Bem, afinal o que é que se passou aqui? A que espécie de freak show assistimos nós na Luz? Foi futebol? Certamente, por vezes. Foi um espetáculo de improviso? Também. Foi circo? Pareceu aqui e ali, perdoem-nos os profissionais da área. Foi uma montanha-russa? Sim. Foi um evento bíblico, com direito a dilúvio, trovões e relâmpagos? É possível que o Novo Testamento tenha um espacinho para esta noite.
Posto isto, vamos a factos contáveis: o Benfica perdeu com o Barcelona por 5-4 e o jogo foi tão louco quanto o resultado possa suscitar. A derrota tem consequências pragmáticas: com 10 pontos, é possível que os encarnados entrem pressionados na última jornada desta fase de grupos da Champions.
E depois há as consequências mais difíceis de prever ainda a quente. Como se recupera de uma possível noite histórica, que se tornou num pesadelo? Como se ultrapassa estar por duas vezes a ganhar por dois golos ao Barcelona, o gigante Barcelona, e acabar a perder? Talvez não haja nada para refletir. Não há muitas noites assim, caóticas, cataclísmicas, em que acontece tudo e mais um par de botas num campo de futebol. Não verão muitos jogos assim, caros leitores. Na vossa vida. Assumo aqui esta afirmação esticada.
Porque, ora bem, o que é que não se passou na Luz se calhar é uma pergunta mais fácil de responder. Sobre o que se passou há muito para discorrer, como num filme burlesco. Um hat-trick de Pavlidis ainda na 1.ª parte, para começar, um avançado que há seis jogos não marcava um golo e que de repente entra na história do Benfica como apenas o 9.º jogador a marcar três golos num só jogo pelos encarnados na Liga dos Campeões. Golos caricatos, um para cada lado, porque o caos também sabe ser democrático. O primeiro para o Benfica, na 1.ª parte, quando Szczesny errou nos cálculos mais do que um aluno com 20% num teste de matemática e ainda pontapeou o colega Baldé - como assim, Szczesny? - deixando via livre para Pavlidis fazer o que era então o segundo do Benfica e seu segundo da conta pessoal.
Na 2.ª parte, Trubin quis juntar-se ao espectáculo circense de fazer rir quem, na verdade, pagou bilhete para ver um jogo de futebol taticamente rico (eheh) e fez uma reposição de bola diretamente para a cabeça de Raphinha, com tanta força que o brasileiro talvez tenha visto estrelas antes de perceber que a bola estava a ir direitinha para a baliza. Se fosse de propósito, talvez não tivesse dado certo. Como diria certo filósofo do mundo futebolístico, pimbolim é matraquilho.
Com este golo de Raphinha, o jogo colocava-se num aberto 3-2. O Benfica trazia um impressionante 3-1 do intervalo, graças a erros alheios, inteligência na hora de cheirar as falhas das linhas bem altas do adversário e a golos marcados nas alturas certas - ambos quando o Barça ameaçava o domínio intergalático do jogo. Colocando-se a apenas um golo de distância da equipa portuguesa, que até então tinha, com muito sucesso, diga-se, fechado os caminhos para a sua baliza, contendo as constantes tentativas de entrada dos catalães pelo corredor central, era de esperar mais revolução blaugrana, mas este jogo não estava para escrever direito por linhas tortas: era mesmo por linhas ziguezagueantes, daquelas que às tantas até passam por cima umas das outras e se tornam um novelo.
Posto isto, Ronald Araujo resolveu juntar-se à bizarria da partida, marcando um auto-golo tonto, que colocou novamente o Benfica com dois golos de vantagem. Estávamos no minuto 68, os céus de Lisboa estavam mais claros do que numa manhã de verão, elétricos como o jogo, assustadores. Aos 78’, o árbitro, talvez encadeado por um desses histriónicos clarões, cheios de main character energy, viu um penálti comezinho na área sobre Lamine Yamal, o melhor jogador do mundo mas que até então havia sido apenas um adereço nas mãos de outro dos atores principais do jogo: Álvaro Carreras. Ele, com sobrenome de cantor lírico, e Vangelis, homónimo de compositor helénico, deram toda a música que puderam ao Barcelona na 1.ª parte e talvez por isso tenham sido os mais injustiçados pelos acontecimentos do final do jogo.
Aos 86’, Eric García fez o 4-4, de cabeça após canto curto. O Benfica podia ter ido novamente para a frente três minutos depois. Di María, entrado a meio de uma cena de loucos, cheirando oportunidades entre o jogo que já não estava partido, estava aos pedaços, viu-se isolado, mas desta vez Szczesny acertou onde devia - na bola, diga-se. O desespero tomou conta dos encarnados: como era possível não ganhar este jogo? E deixou de haver cabeça, discernimento para perceber o quão perigosa estava a situação. Foi com meia equipa do Benfica na área do Barcelona a pedir penálti em mais um lance de ai-jesus, no meio da ausência de organização, de lembrança que, sim, continua um jogo de futebol a decorrer, que Raphinha se viu sozinho entre o dilúvio, uma imagem de filme, e fez o 5-4, já para lá dos descontos.
Este Benfica - Barcelona entrará na mitologia oral dos encarnados como uma das noites mais bizarras da sua história europeia. Falar-se-á entre gerações de benfiquistas, highlights no YouTube serão consumidos quando se quiser confirmar que, sim, sim, aconteceu daquela maneira estranha. Para quem não tinha o coração virado para nenhum dos lados, foi um espectáculo bem divertido de assistir. Para quem se riu muito no início e levou com a tarte na cara no final nem tanto. O futebol, de facto, às vezes gosta de nos lembrar que nos controla a nós muito mais do que nós o controlamos a ele.