que sim, mas duvido. As mulheres têm, de facto, mais poder no setor editorial do que em outras áreas, mas quando olhamos para os cargos mais elevados, estes são frequentemente ocupados por homens. As mulheres leem mais. As mulheres trabalham na maioria dos cargos editoriais. Suponho que as mulheres e os homens são publicados em percentagens iguais, embora haja todo o tipo de disparidades salariais entre estas categorias. Infelizmente, a misoginia está em todo o lado.

Quais as partes do setor foram as mais difíceis de lidar e aceitar?
As disparidades salariais, não só entre géneros, mas também entre raças/etnias, são difíceis de engolir.

Viu diferenças neste setor, uma vez que o seu país também passou por várias mudanças políticas nos últimos anos?
Houve certamente progressos nas últimas duas décadas. Mas muitos desses progressos são superficiais e, assim que as empresas podem abandonar as práticas progressistas, fazem-no. Estamos a ver isso acontecer agora em muitos setores.

O que é que gostaria que as pessoas soubessem sobre si que acha que ainda não sabem?
Não há mais nada que eu queira que as pessoas saibam sobre mim. Isso são coisas que guardo para mim.